Edição de Sábado: Ascensão e derretimento do Partido Republicano de Trump

Aproximavam-se as 17h de uma quarta-feira, 7 de agosto em 1974, quando o chefe de gabinete do presidente Richard Nixon abriu a porta do Salão Oval para que entrasse, acompanhado de um deputado, o senador Barry Goldwater. Aos 65, o cabelo grisalho curto à moda militar, óculos espessos de casco de tartaruga escuro, Goldwater tinha o rosto quadrado, queixo proeminente, bem poderia fazer um caubói no cinema. Era, aliás, um homem do Oeste, do Arizona. Um homem rígido e com frequência mal-humorado mas que, por uma série de características pessoais, parecia o único republicano capaz de desempenhar aquela missão com a necessária sisudez. Barry, como o chamavam seus pares, acertaria o tom. Diferentemente da maior parte dos políticos, o seu instinto era de falar sempre, e com clareza, exatamente aquilo que pensava. Não suavizava o discurso de acordo com o interlocutor. Era senador e, além disto, havia sido o último candidato à presidência do partido antes de Nixon. Ou seja: tinha a necessária estatura para um momento assim tão grave. O deputado e o chefe de gabinete sentaram-se nas laterais. Goldwater numa cadeira imediatamente à frente do presidente, que estava atrás da Resolute Desk — até hoje a mesa dos chefes do Executivo americano. O senhor tem o apoio de no máximo 18 senadores, disse o velho senador. Ou seja, o processo de impeachment terminaria com ele fora da Casa Branca. Nixon optou pela renúncia.

Goldwater era respeitado, um velho homem de Estado, mas naqueles princípios de anos 1970 era também ainda lembrado como um excêntrico. Como um radical. Ele não havia apenas perdido para Lyndon Johnson a eleição de 1964 — ele havia perdido aquele pleito pela maior diferença percentual de votos entre vencedor e perdedor da história americana, um recorde ainda não batido. Suas ideias a respeito de política eram percebidas como extremistas. E, no entanto, para entender como o Partido Republicano chegou a Donald Trump — e ao ataque miliciano ao Congresso dos EUA por eleitores do atual presidente — é preciso começar por Barry Goldwater.

Foi ele quem pôs em marcha a revolução.

Após a vitória de John Kennedy, em 1960, os republicanos se percebiam numa crise de identidade. Por quatro mandatos seguidos o democrata Franklin Roosevelt governara o país, seguido por Harry Truman. Roosevelt era o homem que havia vencido a Depressão e a Segunda Guerra. Quando os republicanos voltaram ao poder com Dwight Eisenhower, após mais de vinte anos, seu partido não tinha mais cara. Além de representar empresários com dinheiro do Norte do país, que outros valores de fato tinham para apresentar? E Eisenhower, que governou até passar o poder a Kennedy, em janeiro de 61, em nada contribuiu para refundar o que seria o conservadorismo para a segunda metade do século 20. Mais de vinte anos de democratas na Casa Branca, um presidente republicano, e de volta estava ao cargo um democrata. O partido de Lincoln que havia dominado a segunda metade do século 19 parecia ter se tornado personagem secundário na política do país.

De certa forma, Goldwater era o candidato perfeito para a eleição impossível de ser vencida, em 1964. Afinal, carregado pela imensa comoção nacional após o brutal assassinato de Kennedy, era impossível tirar seu vice da Casa Branca. E Goldwater, apesar de suas ideias estranhas, não ligava para a derrota. Era recorrente em seus discursos durante a campanha eleitoral que se postasse ao microfone enquanto o público gritava ‘Queremos Barry’. Ele respondia, sempre: ‘se vocês se calarem, vão tê-lo’. Não falava brincando. A adulação o irritava. Tendo herdado as lojas do pai ainda garoto, chegou ao comando da empresa como um empresário de sucesso. Quando estourou a Segunda Guerra, foi recusado como recruta mais de uma vez por ser já velho demais — tanto insistiu que arrumou um cargo como instrutor de tiro. Tornou-se aviador de bombardeiros e chegou a major general, equivalente ao general de brigada, ainda no conflito. Aí foi ser político porque, acreditava, o governo se metia demais na vida das pessoas.

Nos EUA do New Deal, Barry Goldwater acreditava que a própria ideia de governo era, em si, uma inimiga da autonomia individual. O modelo de gestão consolidado nos anos 1930 que ainda se mantinha nos 60 previa uma estrutura de Estado na qual o chefe do Executivo era eleito e governava sob aquele desenho, não importava sua ideologia. Tanto democratas como a elite dos republicanos sequer percebiam esta maneira de entender governo como algo a se debater. A ideia de que ideologia não poderia afetar o desenho da estrutura de governança, e portanto do Estado, era um espanto para Goldwater. Em 1964, ano da eleição, votou contra a Lei de Direitos Civis de Lyndon Johnson, que desmontava o resto da estrutura de segregação racial no Sul americano. Não era racista. Na verdade, sua primeira ação como político, ainda vereador na cidade de Phoenix, havia sido iniciar a luta para o fim da segregação racial das escolas públicas locais. A primeira pessoa que contratou para seu gabinete, quando eleito senador, fora uma mulher negra. Racismo o ofendia. Mas o governo federal não podia dizer a um estado como definir suas políticas internas. Se racismo o ofendia, isso o ultrajava. E a sugestão de que o governo poderia proibir um estabelecimento comercial de escolher os clientes que desejasse o insultava fundo em seus valores maiores.

Ninguém tinha dúvidas de que Goldwater perderia a eleição. Mas ele só venceu no Arizona e nos estados do Sul — aqueles que haviam perdido o direito de segregar. Uma surra eleitoral tão violenta que parecia carregar uma mensagem. O americano está feliz com seu conceito de governo.

Mas não era verdade. A eleição de 1964 mostrou que havia a possibilidade de uma aliança política entre um conjunto de pessoas que entendia liberdade pessoal e Estado como antagônicos, com outro grupo, que lastimava o fim das políticas segregacionistas. Ainda não haviam se aproximado os religiosos de direita.

Goldwater não era estrategista político. Mas não foi pouca gente que percebeu, ali, a possibilidade de um caminho para um novo Partido Republicano.

Reagan

Em novembro de 1980, o republicano Ronald Reagan teve uma das maiores vitórias eleitorais da história americana. Por muito pouco o presidente Jimmy Carter não saiu da Casa Branca, após seu primeiro mandato, com uma derrota tão grande quanto a de Goldwater 16 anos antes. Mas Reagan, apenas dois anos mais moço que o velho senador, não tinha nada de Goldwater. Era um sujeito pessoalmente encantador. Bem-humorado. Tinha uma inteligência em debates, capaz de sair das ciladas mais críticas desconcertando o adversário. Transformava cada ideia de política pública numa história com pessoas reais, que contava com jeito, num certo tom coloquial, que passavam tanto sapiência quanto intimidade. Havia sido ator, Ronald Reagan. Enquanto Goldwater voava aviões reais na Segunda Guerra, Reagan os voava no cinema no esforço de propaganda durante conflito. E esta experiência de ator lhe valeu muito como político. O que Ronald Reagan tinha em comum com Goldwater eram as ideias. “O governo não é a solução para os problemas”, discursou em sua posse, naquele janeiro de 1981. “O governo é o problema.”

Muito havia mudado naqueles 16 anos entre uma eleição e outra. Uma foi a Crise do Petróleo, a crise econômica dos anos 1970 que realmente deixou governos em todo o mundo impopulares. Na segunda metade dos anos 1960 também explodiram muitos grupos radicais de esquerda nos EUA, que nunca chegaram a ser muito representativos, mas certamente eram vocais. Todo grupo radical gera uma reação. Houve a revolução sexual, puxada pela pílula anticoncepcional, que mudou drasticamente o comportamento de mulheres jovens em todo o Ocidente. A Guerra do Vietnã desgastou os governos democratas, e não foi pouco. Além de haver uma insatisfação generalizada da população, dentro de grupos mais conservadores o incômodo com as mudanças da sociedade era particularmente grande.

Não é só.

Em 1964, a iminência de uma guerra nuclear com a URSS estava ali, e os soviéticos pareciam na frente tecnologicamente por seus avanços na corrida espacial. Só em 1969, com a viagem à Lua, os EUA reassumiriam a corrida tecnológica. A sisudez de Goldwater, acompanhada de seu anticomunismo rábico, assustavam pela possibilidade de que ele fosse rápido demais no gatilho. Em 1980, a proximidade de um conflito parecia mais distante, os EUA já se sentiam militarmente muito superiores à URSS, e o bom humor percebido de Reagan não fazia dele assustador. Se Goldwater pareceu radical de direita, Reagan era um velho sábio e simpático. Pensavam igual.

Visto de forma cínica, os negócios da política, do jornalismo e da publicidade seguem modelos similares. O desafio é criar uma audiência que tem interesses em comum a quem levar mensagens sobre o tema. Quem estiver disposto a tirar a ética do jogo vê os três — política, jornalismo e publicidade — como um negócio só. Goldwater mostrou que havia uma maneira de reunir sob um mesmo discurso certos grupos. Naqueles 16 anos entre uma eleição e outra, muita gente diferente trabalhou para consolidar estes públicos.

Mas ninguém trabalhou com a inteligência e a competência de um produtor de televisão chamado Roger Ailes. Richard Nixon havia perdido sua primeira corrida a presidente, em 1960, para John Kennedy, e atribuía parte da derrota ao fato de que seu adversário aparecia na televisão melhor do que ele. Ailes foi o homem contratado para melhorar a imagem de Nixon na campanha que ele enfim venceu, em 1968. Marcando inúmeras aparições do candidato no período pré-eleitoral em programas que não eram noticiosos, mas voltados para o entretenimento, conseguiu fazê-lo.

Ailes era um tipo raro nos anos 60: um homem de publicidade que pensava jornalismo. Ele compreendia televisão como um meio com tendência a ser superficial. Enquanto o texto permite que argumentos atinjam o limite da profundidade ao mesmo tempo que capturam a concentração de quem lê, a TV impõe limites naturais à extensão de um argumento e cria, em quem assiste, um estado constante de distração. Para ele, esta era uma vantagem: na TV é mais difícil compreender que argumentos se sustentam ou não. Assim como, num meio tão obviamente ideal para veiculação de eventos esportivos, a produção de conflitos, de separar as pessoas em times que contrastam posições, se torna muito atraente. Em essência, não era preciso defender com profundidade uma política pública. Bastava apresenta-la num contexto de o povo contra a elite.

Ailes conhecia como poucos a fórmula populista.

Pois ele conseguiu dar um jeito em Nixon. Mas, com Ronald Reagan, que o contratou como assessor desde o início de sua campanha presidencial, o encontro deu em ouro. Reagan, afinal, era um experiente profissional no domínio da câmera. Seu timing de fala era intuitivo, a emoção no ponto certo, e a fluidez no discurso ideal. Reagan nunca tentava explicar mais do que o necessário, justamente onde políticos costumam se atrapalhar.

Durante os oito anos de seu governo, o Sul americano que celebrava o passado da Guerra Civil já havia aprendido a transformar seu discurso não numa defesa da segregação. Mas numa defesa de que o Estado não devia se meter nas decisões de governos locais e negócios. Noutros cantos, e por outros motivos, quem era do grande PIB americano abraçou esta visão de laissez-faire. No barco de Ronald Reagan entraram ainda a direita religiosa, que considerava que o país havia mergulhado num processo de decadência sexual.

Outros dois grupos importantes se formaram neste período. Um foi a reformulação da NRA, a Associação Nacional de Rifles. Era um grupo de caçadores muito tradicional. Mas, em princípios dos anos 80, foi transformado em lobby da indústria de armas com o objetivo de criar um discurso ligando aquela ideia de liberdade individual ao direito de se armar. Porque, com o dinheiro do lobby da indústria de armas pessoais, inúmeras campanhas eleitorais foram financiadas. Repentinamente, em vários distritos do país, começaram a aparecer candidatos a deputado republicanos com muito mais dinheiro do que seus adversários democratas. Em troca do financiamento, o compromisso é de que estes homens e mulheres incorporariam este debate sobre armas na campanha e, depois, em suas brigas políticas no Congresso.

Tratava-se de um jogo, de uma fórmula. Por um lado, a criação de um assunto que aquece debates, acirra discussões, deixa claro quem está de que lado. Por outro, gera dinheiro para campanhas políticas, fundamental para vitórias. Algo que Ailes compreendia intimamente, mas não só ele compreendia, é que a partir do momento em que um eleitor escolhe um time, ele abraçará quaisquer defesas que sejam percebidas como a de seu time.

E houve a Federalist Society, Sociedade Federalista, que começou a buscar nas melhores escolas de Direito do país alunos brilhantes que fossem conservadores. Esta era uma dificuldade da direita: não encontrava gente capacitada para o cargo de juiz, em geral nomeação pública, nos EUA. Porque, nas melhores escolas, em geral os jovens não direcionavam suas carreiras desta forma. Buscavam enriquecer nas maiores firmas de advocacia. A Federalist Society entrou nos campi para incentivar debates, promovendo debatedores conservadores. Cultivou muitos destes rapazes e moças e os incentivou a uma carreira na magistratura. Se faltava, ao Poder Judiciário, juízes conservadores, eles formariam uma geração. Os três juízes escolhidos por Donald Trump para a Suprema Corte foram crias da Federalist Society.

Se o governo Reagan consolidou de vez o discurso anti-governo na política americana, o que ele nunca fez como presidente foi combater a estrutura da Democracia. Por boa parte de seus mandatos, o democrata Tip O’Neill foi presidente da Câmara dos Deputados. Inúmeras vezes trabalharam juntos, quando havia concordância. A ideia de que grupos opositores podiam chegar a acordos era natural a ambos. A ideia de que a discordância não fazia deles inimigos, mas adversários no jogo político, igualmente lhes era natural.

Só que o jeito de pensar comunicação de Roger Ailes, levado ao limite, não tinha como deixar estes ritos de pé. Não demorariam a ruir.

Gingrich

Eleito presidente em 1992, Bill Clinton foi de certa forma o democrata ideal na Casa Branca para o novo passo da transformação republicana. Pois ele estava fazia dois anos no cargo quando chegou à presidência da Câmara um historiador chamado Newt Gingrich. O deputado já era um político, nascido em 1943, da geração que cresceu pós-Goldwater. E que pensava como Roger Ailes — nascido em 40. Gingrich mudou a forma de se atuar politicamente no Congresso. O objetivo de fazer política pública se tornou acessório. Primordial era derrotar o adversário e substituí-lo na presidência da República. Cargo, claro, no qual Gingrich se via.

O que fazia de Clinton ideal era um traço de personalidade que, nas muitas décadas anteriores, vários presidentes americanos compartilharam e nunca havia sido problema. Clinton era mulherengo. Cultivara amantes quando governador do Arkansas. Pois quando começou a circular que o presidente havia tido encontros sexuais com uma jovem estagiária chamada Monica Lewinsky, no ano de 1997, tanto Gingrich quanto Ailes estavam prontos. O affair do presidente era perfeito para um público conservador já insatisfeito com sua derrota na eleição. E aconteceu de que após uma longa carreira como consultor político de Nixon, Reagan e Bush pai, Ailes havia começado um novo canal de televisão a cabo. A FoxNews. Que explodiu, após um ano de seu lançamento, fazendo uma intensa cobertura do escândalo que levou à abertura do processo de impeachment contra Bill Clinton.

A economia ia bem e Clinton era popular. Embora o escândalo tenha explodido justamente no ano eleitoral, ele não apenas sobreviveu ao impeachment no Senado como se reelegeu. O escândalo não dominou a população, mas consolidou de vez um nicho. A intensa cobertura de imprensa abriu espaço para o surgimento de várias estrelas do comentário da direita americana. Nomes, na TV, como o de Bill O’Reilly. No rádio, como Rush Limbaugh. E, na internet que nascia, Matt Drudge. Desde finais dos anos 1960, Ailes vinha criando os alicerces para este jeito de cobrir política não jornalisticamente mas como entretenimento. Com um viés mais de propaganda do que noticiário. No qual o comentário sobre personalidades substitui a análise de políticas públicas. O aspecto da disputa entre dois grupos se sobressai perante a discussão de qualidade da governança. Ele tinha toda razão num aspecto: aquele jeito de fazer jornalismo político criava audiências. E o escândalo sexual de Clinton potencializou o surgimento de uma rede midiática de direita, nos EUA, que nem o centro, nem a esquerda, jamais conseguiram sequer igualar.

Na virada para o século 21, quando George W. Bush chegou à Casa Branca, havia um jeito novo de fazer política estabelecido. Uma grande rede midiática de direita criou um público fiel. Seu discurso tinha na base o de Barry Goldwater — o governo quer tirar sua liberdade individual. Nele defensores velados e não tão velados da segregação racial e evangélicos brancos, conservadores, se encontravam. Ambos os grupos abraçaram duas causas fundamentais: a proibição do aborto, a legalização o mais ampla possível de armas. Alguns anos depois, entrou também a questão do gênero, com os avanços da militância LGBT. Enquanto estes temas dominavam os debates eleitorais no público, grupos empresarias financiavam campanhas republicanas e ganhavam, em retorno, cortes e mais cortes de impostos, além de desregulamentação ambiental e econômica.

Em 2016, demitido pela FoxNews com um ajuste de contas milionário após um escândalo sexual, Roger Ailes se juntou como consultor à campanha eleitoral de Donald Trump. De uma forma muito diferente, mais selvagem até, ele via no novo candidato algumas das qualidades que Reagan tinha. Trump sabia fazer TV. A diferença é que enquanto Reagan fez sucesso com tipos heroicos no cinema dos anos 40, o honrado homem americano do tempo, Trump vinha dos reality shows nos quais trapaças são celebradas, injustiças saboreadas, e tudo vale na disputa por poder. Além disto, os debates superficiais da TV, no mundo de tuítes e vídeos de segundos, foram acelerados enquanto permitiam juntar de forma muito mais consolidada aquela audiência.

Ailes não viu o governo Trump — morreu quando o novo presidente estava na Casa Branca fazia cinco meses. Mas, ali, todas as características foram aceleradas. Centenas de juízes conservadores foram nomeados para cargos vitalícios, mudando de forma radical a cara do Poder Judiciário. O Congresso acelerou o vale-tudo que vinha dos anos de governo Barack Obama, no qual o importante não é encontrar acordos mas derrotar o adversário de tal forma que impossibilite seu retorno ao poder. O discurso racista velado por trás do que só parecia laissez-faire deixou de ser velado.

Trump levou a transformação a seu ápice máximo e expôs o jogo como nenhum outro.

O resultado é que, neste princípio de 2021, o Partido Democrata voltará a ter controle não só da Casa Branca como das duas casas do Congresso. E na recusa histórica, e inédita, de aceitar o resultado de uma eleição, o presidente incitou parte de sua militância a invadir o prédio do Capitólio. Lá, mataram um policial esmagando seu crânio com um extintor de incêndio. Circularam com a bandeira da Confederação que quis acabar com os Estados Unidos. No moleton de um estava inscrito ‘Campo Auschwitz, Só o Trabalho Liberta’. É a mesma frase que os prisioneiros encontravam no portão, ao chegar ao campo de concentração de Auschwitz.

Um nazista.

Justamente aquilo que Barry Goldwater e Ronald Reagan, de verdade e no esforço de propaganda, lutaram para derrotar.

Goldwater, que era um verdadeiro libertário, morreu em 1998 rompido com seu partido. Ele era a favor de plenos direitos para homossexuais e pela legalização do aborto. Considerava, afinal, que o Estado não tinha que se meter com a vida das pessoas.

Por Pedro Doria

Invasão do Capitólio reacende ‘maldição do Mandalorian’

A invasão do Congresso dos EUA por uma turba de apoiadores do presidente Donald Trump não provocou abalos apenas nas fundações da mais antiga democracia liberal do mundo. Ela reacendeu uma polêmica que sacode o universo de Guerra nas Estrelas de forma tão intensa quanto a existência de Jar-Jar Binks ou Greedo ter atirado primeiro: a maldição do elenco feminino de The Mandalorian, a aclamada série que reconciliou os fãs da franquia com a Disney, atual dona da marca.

No centro da controvérsia está a atriz e ex-lutadora de MMA Gina Carano, 38 anos, 1,72m e 65kg de puro músculo e conservadorismo. Em Mandalorian, ela é Cara Dune, a principal personagem feminina, uma ex-guerreira de elite da Rebelião que ajuda o personagem título e o arquifofo bebê Yoda, terminando a segunda temporada como xerife da Nova República. Na vida real, Gina acumula polêmicas.

Trumpista convicta, ela passou a quarta-feira curtindo e retuitando mensagens de manifestantes que protestavam na frente do Congresso. Com a invasão do Capitólio e as cenas de violência que se seguiram, apagou as postagens, mas o estrago estava feito. A hashtag #fireginacarano (demitam Gina Carano) voltou a ganhar força, especialmente após Bob Chapek, CEO da Disney, publicar uma mensagem classificando a invasão como um “notório e indesculpável atentado à mais reverenciada instituição da América e à democracia”.

A firme declaração de Chapek foi a senha para os críticos de Gina cobrarem uma represália à atriz. “Talvez então seja hora de demitir Gina Carano, que apoia os terroristas? Essas palavras (do CEO) não significam nada se vocês, ao mesmo tempo, dão uma plataforma a esse tipo de pessoa”, publicou uma conta no Twitter. “Quando a Disney vai perceber que o que Gina diz e publica é nocivo de perigoso?”, indagou outra. Nem a empresa nem a atriz responderam às críticas.

Não é a primeira polêmica de Gina. Ao longo do ano ela fez diversas publicações condenando o (e desdenhando do) distanciamento social imposto pela quarentena, defendendo a reabertura de empresas e igrejas e criticando o uso de máscaras. Numa delas, fez uma comparação debochada entre o voto pelo correio, crucial para a derrota de Trump, com uma hipotética “vacinação pelo correio”, em outra, ironizava um guarda tentando tirar um homem de uma praia vazia por ela “não ser segura”.

Durante os protestos contra o assassinato de negros por policiais, Gina chegou a retuitar um post dizendo que era mais fácil alguém ser morto por apoiar Trump que pela cor da pele, mas apagou a postagem. Mas o ponto máximo das controvérsias aconteceu em setembro. Com o avanço dos movimentos de pessoas trânsgenero, tornou-se comum a indicação junto ao nome dos pronomes pelos quais o indivíduo deveria ser tratado. Gina fez uma postagem indicando como “pronomes” “boob/bop/beep”, o que foi interpretado como deboche. Depois, ela disse que Pedro Pascal, ator chileno protagonista de Mandalorian, explicou-lhe a importância do uso dos pronomes e se desculpou. Pascal usa pesadamente suas redes sociais em apoio a causas LGBTQ+.

Rosario também na linha de fogo

Como a terceira temporada de Mandalorian só deve ser lançada no fim deste ano, talvez a poeira das polêmicas envolvendo Gina Carano assente. O problema é que ela não é a única atriz da série a se ver em maus lençóis na mídia e nas redes sociais. Dona de uma carreira muito mais sólida, Rosario Dawson, de 41 anos, fez uma breve aparição na segunda temporada como a Jedi Ahsoka Tano, lançada em desenhos animados e uma favorita do fandom.

A participação serviu para lançar a trama de uma série própria da personagem, incluída no caminhão de novos produtos de Guerra nas Estrelas prometido pela Disney.

No meio do caminho, porém, há dois processos contra a família dela por agressão de natureza transfóbica. O autor das acusações, Dedrek Finley conta que era amigo de Rosario e chegou a fazer trabalhos de carpintaria para ela e a família quando ainda se identificava como mulher. A atitude dos Dawson, porém, teria mudado quando Finley se assumiu como homem trans, chegando às raias da violência física. A atriz espera que tudo seja esclarecido nos tribunais e que sua série estreie sem maiores percalços.

Mas haja Força para lidar com tantas encrencas.

Por Leonardo Pimentel

Sobre o caso Google vs Oracle

Os casos antitruste contra as big techs dominaram o noticiário em 2020. Mas um outro caso promete mudar o setor tecnológico: o resultado da disputa judicial de mais de uma década entre Oracle e Google que chegou a Suprema Corte americana. Para as empresas, o processo é sobre se a Oracle, que é dona do Java, tem direito a um pedaço do Android — mais especificamente pede US$ 9 bilhões. Para todos os outros, o processo é sobre se a compatibilidade na programação é equivalente a violação de direitos autorais.

O caso, conhecido como Google vs Oracle America, gira em torno de se os desenvolvedores precisam de permissão para copiar as APIs usadas em outros programas. APIs são as interfaces que concedem acesso a funções específicas em um programa: se um novo trecho de código usa as mesmas APIs de um software existente e amplamente utilizado, é muito mais fácil para os desenvolvedores fazerem seus produtos funcionarem com as plataformas. Ou seja, em linhas gerais, é o que possibilita que os programas comuniquem-se entre si.

Durante o desenvolvimento do Android, no começo dos anos 2000, o Google procurou negociar com a Sun Microsystems, dona do Java na época, para ganhar direito de usar o seu código, amplamente usado na comunidade de desenvolvedores. O acordo não foi para frente. Então, a big tech desenvolveu todo o código-base do Android praticamente do zero, utilizando, segundo ela, apenas linhas de código muito operacionais do Java. Isso estaria dentro da lei americana fair use, que permite a utilização de uma parte de uma tecnologia proprietária, caso o trecho copiado não tenha relação direta com a “inteligência” da invenção. Só que os problemas começaram em 2009, quando a Oracle comprou a Sun. No ano seguinte, entrou na Justiça contra o Google alegando quebra de patente e que deveria ter obtido uma licença para usar o código.

Desde então, houve três julgamentos e dois recursos. E em outubro de 2020, chegou na Suprema Corte. Por enquanto, o Google ganhou em duas instâncias e a Oracle em uma. Na primeira fase do caso, de 2010 a 2015, o argumento da Oracle de que APIs podem ser protegidos por direitos autorais prevaleceu, mas suas alegações de violação de patente não. Na segunda fase, que está em andamento desde 2016, a Oracle alega que a estratégia do Google não se encaixa na lei de fair use.

Não é a toa que mais de 20 empresas, como Microsoft, IBM e grupos e associações que representam linguagens de programação como Python e R, estão do lado do Google. Para eles, o caso coloca em risco o princípio da interoperabilidade e de open source. Se a Oracle levar a melhor, as empresas podem ser obrigadas a ajustar seus códigos apenas o suficiente para tornar suas APIs “diferentes” sob a lei de direitos autorais, mas se afastando da tendência dos últimos anos de permitir que os aplicativos se comuniquem entre si. No entanto, ao mesmo tempo, uma vitória do Google pode enfraquecer a proteção de direitos autorais para desenvolvedores. Empresas maiores podem ganhar ainda mais controle, tendo mais recursos para aprimorar os produtos de menores, por exemplo.

O resultado é imprevisível. Com a morte da juíza Ruth Bader Ginsburg o caso pode terminar empatado em 4-4. Era esperado que Ginsburg apoiasse Oracle, já que seu histórico em casos de direitos autorais mostra que tendia a favor dos detentores dos direitos. Caso o empate seja confirmado, prevalece a decisão do tribunal inferior a favor da Oracle, mas não se torna lei. Agora é esperar até junho, quando deve ser tomada uma decisão.

Por Érica Carnevalli

Os bastidores da dança dos robôs

Circulou por aí, no finalzinho do ano, um simpático vídeo, em que um grupo de robôs dança ao som de Do you Love Me, de Berry Gordy Jr. Pois é, aqueles mesmos robôs da Boston Dynamics, que quando foram apresentados ao mundo, mais lembravam robôs de cenas arrepiantes de filmes de ficção científica. Agora Atlas, o humanóide, Spot, o cachorro, e Handle — o que é o Handle? Uma galinha com asas? — dançam com uma inesperada leveza. Não é a primeiro vez que a empresa tenta humanizar seus robôs, uns dois anos atrás Atlas andou praticando parkour por aí. Mas a verdade é que esses desafios são primordialmente focados no aprimoramento da tecnologia. Na última quinta feira, a venerável Spectrum, revista do IEEE, Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos, publicou uma longa entrevista com Aaron Saunders, Vice-presidente de Engenharia da Boston Dynamics, explicando como foi o processo de ensinar, ensaiar e gravar o filme com os robôs.

Aaron Saunders: “Começamos com bailarinos e um coreógrafo para criar o conceito da dança e desenhar uma coreografia inicial. Um dos maiores desafios foi ajustar os movimentos de dança humanos para serem realizados pelo robô. Era um processo iterativo. Literalmente os bailarinos eram filmados dançando e os engenheiros respondiam para cada movimento: ‘isso é fácil’, ‘isso vai ser difícil’, ou mesmo: ‘isso me assusta’. Então discutíamos o assunto, testávamos coisas diferentes, fazíamos ajustes até encontrar uma série de movimentos que eram viáveis para o Atlas executar. Com o tempo fomos ficando melhores, até chegar a um ponto de conseguir ensinar para Atlas um movimento de balé em um único dia. Uma coisa que aprendemos foi a de não menosprezar quão fortes e flexíveis os bailarinos são. É um problema complicado fazer um robô reproduzir um movimento de um atleta de alto desempenho. Chega a ser humilhante. Eu não acredito que o Atlas tenha a força ou flexibilidade de movimento que um desses atletas possui. Mas desenvolvemos constantemente nossos robôs com o objetivo de chegar lá. Porque acreditamos que para nossos robôs poderem ser usados de forma ampla comercialmente, ou mesmo domesticamente, eles vão precisar desse nível de performance.”

“Uma coisa que robôs são muito bons em fazer é repetir a mesma coisa de novo, e de novo, e de novo. Então, assim que programávamos os movimentos, o robô podia repetir continuamente enquanto testávamos ângulos com a câmera. Quando forçamos um desses robôs a repetir movimentos por vários dias seguidos, aprendemos muito sobre sua resistência. Spot, que já é produzido comercialmente, é extremamete robusto e pode dançar o dia inteiro com muito pouca manutenção. Dançar exige muita força, foi preciso inclusive fazer um upgrade em certos componentes do Atlas para dar mais potência à ele. Dançar é talvez a coisa que mais exige explosão de potência que fizemos até hoje. Você pode achar que parkour é mais explosivo, mas a diversidade de movimentos e velocidade que você tem na dança é incrível. Levamos meses desenvolvendo essas capacidades na máquina para ela estar no mesmo nível do algoritmo. É claro que durante o processo tivemos falhas e vimos robôs tomando tombos. Mas uma vez programada toda a coreografia, filmamos tudo em dois dias. A maior parte do tempo foi decidindo como movimentar a câmera pelo meio dos robôs de forma a capturar um take completo de dois minutos. Gravamos diversas vezes, até porque podíamos fazer isso de forma bastante padronizada. Mas não fizemos nenhum corte ou edição naqueles dois minutos da coreografia do vídeo.”

Assista à dança dos robôs.

Por: Vitor Conceição

E os mais clicados dessa agitada primeira semana do ano.

1. Estadão: Quatro pessoas morreram por conta da invasão ao Capitólio.

2. Our World in Data: Painel sobre evolução da vacinação contra Covid-19 no mundo.

3. CNN Brasil: Cientistas russos encontram carcaça de rinoceronte da era do gelo com orgãos intactos.

4. Youtube: Estreou Umbrella, o curta de animação brasileiro que está disputando o Oscar.

5. Axios: Republicanos cogitam usar a emenda 25 para destituir Trump.

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