Edição de Sábado: O pior presidente da história

É sempre uma tarefa ingrata definir quem é um bom líder político e quem não é — e isso vale mesmo para os líderes do passado. A política é sempre percebida pelas lentes das simpatias ideológicas e, com frequência demais, o líder bom parece ser aquele com quem compartilhamos ideias. Mas há critérios objetivos, também, principalmente quando falamos daqueles que ocupam cargos de comando. Que ocupam, por exemplo, a presidência da República. Trinta e sete homens e uma mulher estiveram nesta cadeira desde a proclamação, em 1889. Alguns estiveram ali por só alguns dias — Carlos Luz, Ranieri Mazzilli. Outros foram eleitos mas não tomaram posse e, por isso, não entram na conta. Júlio Prestes foi deposto antes, Tancredo Neves morreu. Ainda assim, alguns critérios objetivos são possíveis de ser estabelecidos. A presidência, afinal, tem objetivos. De cara, a ideia é entregar um país melhor. É construir um ambiente onde as pessoas possam ter uma boa vida — uma vida, no mínimo, garantida. Dar perspectiva de futuro. E, é claro, temos de levar em consideração o contexto de cada época. Se Jair Bolsonaro é o pior presidente da história, este argumento precisa ser construído.

A história da República, desde o momento em que o marechal Deodoro da Fonseca depôs num golpe militar d. Pedro II, pode ser dividida em seis períodos: são três ditaduras intercaladas com três períodos nos quais os chefes de governo eram eleitos pelo voto popular. Como cada um destes períodos tem suas características próprias, um bom início é estabelecer qual o pior presidente de cada um deles.

A primeira ditadura foi curta, exatos cinco anos entre novembros, de 1889 a 1894. Nela houve dois presidentes, os marechais Deodoro e Floriano Peixoto. Este era um carniceiro. Governou quase o mandato inteiro mantendo o país em estado de sítio. Quando Ruy Barbosa entrou com pedido de habeas corpus para opositores presos no Supremo, Floriano resolveu o problema ameaçando os ministros da Corte de prisão. Fez coisas inacreditáveis. Por duas vezes, neste período, a Marinha do Brasil em revolta ameaçou bombardear o Rio de Janeiro, que era capital federal. Na primeira, para evitar a derrama de sangue, Deodoro renunciou ao cargo. Na segunda, Floriano desafiou os almirantes a fazê-lo. E a Marinha abriu fogo contra a cidade, botando a população desesperada em fuga. Na lida com outra revolta, a Federalista gaúcha, que exigia mais autonomia para os estados, o presidente não hesitou em dar ordem de fuzilamento sumário de 185 presos. Sem julgamento: alinhar o esquadrão, apontar, fogo. Um dos executados era um marechal do Exército. Para Floriano Peixoto, não havia lei, não havia preocupação com o povo, com as cidades. Passava por cima e pronto. Governou pela violência, nunca se estabeleceu de fato como presidente, e instável todo o tempo foi substituído pelo primeiro líder eleito do país.

A Primeira República tem muitos nomes. Getúlio Vargas a chamava de República Velha porque, afinal, a sua seria a nova. Café com Leite lembra o domínio que São Paulo e Minas Gerais tiveram a partir daquilo que produziam. República Oligárquica é um apelido mais descritivo. Se estruturou num pacto entre paulistas e mineiros com as oligarquias regionais. Os primeiros compartilhariam a maioria das presidências, em troca os governadores e chefes locais teriam garantidas suas independências. O acordo não funcionou sempre, mas o regime durou quase 36 anos. É, para padrões brasileiros, incrivelmente longevo. Ainda assim, não foi um período estável. Como a maioria das democracias do tempo, pouca gente tinha direito ao voto. E revoltas de toda sorte aconteciam, parecia, a cada ano. Revoltas militares, como a da Chibata, a dos Sargentos, o Tenentismo. Revoltas populares no campo — Canudos, Contestado. Assim como revoltas populares urbanas — a da Vacina ou as inúmeras greves em São Paulo.

Também não é difícil, neste período em que o Brasil foi governado por onze homens, pinçar o pior. É Arthur Bernardes. Se Floriano Peixoto desafiou a Marinha revoltada a bombardear o Rio de Janeiro, Bernardes ordenou ele próprio que o Exército bombardeasse São Paulo. Ele, que era um presidente eleito para um Estado constitucional, passou seu mandato trancado no Palácio do Catete porque não se sentia seguro para sair. Também passou o governo mantendo o país em estado de sítio.

Foram, ambos, presidentes que não governaram. Que não viram outra possibilidade para a resolução de conflitos que não a violência. É verdade, também, que o Brasil comandado por eles era um país muito mais pobre e desestruturado. Que o tempo, no mundo, era mais violento, e guerras, como revoltas sangrentas, eram comuns. Neste período ocorreu não só a Primeira Guerra Mundial como houve conflitos armados nos EUA, no México, em Cuba, na Argentina, na Venezuela, no Paraguai, na Espanha, na Itália, na China, na Itália, em todos os países da África que eram colônias europeias, no Império Otomano, em cada ponta do Império Britânico — e isso para não estender demais a lista. O Brasil não era tão diferente assim do resto do planeta. Mas há, dentro deste contexto, dois líderes que reagiram de forma muito pior às cartas que receberam.

Como a segunda ditadura brasileira foi tocada por Getúlio Vargas do início ao fim, não há como indicar um líder pior ou melhor. Mas na Segunda República, marcada pela Constituição de 1948, não houve pior do que Jânio Quadros. Se a principal missão de um líder democrático é preservar a democracia, nenhum outro de seu tempo traiu o projeto como ele. Quando renunciou ao cargo após sete meses, sem uma explicação convincente, Jânio tinha plena consciência de que o comando das Forças Armadas não queria e resistiria à posse de seu vice, João Goulart. Ele compreendia que deixaria o Brasil, politicamente, numa situação instável, a passos do rompimento constitucional. De fato, o gesto culminou, menos de três anos depois, num golpe de Estado.

Mais de um, entre seus auxiliares, defendem que o objetivo de Jânio era dar ele próprio um golpe. Tinha esperança de que o povo, ou políticos, ou militares, em desespero tornariam a ele, concedendo poderes de ditador, clamando pelo retorno. Se foi isso, era delírio, não aconteceu. Não é só a renúncia irresponsável, porém, que faz de Jânio um mau presidente. Ele não tinha uma visão de país e isto era algo que os presidentes do tempo tinham. Getúlio era o homem da construção do Estado, da modernização, o organizador do trabalho em corporações. Juscelino Kubitscheck emanava otimismo e mirava um futuro que fez refletir na arquitetura ousada proposta por Oscar Niemeyer para Brasília. Se foi boa a decisão de mudar a capital é um tema ainda em debate, mas aqueles edifícios anunciavam um Brasil à frente do tempo. Mesmo Jango, com sua presidência irregular e acidentada, era um herdeiro da visão de Getúlio. Jânio — nada. Não tinha uma história para contar a respeito de que Brasil imaginava, que país gostaria de entregar. Seus meses no poder, perdeu-os tentando proibir biquínis. Foi um governo medíocre, incapaz de inspirar e que custou ao país sua democracia.

No período militar, também parece fácil identificar em Emílio Garrastazu Médici o pior de todos. Com nenhum outro dos generais ditadores a diferença entre o Brasil da propaganda e o Brasil da realidade foi tão aguda. A economia, artificialmente sustentada, estava bombando no Milagre, mas no ministério todos tinham consciência de que estava para implodir. Médici não era como Jânio — ele propunha uma visão. Foi o Brasil que fez a Transamazônica e a Ponte Rio-Niterói, obras gigantes e caríssimas. Assinou o acordo para Itaipú. Instalou o Mobral para alfabetizar adultos e lançou o Projeto Rondon, que convidava estudantes universitários a conhecer o país enquanto prestavam trabalho voluntário. A população era convocada a servir ao Brasil. Enquanto isso, a repressão política estava a toda. Foi o auge do AI-5, a tortura era generalizada, pessoas simplesmente desapareciam — é o caso do ex-deputado Rubens Paiva.

Há algo de cruel neste contraste. No governo anterior, de Arthur da Costa e Silva, a oposição popular estava nas ruas, em passeatas. No que o sucedeu, de Ernesto Geisel, o Congresso Nacional chegou a ser fechado. Havia ditadura e a ditadura não conseguia fingir ser outra coisa. Com Médici, não. Em nenhum outro período a violência dos porões do regime foi tão incentivada pelo Planalto enquanto se vendia ao país o presidente no estádio de futebol, radinho de pilha ao ouvido, os noventa milhões em ação. O mais próximo que o país teve de um governo totalitário — algo como o nazismo ou o stalinismo ou o governo dos Kim na Coreia do Norte — foi Médici. Um regime de terror que expõe uma cara artificialmente feliz, cravejada de símbolos nacionais, e convence boa parte da população de que tudo vai bem. Nada ia bem.

(Não se trata, aqui, de afirmar que foi como o nazismo, o stalinismo ou os Kim, porque o Brasil não teve algo do tipo em sua história. É só que nenhum presidente chegou tão perto.)

E Bolsonaro?

A história do Brasil é farta em maus presidentes. Jair Bolsonaro é uma síntese dos defeitos de seus piores. Seu instinto para resolução de problemas é o mesmo de Floriano Peixoto e Arthur Bernardes: a violência. A diferença é que, diferentemente do mundo de um século atrás, ele não pode bombardear São Paulo ou qualquer canto do país. Seria inadmissível. Mas incentiva a violência de policiais contra a população pobre assim como a violência política por parte de seus apoiadores. Mais de uma vez afirmou que o objetivo de facilitar acesso a armas é para que a população resista às decisões de governadores, o que seria inconstitucional. E como tem falado de estado de sítio.

Assim como Jânio Quadros, falta a Jair Bolsonaro uma visão de país. Ele não é um líder capaz de inspirar e não tem conseguido articular uma ideia de que Brasil considera ideal, como este país se destacaria mundialmente, com que rosto se mostraria no futuro. Tem os cacoetes moralistas nos costumes de Jânio e só. E, assim como Jânio, também eleito numa democracia a toda hora atenta contra ela. Seu filho Zero Três fala em fechar o Supremo, todos na família evocam o AI-5. E, claro, seu modelo de presidente é obviamente Médici. Bolsonaro é nostálgico de slogans como Brasil, ame-o ou deixe-o, tenta trazer para si a simbologia do presidente que gosta de futebol, além de idolatrar Carlos Alberto Brilhante Ustra, o principal torturador do tempo da Ditadura.

Mas é possível ir mais fundo no argumento de que Bolsonaro é particularmente ruim na função. Em teoria da liderança, o estudo do que faz bons líderes, uma das primeiras distinções que os especialistas apontam é a entre o líder posicional e o inspirador.

O líder posicional tem poder porque calhou de ocupar um cargo de liderança. Vale para um gerente ou para o presidente da República. Para quem não tem a capacidade de inspirar, de motivar, resta apenas o argumento do cargo. Este tipo de líder quase sempre tem consciência de sua inadequação e, por isso mesmo, não raro é autoritário. Precisa constantemente lembrar que está no poder e não tem muita percepção — ou preocupação — com o impacto de suas ações sobre os outros. O que sempre acontece com este tipo de líder é que aos poucos suas equipes de comando vão se deteriorando. Os que pensam com a própria cabeça saem, aqueles subservientes ficam. O resultado são equipes que não pensam, só obedecem. Ao invés de o time ser capaz de criar e conseguir resultados ainda maiores do que o líder sozinho seria capaz de alcançar, pela criatividade coletiva, fica só o mínimo denominador comum do alcance de visão de um líder que em geral já tem grandes limitações.

Para consultores em gestão, quanto mais alto o cargo de um líder destes, maior a ameaça que representa para a empresa. Em democracias é mais delicado. Presidentes não são demissíveis e Repúblicas não têm conselhos administrativos. No caso de Bolsonaro, um de seus principais limites é também uma característica que o faz único na história do Brasil. Nunca houve um presidente que não pelo menos ambicionasse governar para todos os brasileiros. Bolsonaro governa para os seus 20 a 30%. É uma tática que visa a eleição de 2022 — se garantir esta base, chega ao segundo turno. Não tenta ampliar seu eleitorado, aposta que num ambiente polarizado o desgosto com o adversário pode levá-lo à reeleição. É seu cálculo.

Há outros argumentos menos metafísicos — o das obrigações que vêm com o cargo, por exemplo. Ao assumir a presidência após sua eleição, o político faz o juramento escrito no Capítulo II, Seção I, artigo 78 da Constituição: o de “defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil”. Isto quer dizer que há uma visão básica de país que ele não escolhe, já foi definida pela Assembleia Constituinte que encerrou seu trabalho em 1988. Quer dizer, também, que ele ocupa um cargo com essencialmente três comandos. O do Estado, o do Governo e o das Forças Armadas.

Quando inventa crises artificiais com nações que antes eram amigas, ele trai sua obrigação como o chefe de Estado que chega com políticas de Estado já determinadas. É sua obrigação constitucional manter boas relações com as outras nações. Como chefe militar deve respeitar a hierarquia — o que frequentemente não faz, na constante celebração dos praças em cerimônias de formatura, como se tentasse os conquistar atravessando generais e coronéis. O movimento em direção a policiais militares, cuja revolta incentivou no Ceará contra o governo estadual, é similar. O último decreto de armas que publicou tentava tirar das Forças Armadas a capacidade de controlar a venda de armamento e munição.

Sobra a chefia de governo. A garantia das terras e da segurança dos povos indígenas é sua obrigação constitucional. Assim como é sua obrigação preservar o meio ambiente e as reservas federais. E, claro, está lá explicitamente no título VIII, capítulo II, seção II, artigo 196. “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução de risco de doença e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção.”

Neste momento, todas as nações do G-20 ou da OCDE têm uma política para combate à pandemia que inclui isolamento social, máscara quando sair à rua é necessário, limpeza das mãos e vacinação ampla. Quando boicota todas estas ações, quando não assegurou no ano passado amplo e variado estoque de vacinas, o presidente Jair Bolsonaro está em flagrante desobediência de uma de suas mais importantes obrigações. A de estabelecer políticas que garantam redução do risco de doença. Não é ele quem decide que políticas devem ser tomadas. São os técnicos especializados que o aconselham. Quando troca ministros seguidamente por desejar ignorar suas recomendações, há quebra de seu juramento.

Bolsonaro tem as piores características dos piores presidentes e defeitos graves que são seus próprios — a incapacidade de liderar para todos, a incapacidade de inspirar, a incapacidade de ouvir. E com tudo isto viola suas obrigações constitucionais as mais básicas de uma forma que nenhum líder desta nossa Terceira República violou.

Trinta e sete homens, uma mulher. Muitos tiveram vários destes defeitos, destas deficiências. Só Bolsonaro tem todos.

O estado da globalização em 2021

O início da pandemia de Covid-19 em 2020 fez com que os fluxos entre países despencassem bruscamente, levantando receios de que o longo período de globalização que o mundo vive pudesse estar sendo revertido, e que o mundo poderia estar entrando em um período de regionalização das cadeias de suprimento. Um estudo publicado essa semana na Harvard Business Review mostra que, apesar da pandemia, a globalização segue firme e forte no mundo. Os dados mostram que a pandemia de covid não deve derrubar o nível de globalização para baixo do ponto em que chegou na época da crise financeira de 2008, quando houve o maior recuo dos fluxos globais das últimas décadas. O índice da DHL de conectividade global é baseado em mais de 3,5 milhões de pontos de dados divididos em quatro pilares: comércio, capital, informação e pessoas. O único pilar que mostra uma queda sem precedentes causada pela covid é o do fluxo de pessoas.

A recuperação do comércio mundial foi mais rápida do que as mais otimistas previsões do início da pandemia. O comércio de bens caiu mais rápido entre março e abril de 2020 do que durante a grande depressão e do que na crise financeira de 2008. Mas voltou a crescer em junho e se recuperou aos nível pré-pandêmicos em novembro. O comércio de ítens de saúde e eletrônicos disparou na medida que o distanciamento social migrou gastos com serviços locais — como restaurantes — para bens importados. A recuperação do comércio deve acabar com a ideia de que as redes globais de suprimento seriam substituídas por redes regionais. Muitas empresas já engavetaram planos de concentração de suas cadeias de suprimentos.

Os fluxos de investimento entre países foram impactados ainda mais fortemente pela covid do que o comércio exterior. Investidores retiraram recursos de mercados emergentes de forma recorde no começo da pandemia, mas rapidamente estes fluxos se estabilizaram e foram se recuperando no final do ano. Políticas monetárias ousadas praticadas pelos bancos centrais conseguiram impedir uma segunda crise financeira mundial. Por outro lado, investimentos corporativos internacionais continuam reprimidos neste início de 2021. O fluxo de investimento estrangeiro direto caiu 42% em 2020 para um nível que não era visto desde a década de 90. Empresas estão cautelosas em seus planos de novos investimentos. Mas o mercado de fusões e aquisições começou a mostrar sinais de recuperação no final de 2020. A expectativa é de que o investimento corporativo comece a se recuperar na medida em que os países voltem à vida normal após a vacinação.

Os fluxos globais de informação estavam dando sinais de fraqueza antes da pandemia. Nos últimos meses, diversão e educação migraram para o online e estes fluxos voltaram a crescer. O tráfego internacional de Internet subiu 48% de meados de 2019 para meados de 2020 A quantidade de minutos de ligações telefônicas internacionais cresceu 20%. Projetando para a frente, o crescimento dos fluxos digitais deve se reduzir na medida em que a pandemia vá sendo controlada e as pessoas voltem ao trabalho presencial. Mas o boom digital de 2020 acelerou duas mudanças profundas no ambiente de negócios: a súbita necessidade de trabalhar remotamente ensinou às empresas formas de aproveitar melhor os talentos globais, permitindo a contratação de pessoas que moram em outros países. O boom do comércio eletrônico ensinou também que pequenos negócios podem buscar acordos por todo o globo. Por outro lado isso significa que tanto empresas grandes como pequenas precisam ficar atentas para novos competidores externos surfando essa onda para entrar em seus mercados.

O fluxo de pessoas, por sua vez, foi de todos o mais afetado. A mobilidade teve de sofrer restrições para reduzir a transmissão do vírus, gerando uma queda sem precedentes. O número de pessoas viajando para outros países caiu 74% em 2020 e as viagens internacionais não devem recuperar os níveis pré-pandemia antes de 2023. Apesar dessa queda, a conclusão do estudo é de que a pandemia não causou um recuo da globalização. Se oportunidades internacionais eram importantes antes da pandemia, elas continuarão sendo em 2021 e no futuro próximo.

De herói a ofensa e (talvez) de volta

“Então essa é a senhorinha que começou esta guerra?” Historiadores debatem se a frase atribuída por Charles Edward Stowe a Abraham Lincoln é ou não verdadeira, mas ela reflete o peso sobre o movimento abolicionista nos Estados Unidos e, consequentemente, sobre a Guerra de Secessão (1861-1865), da escritora Harriet Beecher Stowe (1811-1896), mãe de Charles. Mais precisamente, o peso de sua obra mais famosa, A Cabana do Pai Tomás (Uncle Tom’s Cabin, pdf em inglês), cuja primeira edição foi publicada há exatos 169 anos.

Os capítulos do livro já vinham sendo publicados desde 1851 no jornal abolicionista The National Era, de modo que o público conhecia a trama — a ponto de Stowe achar que ninguém se interessaria pelo livro. Porém, ao ser lançado naquele 20 de março de 1852, ele se tornou, segundo especialistas, o primeiro best-seller, vendendo três mil exemplares em apenas um dia. Ao fim do ano, havia vendido 300 mil cópias — num país com uma população de 23 milhões de pessoas.

Poucas obras de ficção, antes ou depois, tiveram tanto impacto sobre uma sociedade. No Norte, galvanizou o sentimento abolicionista e fortaleceu o movimento pelo fim da escravidão em todo o país. No Sul, escravista, foi motivo de revolta, com protestos e publicações contestando a visão brutal da escravidão que Stowe retratava. Talvez a “senhorinha” não tivesse começado a guerra, mas certamente seu livro deu muito combustível para que o conflito eclodisse.

No entanto, hoje o livro e seu personagem-título são praticamente um anátema. Desde a metade do século 20, ele passou a ser visto como uma coletânea de estereótipos racistas, com “Uncle Tom” virando uma ofensa, o negro subserviente que tudo faz para agradar seus senhores brancos. Mas qual o motivo dessa mudança de visão? Anacronismo? Correção política? Ou algo completamente diferente?

Stowe era de Connecticut, onde a escravidão fora abolida definitivamente em 1848. Abolicionista militante, decidiu escrever sua estória em protesto contra a Lei dos Escravos Fugidos, de 1850, que obrigava a devolução a seus senhores do Sul dos escravos que conseguissem escapar para o Norte. A narrativa foi baseada, segundo ela, em depoimentos desses fugitivos, mas também na autobiografia de Josiah Henson (pdf em inglês), que fugiu do cativeiro no Sul e se refugiou no Canadá, publicada em 1849.

Na Cabana, Tom (ou Tomás) é um escravo separado da família e vendido seguidamente a senhores do Sul, terminando nas mãos do cruel fazendeiro Simon Legree. Ele é trabalhador, mas sempre se opõe aos desmandos do senhor — pelo menos uma vez é espancado por se recusar a chicotear outro cativo. No fim, é espancado até a morte por não revelar onde estavam escondidas duas mulheres negras violentadas por Legree. Como um personagem assim se tornou uma ofensa?

Para Patricia Turner, professora de Estudos Afro-Americanos da Universidade da Califórnia em Davis, Uncle Tom foi vítima da própria popularidade. Desde sua publicação, o livro foi adaptado em peças populares, folhetins e, depois, histórias em quadrinhos e filmes. Seu caráter de resistência foi sendo esvaziado e paulatinamente substituído pela figura hoje execrada pelo movimento negro.

“(As adaptações) distorceram grotescamente Tom, transformado num homem mais velho do que no livro, alguém que fala errado e que faz o oposto do personagem literário, que vai delatar qualquer outro negro para agradar um senhor ou uma senhora”, diz a pesquisadora. “Muitos afro-americanos não odeiam a estória que Stowe escreveu, só não a conhecem”, conclui.

O jornalista inglês Gary Younge, filho de imigrantes de Barbados, é outro que defende a reabilitação de Tom. Ele lembra que o livro foi saudado como obra prima por nomes como Ivan Turgenev, Victor Hugo, Leon Tolstoy e George Eliot, além de ser a leitura favorita da infância de Lênin.

De um lado, há o anacronismo, a tendência a analisar uma época diferente sob a ótica atual, pecado mortal de quem estuda história — se publicasse hoje sua pungente A Última Crônica, Fernando Sabino talvez apanhasse na rua. De outro, há a inaceitável passada de pano — racismo no século 19 continua racismo no século 21; é impossível ler O Covil do Verme Branco, de Bram Stoker (pdf em inglês), sem um embrulho no estômago. No meio está Uncle Tom, um personagem que mudou a história de um país e que não merece o pouco crédito que lhe dão no aniversário de seu nascimento.

Criptoativos aquecem o mercado e o planeta

Os criptoativos estão em alta. Os sucessivos recordes do bitcoin, o surgimento da chamada criptoart com base em tokens não fungíveis (NFTs), são só alguns dos ativos de mais sucesso. Trazem vantagens, seja para investidores que se arriscam com as criptomoedas, ou artistas que vendem suas artes virtuais. Porém, como qualquer outro consumo, há um custo ambiental. E quanto mais popular se tornam, mais recursos seus ecossistemas consomem e mais a discussão do seu impacto no meio ambiente ganha força.

Apenas o bitcoin, a criptomoeda mais usada, consome mais energia por ano do que a Argentina, segundo o mais novo estudo da Universidade de Cambridge. Entre os países seria o 29º maior consumidor de energia do planeta, o que representa 0,5% do consumo global.

O responsável é o processo chamado de mineração. Os criptoativos não são controlados por nenhuma autoridade fiscal, como os bancos centrais. No lugar, as negociações são feitas pelos “mineradores”. Aqueles que controlam uma rede de computadores de alta tecnologia que competem entre si para resolver equações complexas de matemática para completar as transações. São codificadas usando blockchain, que torna a operação mais segura e evita que o mesmo token digital possa ser gasto mais de uma vez.

Mas os mineradores não fazem esse trabalho de graça. Tem como incentivo o pagamento em bitcoin, um modelo conhecido como “prova de trabalho”. O que significa que, quanto mais popular a moeda se torna, mais concorrência há para minerar novos tokens.

Em 2011, esse processo era feito em um notebook comum. Só que hoje, com mais de 18,5 milhões de bitcoins já extraídos o computador comum não consegue mais minerar. Quanto mais bitcoin é extraído, mais difíceis se tornam os algoritmos que devem ser resolvidos. Com a maior competição, a mineração passou a ser feita em galpões com hardware especializado.

Esse processo encoraja a instalação dessas plataformas em locais onde a energia é mais barata, o que muita vezes significa mais poluente. A Universidade de Cambridge estima que 38% da mineração é abastecida por carvão. Não por acaso, quase metade da mineração mundial de bitcoin está na China, onde a energia é fornecida por usinas movidas a carvão e também hidroelétricas.

Empresas como Tesla e BlackRock, a maior administradora de fundos do mundo, já estão sendo questionadas por investir em criptomoedas apesar de serem grandes defensores de metas sustentáveis. Uma única transação de bitcoin tem a mesma pegada de carbono de 680 mil transações Visa ou 51.210 horas de vídeos no YouTube.

Para os defensores, a solução está em energias sustentáveis, como eólica e solar - já são responsáveis por pelo menos 39% da energia consumida de criptomoedas. Mas isso ainda não resolve o gasto excessivo de energia do processo de mineração. Os recentes apagões no Irã, por exemplo, foram atribuídos ao bitcoin.

Já há movimentos para mudar o sistema. O Ethereum blockchain, uma das maiores plataformas criptográficas existentes atualmente, prometeu alterar para um padrão com menos consumo, passando de um modelo de “prova de trabalho” para um de “prova de aposta”. Dessa forma, os mineradores seriam selecionados aleatoriamente para completar a transação e receber a criptomoeda em troca. Já há pelo menos um mercado de NFT, o TopShot da NBA, uma plataforma para negociação de clipes de destaques da liga de basquete, que adota esse sistema.

Mas esses novos tipos de blockchain distanciam os criptoativos de sua missão inicial de criar uma rede descentralizada na qual qualquer um pode fazer transações sem a supervisão de uma instituição. Mesmo assim, a popularização cada vez maior dos criptoativos também significa mais apoiadores de alternativas sustentáveis e mais chances de encontrar uma solução. Os artistas que entraram nesse meio por causa dos NFTs, por exemplo, têm pressionado por mudanças e já criaram iniciativas para encorajar novos meios de mineração.

A verdade é que com a sua recente popularização, os criptoativos têm chamado mais atenção pelo seu impacto no meio ambiente. Mas são só a ponta de um problema que se tornará mais comum à medida que o poder da computação cresça nos próximos anos com os serviços digitais. Enquanto isso, apenas cerca de um quinto da eletricidade usada nos data centers do mundo vem de fontes renováveis. E isso não é o suficiente para um mundo que precisa de novos padrões de sustentabilidade.

E antes do fim, os mais clicados desta semana:

1. Time: Primeira entrevista e fotos do ator canadense Eliott Page desde que se assumiu como um homem transgênero.

2. Tem gente com fome: Campanha para ajudar quem realmente precisa de apoio nestes tempos de pandemia.

3. Estação Nerd: Em quais plataformas de streaming você pode assistir ao Snyder's cut da Liga da Justiça.

4. O Globo: Principais medidas adotadas por estados para frear o avanço da Covid-19.

5. Folha: Cúpula do congresso e ministros agem para tentar emplacar Ludhmila no ministério da saúde apesar dos ataques dos Bolsonaristas.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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