Edição de Sábado: Biden, o radical

Quando Ronald Reagan chegou ao Capitólio numa manhã atipicamente quente para um 20 de janeiro, em 1981, ele se vestia ainda como um homem de outro tempo. Terno completo — a calça e paletó pretos, o colete e a gravata num tom claro de cinza. Abotoaduras. Douradas. Ele próprio modernizaria a vestimenta na segunda posse, apenas quatro anos depois, dispensando o colete, usando gravata marrom listrada. Mas isso foi só depois. Naquele dia, após jurar a Constituição, beijar na bochecha a mulher Nancy, ao som da marcha Here Comes the Chief Reagan cumprimentou seu antecessor Jimmy Carter e se pôs perante o microfone com um sorriso ligeiro. Deu ao discurso um tom formal e ao mesmo tempo fluido. Ele sabia ser eloquente, mas naquela manhã preferiu um cuidadoso equilíbrio entre o formal e a conversa amiga, sempre sério, nunca coloquial demais, mas direto ao ponto. O velho ator, com pleno domínio da arte de estar no palco, queria passar franqueza. Conseguiu. “Indústrias sem produzir deixaram trabalhadores desempregados”, ele explicou. “Aqueles que conseguem trabalhar lhes tem negado o retorno de seu suor por um sistema de impostos que penaliza o sucesso e diminui a produção.” O novo presidente seguiu então com o diagnóstico que fazia do país para arrematar com duas frases que se tornariam célebres e sacramentariam uma maneira de compreender o mundo que perduraria pelas quatro décadas seguintes. “Na crise atual, o governo não é a solução para nosso problema”, ele disse. “O governo é o problema.”

Com dois meses de Casa Branca, Joe Biden é o primeiro presidente americano desde Reagan a questionar de frente este princípio. E o que as pesquisas vêm dizendo é que não só eleitores democratas mas até um número considerável de eleitores republicanos concordam com a nova postura. O novo presidente já conseguiu aprovar, no Congresso, um plano de estímulo para evitar que a economia afunde por conta da pandemia de Covid 19: US$ 1,9 trilhões. É um tico mais do que o tamanho do PIB brasileiro em 2019. Agora, tem altíssimas chances de aprovar outro pacote para investimento em infraestrutura — mais US$ 2 trilhões. O novo presidente americano deseja um Estado radicalmente ativo.

Não costumamos pensar em ideologia como moda — mas ideologias são muitas coisas, dentre elas, moda. Ideias com as quais grupos ou mesmo sociedades inteiras se encantam por um tempo, que no contexto de uma era fazem sentido, mas que com o passar do tempo passam a ser mais e mais questionadas até que caem. É possível que a maneira de compreender a relação entre Estado e sociedade inaugurada no governo por Margaret Thatcher, no Reino Unido, e Ronald Reagan, nos EUA, esteja chegando ao fim.

Esta transformação se dá, porém, em um contexto. O último presidente a transformar o paradigma da relação entre Estado e sociedade nos EUA, Ronald Reagan, vinha desde a década de 1950 moldando seu discurso. Ator de filmes de guerra e westerns nas décadas de 1940 e princípios dos 50, ele foi contratado pela General Electric após o surgimento da televisão para fazer publicidade e circular o país promovendo uma visão de mundo que incluísse impostos menores para grandes corporações. Seu carisma, a habilidade com as palavras, o tornaram o porta-voz ideal da GE — companhia dominante na economia americana por quase todo o século 20. Até chegar àquele 20 de janeiro no Capitólio, Reagan havia passado já um quarto de século promovendo, refinando, e se tornando o principal porta-voz não mais de uma gigante de Wall Street, mas de uma transformação cultural em favor do Estado mínimo.

Joe Biden também vem de uma circunstância muito particular. Antes de chegar à Casa Branca, já havia sido vice de um presidente democrata que fez de tudo para celebrar acordos bipartidários no Congresso. Ao fim de cada rodada de negociação, Barack Obama conseguia dois ou três votos do outro partido, se tanto, sempre ao custo de enfraquecer em muito seus projetos e atrasar irremediavelmente a aprovação de outros. Esta foi a tática republicana durante os dois mandatos de Obama. Postergar negociações, tornar sempre tímidos os projetos de lei, e ao fim não entregar votos. A derrota de Hillary Clinton para Donald Trump, em 2016, é atribuída parcialmente ao pouco que Obama mexeu na rede de proteção social.

Biden escolheu agir diferentemente e consegue fazê-lo por conta de sua história pessoal. No Senado, tem uma margem tão estreita que não pode perder um único voto de sua bancada. Ocorre que ele passou a vida adulta dentro do Senado. Nunca esteve na Câmara como deputado. O presidente americano se elegeu senador em 1973, aos 30 anos, e só deixou a Casa em 2009 para acompanhar Obama ao comando do país. Ele sabe como pensam senadores, que acordos são necessários fazer, onde precisa ceder. E onde não precisa. No Salão Oval se senta um político de talento raríssimo na lida com Legislativo, que escolheu assumir o cargo sem se obrigar a negociar com os adversários. Está aprovando projetos agressivíssimos sem margem de perda de um único voto. E conseguindo.

Mas não é só habilidade política somada à experiência ruim na lida com os republicanos. Há, também, cinco características do contexto mundial que são importantes e empurram a mudança de paradigma.

As primeiras duas características são problemas de grande porte que precisam ser resolvidos. Um é o das mudanças climáticas. Enfrentar a questão é complexo, exige a presença de Estados ativos nas negociações diplomáticas e no investimento de recursos. O setor privado não vai assumir a conta e grandes acordos entre países só são possíveis através de seus governos. O outro é o da desigualdade. A questão vem sendo debatida em espaços como o Fórum Econômico Mundial há mais de dez anos e o argumento do economista francês Thomas Piketty convenceu. Em seu livro O Capital no Século 21, de 2013, ele demonstrou como a concentração de riqueza na mão de poucos é um problema que se agrava com o tempo. O crescimento do PIB, no arco de décadas, é menor do que o do retorno de capital. Ou seja, fortunas crescem num ritmo maior do que as economias. Ricos tendem a ficar com um percentual cada vez maior do dinheiro numa sociedade com o rolar dos anos. Só um regime de tributação novo é capaz de resolver isso, sugeria Piketty.

Para financiar seu plano de investimento de US$ 2 trilhões em infraestrutura, Biden mandou uma ex-presidente do Fed, o banco central americano, circular pela Europa. É Jannet Yellen, sua secretária de Tesouro — ou ministra da Fazenda. Sua proposta às outras grandes economias do Ocidente é simples. Os EUA concordam que empresas americanas de tecnologia tenham seus serviços taxados por cada país. Em troca, se encerra um ciclo que já dura trinta anos de guerra fiscal, no qual nações vão diminuindo cada vez mais impostos para grandes corporações com o objetivo de tentar atraí-las. Entre 2000 e 2018, a alíquota média cobrada de grandes empresas nas grandes economias caiu de 32% para 23%. É do interesse de todos, caso o argumento de que Estados precisam ser mais ativos cole.

A terceira e a quarta das características que empurram a transformação não são problemas, são circunstâncias. Uma é a pandemia da Covid-19, que deixou claro para inúmeros países da OCDE que suas infraestruturas estatais estão deficientes. Os Estados diminuíram tanto desde Reagan e Thatcher que se tornaram aceleradores do processo de desigualdade. Não é só imposto o problema. Por falta de serviços públicos robustos o suficiente para garantir a equivalência em direitos de todos os cidadãos, a pandemia está matando principalmente entre os mais pobres. Em poucos países ricos isto é tão claro quanto nos Estados Unidos.

A outra circunstância é a onda populista e autoritária que ameaça democracias por toda parte. É justamente num ambiente em que a desigualdade se tornou mais aguda, e portanto a insegurança de grandes estratos da sociedade aumenta, que populistas fazem seu ninho. Para que democracias se defendam, é preciso reduzir a disparidade.

E, por fim, há a China. Esta nova Guerra Fria não é como a do século 20. A União Soviética podia ser uma adversária formidável para os EUA em armamentos, mas em avanço tecnológico e estabilidade da economia não tinha como fazer frente. Contra a China não há corrida armamentista — mas os EUA já estão ficando para trás em inteligência artificial, produção de microchips e técnicas de geração de energia limpa. Enquanto isso, a economia chinesa só cresce. Desta vez, o regime que se apresenta como uma alternativa às democracias liberais não é o velho comunismo. É um capitalismo de Estado ditatorial que, no entanto, cresce, se desenvolve e distribui.

A grande disputa geopolítica do próximo quarto de século será a entre o modelo chinês e o das democracias liberais, EUA à frente. No momento, Beijing está levando a melhor.

Mudanças climáticas, desigualdade, a pandemia da Covid, a explosão de populismos e a disputa com a China. O Estado mínimo de Reagan e Thatcher não enfrenta esta briga, como aliás não enfrentou a contra a União Soviética. Foram Estados Unidos com amplo investimento público em infraestrutura, pesquisa e desenvolvimento desde os anos 1930 que venceram os soviéticos. Quando o Estado mínimo assumiu, a URSS já vivia a crise econômica que a levaria ao fim.

Investimento público mesmo. Foram projetos do governo americano que levaram ao microchip, à internet, ao mouse, ao browser da web e ao GPS. As fundações da atual era digital foram financiadas pelo contribuinte. Mas uma transformação tão radical da maneira de pensar não ocorre sem um amplo debate público. E ele está nas páginas da imprensa e nas redes sociais, angariando defensores mesmo onde não se esperaria há alguns anos.

“O governo deveria ser mais ativo em seus investimentos?”, se perguntou no último dia 25 David Brooks, colunista do New York Times e um dos mais respeitados analistas conservadores americanos. “Deveria distribuir mais dinheiro a quem está em desvantagem em nome da decência básica e para restaurar coesão social?” Brooks defende que Biden é um presidente transformador. “Este é o momento em que nós americanos estamos repensando nossos valores mais fundamentais assim como o sistema político e econômico que nasceu destes valores. Isto é necessário. É grande.”

Talvez mais surpreendente seja a mudança de tom editorial da revista The Economist, bastião do liberalismo britânico desde a década de 1840. Em colunas, editoriais e reportagens tornou os cinco temas que movem a transformação em sua pauta constante. Desde a eleição de Donald Trump, em 2016, o tom editorial da revista vem se tornando cada vez mais simpático à nova concepção de Estado.

Em 9 de março, um destes artigos foi assinado pelo empreendedor serial Scott Galloway, respeitado no Vale do Silício pelo que entende da indústria, convocado pelos editores a defender o novo entendimento. “Nas últimas décadas, muitos americanos confundiram liberdade com egoísmo, adotaram a visão de que nossas liberdades se sustentam por si, que não exigem sacrifícios ou ação coletiva para que se mantenham”, escreveu. “Mitos têm seu lugar, e a devoção que os EUA dedicam a inovadores individuais inspira verdadeiras conquistas. Mas o mito se torna uma deficiência quando uma sociedade fica tão encantada com a ideia de sucesso individual que esquece, até mesmo ataca, as instituições que permitem este mesmo sucesso. O mito nacional do individualismo se tornou tão exagerado em nossa cultura, na política e na economia que eliminou nossa percepção de comunidade e responsabilidade.”

O ambiente está posto para que uma transformação de grande impacto ocorra. A Casa Branca batizou o agressivo projeto de US$ 2 trilhões de investimento em infraestrutura. É marketing reverso: um nome burocrático para que assuste o menos possível. Mas é, em essência, o Green New Deal proposto faz já dois anos pela deputada Alexsandria Ocasio-Cortez e outros membros da bancada mais à esquerda do partido. A referência ao plano de Franklin Delano Roosevelt para combater a Grande Depressão dá mostras da ambição.

Biden, porém, é um centrista discreto que trabalha mais nos bastidores do que nos palanques. Assim, o plano não é só de gastos do governo — o equilíbrio fiscal é mantido via aumento de impostos para grandes corporações. É um centrista discreto realmente disposto a buscar algo grande — tão grande quanto a negociação simultânea de um aumento global das alíquotas de impostos. E ele montou, para isso, um governo de profissionais como ele discretos e centristas. É o caso de Janet Yellen, como é o caso de John Kerry. Candidato à presidência democrata em 2004 e secretário de Estado no segundo governo Obama. Hoje é o diplomata encarregado de negociações ligadas ao Meio Ambiente. Depois dos ex-presidentes vivos, não há nos EUA maior status político do que este e só duas pessoas foram candidatas à presidência do país e ocuparam o comando da diplomacia: Kerry e Hillary Clinton. Assim, na hierarquia interna do Partido Democrata, após o líder que é Biden estão Obama e Bill Clinton, os ex-ocupantes da presidência. Daí vêm Kerry e Hillary. É uma forma de a Casa Branca sinalizar a importância do tema e de garantir resultados pela experiência. Um time de profissionais discretos, experientes, centristas, cujos passados já comprovaram suas habilidades. Todos dispostos a ser radicais nas conquistas.

O dinheiro em “infraestrutura” vai desenvolver energia limpa, garantir acesso a internet rápida por todo o país, espalhar faculdades comunitárias, até tirar o chumbo do encanamento de prédios públicos. Como o New Deal, é uma oportunidade de gerar empregos ao passo que reforma o país e o aponta para o futuro. Para o enfrentamento da China numa lógica que escapa ao nacional-desenvolvimentismo latino-americano. Não entram no jogo estatais ou campeãs nacionais. Os pesados investimentos serão pulverizados entre governos locais e empresas de todo porte, espalhando ao invés de concentrar.

Distribuindo.

O culto do WeWork

“Você faz parte de um culto?”. Essa foi a pergunta feita a um ex-funcionário do WeWork após contar sobre o seu trabalho. Esse caso é relatado no documentário WeWork: Or the Making and Breaking of a $47 Billion Unicorn, lançado recentemente no Hulu, sobre a história de uma das startups mais controversas dos últimos anos. Da mesma forma que em pouco tempo viu sua avaliação chegar a US$ 47 bilhões, em questão de dias após começar o seu processo de IPO, investidores começaram a questionar os números inflados e o comportamento do controverso fundador e CEO Adam Neumann, resultando no fim de seu reinado.

O documentário foca particularmente na figura de Neumann e, para além de sua posição de CEO, como criou uma base de seguidores fiéis que operavam como se fizessem parte de um grupo religioso. O filme não consegue mergulhar a fundo na personalidade do líder — ele obviamente se recusou a participar —, mas oferece um novo olhar, com cenas dos bastidores e depoimentos de ex-funcionários, e como Neumann apresentou uma visão que ressoou com o desejo nascente nos anos 2010 dos millennials de encontrar lucro aliado a propósito em seus trabalhos.

A ideia que foi bem vendida por Neumann para seus funcionários e principalmente investidores é de que o WeWork não estava apenas criando espaços de coworking, mas estava mudando o mundo. Após a crise financeira de 2008 deixar milhares sem emprego, Neumann e seu sócio e arquiteto Miguel McKelvey viram a oportunidade de dividir espaço de escritórios em pequenas áreas que poderiam ser alocadas por autônomos e startups. Assim, em 2010, surgiu o WeWork.

Rapidamente Neumann — e o seu negócio — entraram no radar dos investidores. Com o seu jeito carismático e convincente, o CEO conseguiu atrair mais de US$ 12 bilhões em capital de risco. “Como Steve Jobs, ele é muito bom em ver a longo prazo”, disse, em 2019, Walter Isaacson, autor da biografia do ex-CEO da Apple. Masayoshi Son, CEO da SoftBank chegou a dizer que o WeWork seria o próximo Alibaba. O banco japonês investiu US$ 7,5 bilhões na startup, sendo o seu principal investidor.

Com dinheiro entrando em escala exponencial, Neumann foi criando uma comunidade. Funcionários chegaram a morar juntos em coliving da empresa. Várias vezes no documentário o CEO aparece puxando gritos de guerra e falando palavras como “unir as pessoas” e “espírito do We”. O lado espiritual foi trazido pela sua esposa, Rebekah, que passou alguns anos na Índia estudando espiritualidade, e ajudou a reformular o negócio com a nova missão de “elevar a consciência do mundo”. Nos documentos de apresentação ao IPO, chegaram a escrever na primeira página a “energia do we”.

Mas enquanto Neumann encarava a imagem de um verdadeiro líder de culto — falava frequentemente sobre espiritualidade, enquanto portava um cabelo longo, roupas informais e andava descalço — também usava e incentivava álcool, drogas e festas no ambiente de trabalho. Cenas do documentário mostram o retiro anual do WeWork que eram raves, com participação de celebridades, alternado por discursos de inspiração de Neumann e sua esposa.

No entanto, essa mesmo cultura que, em um primeiro momento, atraiu jovens profissionais, foi também os exaurindo. Somado à baixa remuneração, longas horas de trabalho, discriminação e assédios constantes. Vários eram realocados ou até perdiam o emprego quando questionavam Neumann. E diversas mulheres relataram serem proibidas de participarem de reuniões, além de assédios sexuais. Parte desses bastidores foi contado em reportagem do Wall Street Journal, publicada dois dias após o WeWork divulgar seus documentos para IPO. Enquanto o mercado percebia que a empresa gastava demais, os investidores notaram que parte da extravagância vinha do estilo de Neumann. Seis dias depois, foi demitido e uma semana depois, o WeWork cancelou o pedido de IPO.

Sem Neumann, o WeWork se reergueu e prepara novamente sua abertura de capital. Mas sem o ex-líder, também acabou o “sonho” vendido pela empresa deixando milhares de fiéis desacreditados e desempregados. “Eu estava na casa dos 20 anos procurando um propósito, e ali estava aquela pessoa vendendo este sonho, e eu era um alvo fácil para isso”, diz no documentário uma ex-assistente de Neumann. “Poderia ter se tornado algo lindo”.

E como Hollywood não perde uma boa história sobre a ascensão e o fracasso de um líder controverso, a Apple+ prepara uma série com Jared Leto e Anne Hathaway, nos papeis do casal Neumann. E o livro, ainda em pré-lançamento, The Cult of We (Amazon), dos repórteres do WSJ, também será adaptado para as telas.

Mais: uma minissérie em podcast sobre o caso, WeCrashed, e um livro sobre Neumann, Billion Dollar Loser (Amazon).

Morre Philip, o príncipe do século 20

O protótipo do macho-alfa que viveu uma invulgarmente longa vida dois passos atrás da esposa. O neto de reis que se via, antes e acima de tudo, como um servidor público e lutava para modernizar a monarquia. O sujeito que disparava na maior cara dura frases que iam do politicamente incorreto ao racismo explícito e, ao mesmo tempo, contribuía ativamente para a melhoria da vida de jovens em centenas de países e defendia a preservação do meio ambiente décadas antes de ser moda. Filippos da Grécia e da Dinamarca, Philip Mountbatten, duque de Edimburgo, ou mais simplesmente Philip, príncipe-consorte do Reino Unido, que morreu ontem aos 99 anos, encarnou como poucos as contradições e transformações do século 20.

Em seu tocante obituário, a revista The Economist lembra que, ao se casar com a prima Elizabeth, filha do rei George* VI, Philip era um homem sem raízes, e que essa condição, somada a sua personalidade, moldou a mais tradicional monarquia do Ocidente. Ao nascer, em 10 de junho de 1921, na ilha grega de Corfu, Filippos estava na linha de sucessão de seu tio, o rei Konstantínos I. Um ano depois, após um golpe militar que depôs o rei, o príncipe partiu com a família para o exílio escondido numa caixa de frutas.

Diz o ditado que nobreza é o que sobra quando o dinheiro acaba. Foi o caso da Filippos. Ele, seus pais, os príncipes Andreas da Grécia e da Dinamarca e Alice de Battenberg, e suas quatro irmãs mais velhas foram viver de favor em Paris às custas de uma tia. Os laços alemães por parte de mãe falaram alto. As irmãs se casaram com magnatas e nobres germânicos, todos posteriormente ligados ao nazismo, e Filippos começou sua educação numa escola alemã da própria família. Como o diretor era judeu, e os nazistas, digamos, não lhe eram simpáticos, uma nova escola foi aberta na Escócia, e Filippos virou Philip, alternando a residência entre as casas de parentes nobres no Reino Unido, os Mountbatten, enquanto o pai viveu em Monte Carlo até a morte, em 1944, e a mãe, esquizofrênica, foi morar num convento/sanatório.

Philip entrou para a escola de cadetes da Marinha inglesa. Foi lá que lhe coube a tarefa, em 1939, de ciceronear sua prima, a princesa-herdeira Elizabeth, então com 13 anos, numa visita. Como conta Tina Brown, no New York Times, a futura rainha se apaixonou à primeira vista pelo rapaz louro, alto (1,83m) e muito bonito (como mostra essa galeria de fotos da BBC). Com a eclosão da Segunda Guerra, Philip enfrentou ação de verdade e terminou o conflito como o mais jovem primeiro-tenente da Marinha britânica. Àquela altura, a relação com a princesa já era notória. Embora o rei e a rainha quisessem coisa melhor para a filha, Elizabeth bateu o pé. Philip, batizado na Igreja Ortodoxa grega, converteu-se ao anglicanismo, recebeu o título de duque de Edimburgo, entre outros, e se casou com “Lilibeth” em 20 de novembro de 1947.

Embora não fosse o primeiro príncipe-consorte britânico, ele inovou. Quando a esposa foi corada rainha, em 6 de fevereiro de 1952, Philip tirou a própria coroa, ajoelhou-se diante dela e jurou-lhe lealdade: “Eu, Philip, duque de Edimburgo, torno-me seu vassalo até a morte, sob a graça de Deus.”

E cumpriu a promessa. Garantiu-lhe a dinastia com quatro filhos, embora amargasse o dissabor de eles herdarem o nome Windsor, não Mountbatten – depois, Anne, Andrew e Edward o adotaram. Além de acompanhar a rainha em todas as viagens oficiais, cumpriu pelo menos 22 mil compromissos reais sozinho até se aposentar, em 2017, aos 95 anos. Considerava-se um servidor público acima de tudo.

Além dos esportes – era exímio velejador e corredor com carruagens –, tinha obsessão com educação e meio ambiente. Foi fundador e primeiro presidente do World Wildlife Fund (WWF) e criou, em 1956, o Prêmio Duque de Edimburgo, que estimula ações de jovens em centenas de países.

Mas, claro, Philip era, como ressalta o Guardian, um homem de seu tempo. Por um lado, organizou a canhestra burocracia da Casa de Windsor e procurou aproximar a monarquia do mundo moderno – foi apenas por insistência ferrenha dele que um documentário sobre a rotina real foi feito em 1969. Por outro, era o produto de uma época em que um homem branco e rico podia falar o que lhe viesse à cabeça sem se preocupar com consequências. É longa sua lista de gafes e comentários preconceituosos (aqui alguns em português). “Vocês ainda atiram lanças uns nos outros?”, perguntou a aborígenes australianos. “Todo mundo dizia que precisava de tempo livre. Agora reclamam que estão desempregados”, dito durante a recessão provocada por Margaret Thatcher em 1981. “Parece um quarto de puta”, a respeito dos aposentos do filho Andrew e da nora. “Se não peida nem come alfafa, ela não tem interesse”, sobre a paixão da filha Anne por cavalos.

Enfim, Philip foi todas as contradições do século 20. O que vai ser de Elizabeth II, que o amava na manhã de ontem tanto quanto aos 13 anos? O que vai ser da monarquia inglesa após sua morte? Seu funeral obedecerá a regras de distanciamento social. Depois, só o tempo dirá.

* Foi adotado o critério, estritamente idiossincrático, de nominar os monarcas do século 20 com seus nomes originais ou a transliteração mais próxima, não com o aportuguesamento.

Descoberta cidade perdida do Egito antigo

Tebas foi por muitos anos a capital do Egito Antigo. O auge se deu no reinado do faraó Amenhotep III, entre os anos 1391 e 1353aC. Foi abandonada por seu filho, o faraó Amenhotep IV, que abandonou o panteão de deuses de então, adotando um monoteísmo. Mudou seu nome para Akhenaton e fundou a nova cidade Akhetaten. Akhenaten foi casado com a rainha Nefertiti. Tebas voltou no reinado de seu filho, Tutancamon, que construiu outra nova capital: Mênfis. Com o tempo, Tebas terminou coberta pelas areias e desapareceu no deserto.

Em setembro do ano passado, arqueólogos encontraram sinais de ruínas nas proximidades de Luxor e começaram a escavar. Na última quinta-feira, Zahi Hawass, um dos principais arqueólogos egípcios, anunciou a descoberta da cidade que passou mais de três mil anos enterrada. Segundo Hawass, é o maior achado arqueológico na região desde a tumba de Tutancamon, em 1922.

Ainda não se sabe o tamanho total da cidade, mas a parte escavada mostra uma série de paredes em zigzag, de até 3 metros de altura, construídas com tijolos de lama e uma quantidade imensa de utensílios usados no dia a dia por seus habitantes. Vasos, ânforas e amuletos, muitos com o selo real. Um vaso continha ainda 2 galões de carne cozida, datado do ano 37 do calendário egípcio, durante o reinado de Amenhotep III. Encontraram ainda de uma abóbada de barro com hieróglifos em homenagem ao rei sol, cultuado por Akhenaton. Salima Iskram, arqueóloga da Universidade Americana no Cairo descreve o achado como uma fotografia do tempo, uma espécie de Pompéia do Egito.

Passeie pelas ruas preservadas de Tebas em uma visita em que o arqueólogo Zahi Hawass guia a jornalista Molly Hunter da NBC pelas sinuosas ruas da cidade escavada.

E por falar... Nefertiti é o nome do quarto disco do segundo quinteto de Miles Davis. Curiosamente, Davis não compôs nenhuma das músicas — a autoria é de Herbie Hancock e Wayne Shorter. Uma ótima opção para se ouvir com calma no fim de semana.

E antes de terminar, os mais clicados da semana:

1. Economist: Charge da revista em homenagem à Bolsonaro e sua arrogância e ignorância no enfrentamento da pandemia.

2. Meio: Qual o perfil do leitor do Meio em 2021?

3. Poder 360: Bolsonaro diz a empresários que não vai colocar o dele na reta por conta do orçamento.

4. CNN Brasil: Um terço dos sobreviventes de Covid-19 sofrem com distúrbios neurológicos ou mentais.

5. Meio em vídeo: Ponto de Partida – Centro entre Bolsonaro e Lula existe?

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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