Edição de Sábado: A Era do Burnout

Não é difícil definir burnout. O psicanalista britânico Josh Cohen, colaborador da 1843, revista irmã da Economist, descreveu a síndrome a partir de um caso que atendeu. “Notas excelentes desde a infância, capitão do time de beisebol, bolsa de estudos nas melhores universidades”, assim havia sido Steve, executivo americano em um banco multinacional, alocado em Paris. “Trabalhou na aquisição de companhias com a mesma maestria que demonstrou em suas conquistas acadêmicas e esportivas, até perceber que estava perdendo a concentração no trabalho, movido por um desejo intenso de ir para casa e dormir. Um dia, quando seu despertador tocou às 5h30, ao invés de se levantar, desligou o alarme e lá ficou. Olhando para a parede. Certo apenas de que não iria para o escritório. Após seis horas oscilando entre o sono sem sonhos e um acordar em branco, botou a roupa de ginástica, foi até a loja de conveniências e encheu a cesta de comidas de micro-ondas e doces. Três meses depois, havia se transformado nessa estrutura inerte que se apresentou perante mim.”

Assim descrito, como costuma ser sempre a partir dos casos mais agudos, o burnout parece algo extremado que poucos vivem. Não é.

“Me vi num ciclo do que batizei de ‘paralisia errante’”, escreveu Anne Helen Petersen, jornalista de Cultura do site BuzzFeed. “Colocava algo na lista de afazeres e lá a coisa ficava, me assombrando por meses. Nada difícil. Levar facas para afiar, botas para o sapateiro, enviar pelo correio um exemplar de meu livro, marcar o dermatologista. Os e-mails de amigos se acumulavam sem resposta”, ela conta. “Não é como se eu houvesse abandonado a vida. Minhas matérias estavam saindo, eu tocava escrevendo dois livros, cozinhava minhas refeições, me mudei de cidade, pagava as contas e fazia exercícios regularmente. Mas tudo de mundano, as prioridades medianas, tudo que não facilitaria a vida particularmente, evitava. Um dia percebi que todas essas ações tinham um denominador comum: sua beneficiária primária seria eu, mas não de um jeito que melhoraria drasticamente a vida. Pareciam esforços grandes para pouco retorno, e assim me paralisavam.”

Petersen tem um diagnóstico sobre por que surgiu a paralisia. E não é tão diferente assim do que poderia ser sugerido a Steve, o paciente de Josh Cohen. “Internalizei a ideia de que deveria estar trabalhando o tempo todo”, ela cogita. “Tudo e todos em minha vida reforçaram isso — explicitamente e implicitamente — desde cedo.”

Em momento algum a ginasta Simone Biles afirmou que estava sentindo burnout. Mas os elementos que ligam o sinal amarelo estão lá — dificuldade de concentração somada a muito trabalho e muita entrega. Tendo chegado às Olimpíadas de Tóquio vista como a maior atleta dos Jogos, com uma carreira superior à de qualquer outra ginasta que já tenha competido, Biles entregou as pontas quando numa pirueta sentiu o que no esporte chamam de twisties. É um perder da noção do espaço quando se ainda esta no ar. É também um desencontro entre o que mente ordena e o corpo deveria executar. Desequilibrou-se sem saber quão longe, ou mesmo em que direção, o chão estava. A atleta já falou, publicamente, sobre a lida com Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, TDAH, para o qual é medicada desde criança. Mas não é a primeira a abandonar uma competição para a qual havia uma expectativa grande a seu respeito. Foi o que fez, no início de junho, a tenista Naomi Osaka, no French Open. Foi Osaka, simbolicamente, a escolhida para acender a pira olímpica na cerimônia de abertura, em Tóquio.

Para cada tempo, um mal

De certa forma, já dá para chamar estes os Jogos do Burnout. Até porque vivemos a Era do Burnout. E se o problema parece algo para a lida de psicanalistas ou psiquiatras, o Burnout tem um especialista que vem de outro ramo. É um filósofo, o sul-coreano Byung-Chul Han. Ou, melhor, nascido sul-coreano, mas feito suíço-alemão pela formação na idade adulta. É dele a ideia de que vivemos uma ‘Era do Burnout’, exposta em A Sociedade do Burnout, seu livro de 2015 — cujo título, no Brasil, foi adaptado para A Sociedade do Cansaço (Amazon). E faz todo sentido que Byung-Chul, de 62 anos, tenha sido criado na Coreia do Sul, onde se formou em finais dos anos 1970, e desde a década seguinte viva na Alemanha, onde se doutorou em filosofia. Porque um fenômeno global deste tempo pós-globalização exige mesmo que alguém com um pé no Ocidente, e outro no Oriente, observe o todo. Sua tese é de que este tempo que vivemos é marcado por três efeitos na saúde mental. Burnout, depressão e, naturalmente, TDAH.

A primeira é uma síndrome, as outras duas, transtornos. Em medicina, uma síndrome é um conjunto de sintomas correlacionados que não têm, necessariamente, uma causa clara estabelecida. Os sintomas estão lá, juntos, e são percebidos em mais de um paciente com as mesmas características. Mas não se sabe o que dispara o processo. Burnout é isso.

A tese de Byung-Chul é que cada tempo é marcado por suas patologias. O século 20 foi dos microrganismos, vírus e bactérias. Dominamos e compreendemos o sistema imunológico enquanto estávamos mergulhados na Guerra Fria. O mesmo discurso militar contido — de reforço das defesas e estratégia para ataques — surgia em inúmeras guerras paralelas que ocorriam enquanto EUA e URSS não entravam em confronto direto. Esta mesma linguagem político-militar, como metáfora, dominou a medicina com a descoberta dos antibióticos, o domínio de vacinas, o combate e controle de epidemias como influenza, pólio, sarampo, e o fim das mortes recorrentes por infecções bacterianas. O sistema imunológico foi incorporado, por todos nós, com esta linguagem da Guerra Fria. E toda esta ciência dominada no século 20 se mostrou presente no combate à pior pandemia desde a Gripe Espanhola — em poucas semanas já se compreendia o suficiente do SARS-CoV-2 para saber como contê-lo: isolamento social, lavagem de mãos, uso de máscaras. Se não o fizemos foi por questões políticas, não por falta de conhecimento. Da mesma forma, em meses vacinas já existiam em quantidade e variedade.

As patologias que marcam o século 21 são outras. Síndromes e transtornos mentais que têm, em comum, o fato de dificultar a entrada na sociedade produtiva. Ou poderia se inverter. É, como descreveu a ginasta Simone Biles, um ‘desencontro entre o que mente ordena e o corpo deveria executar’. É como se a mente, de repente, se recusasse a entrar na sociedade produtiva. Como se nós nos recusássemos, como uma defesa do corpo.

O mundo que leva ao burnout

Parte da dificuldade política que temos, no Brasil muito acentuadamente mas de alguma forma em todo o mundo, é que partidos e líderes diversos não perceberam que o mundo passa por uma transformação intensa que nos arrancou da Era Industrial. Este é um tema recorrente cá do Meio.

Sindicatos, a maneira perfeita para trabalhadores se organizarem quando se encontram todos os dias no mesmo chão de fábrica, perdem a liga quando o chão de fábrica deixa de existir ou passa a ser economicamente irrelevante. Pois a indústria da manufatura é cada vez mais robotizada e cada vez menos importante na composição de PIBs.

Direitos trabalhistas criados nos anos 1930 têm em sua lógica intrínseca uma relação entre trabalhador e empregador que também está deixando de existir. É a ideia de que alguém entra numa empresa e nela fica por muitos anos, por exemplo. Só que as constantes mudanças tecnológicas exigem de empresas que se adaptem e se transformem continuadamente. Assim como trabalhadores, cada vez mais, buscam carreiras com alta mobilidade. A fluidez se tornou a regra. Para quem quer, para quem não quer.

A âncora em sindicatos e a luta por direitos que não refletem mais as necessidades dos trabalhadores é mostra da miopia da esquerda. Mas quando liberais propõem diluir estes direitos sem apresentar uma teia de proteção social adequada à nova realidade demonstram outra miopia. A não compreensão de que o ambiente é instável e desperta, nas pessoas, uma profunda insegurança.

Enquanto isso, nenhum grupo está mais descolado do mundo atual do que a direita populista. Que é nacionalista. Num mundo que pede abertura maior das nações umas às outras, porque o trabalho e o dinheiro, digitalizados, cruzam fronteiras com facilidade ímpar.

Então que mundo é este — o que leva ao burnout? Vivemos o resultado do encontro entre três ondas simultâneas de transformações.

A primeira é ideológica. O Ocidente foi keynesiano entre as décadas de 1930 e 60, 70. Esta visão foi substituída com a ascensão de Margaret Thatcher e Ronald Reagan, a partir dos anos 1980. O cientista político inglês Michael Freeden descreve esta ideologia como um conservadorismo que escondeu sua própria identidade ao adotar a linguagem dos liberais. Assim, políticas a favor da família nuclear tradicional e contra programas sociais, pró-religião e pró-militarização, foram defendidas não mais por serem valores tradicionais e sim, cada vez mais, pela ‘defesa de um Estado mínimo’. Muitos na sociologia lançam mão dum termo que se tornou popular para descrever o todo: neoliberalismo.

Em verdade, apesar do discurso, os Estados não diminuíram. Mudou foi onde se gasta. A rede de proteção da sociedade diminuiu. Enquanto corporações públicas — em alguns países o setor militar, noutros estatais — ganharam corpo e se tornaram entidades intocáveis, os serviços que atendem diretamente ao cidadão se reduziram mesmo onde foram fortes. Ensino público, saúde pública, os sistemas previdenciários. O resultado foi a criação de uma sociedade cada vez mais individualista, na qual os incentivos são para que a pessoa seja, solitária, responsável única por si mesma. Suas vitórias e suas derrotas são fruto único do esforço pessoal.

Em paralelo a esta ideia de vida e sociedade, nos anos 1990, vieram juntas a revolução digital e a globalização. Os mercados do mundo se abriram em novas cadeias logísticas que facilitam o fluxo de mão de obra, de commodities, de insumos e de produtos fabricados. O vidro vem da Coreia do Sul, o microchip de Taiwan, o design do aparelho é feito na Califórnia. Tudo se encontra na China, onde robôs fazem a montagem, pessoas dão acabamento, e assim o iPhone pode nascer. Quando lançado, chega às lojas simultaneamente em algumas dezenas de países. Tudo é feito assim. O smartphone, a bola de futebol, a camiseta ou a barra de chocolate. A produção foi descentralizada e, em direção ao futuro, isto vai se intensificar. Robôs mais precisos e impressão 3D farão da manufatura trabalho de escritório e não de fábrica.

Esta lógica quebra a ideia de mercados consumidores nacionais e economias que olham só para dentro. O mercado de consumo é global. O de produção, também.

O digital só acelera este processo, pois transforma indústrias. Inúmeras profissões tendem a ser extintas — o motorista, o contador, o caixa de loja. Empresas cada vez precisarão mais de profissionais do conhecimento, gente cujo trabalho é pensar e criar. Mas se este é o lado econômico do fenômeno, há outros movimentos que o digital inaugura. Um está em estilhaçar o conceito de trabalho da Era Industrial. O horário de 9h às 17h não é mais relevante, como a presença no escritório tampouco é fundamental. Para que um produto nasça, não é mais necessário que um time atue em conjunto, no mesmo lugar, ao mesmo tempo. Nômades digitais prestam serviços de marketing, de design, de programação, de escrita, viajando pelo mundo para onde exista conexão à rede.

E há um último aspecto do digital — porque da tela do notebook à tela do smartphone, de lá para o tablet e então para a TV, até para o smartwatch — estamos em todos os momentos do dia conectados a telas e por estas telas à rede. Assim, livres para gerenciar nosso tempo, no meio do dia um Instagram, ou um vídeo no YouTube. No meio da semana, maratonar uma série, e comentar sobre ela no Twitter, no Face, ou no grupo do Zap. O almoço é interrompido para a foto do prato, a praia de sábado vira um momento de como fazer o registro para exibi-lo. E consumimos a toda hora a vida de um prazer tanto exibicionista quanto dissimulado.

Ninguém planejou que o mundo fosse transformado. Mas ele foi.

A Era do Burnout

Somos consistentemente estimulados a prestar atenção nas telas. A não desligar delas. E nos tornamos, pela ideologia predominante no tempo, uma sociedade dedicada à performance — esta é a tese de Byung-Chul Han. Paradoxalmente, ele aponta, somos mais livres. Podemos, de fato, gerenciar nosso tempo. Estamos o tempo todo buscando sermos felizes. E produzimos sem parar. Produzimos para alimentar as telas quando estamos nos divertindo, produzimos quando estamos descansando, trabalhamos à exaustão.

Isto ocorre porque se paramos de trabalhar, de nos mostrarmos capazes, temos menos valor no mercado. E, neste processo, a transformação acelerada da sociedade que está em curso descarta pessoas com frequência. Sem uma teia de proteção que sirva ao mundo atual — que permita às empresas que tenham a agilidade da qual precisam, que garanta às pessoas a tranquilidade da educação dos filhos, da saúde da família, do momento pessoal de pane, do descanso. De estar em paz com o futuro.

A paralisia de Simone Biles foi recebida com imensa empatia pelo mundo. A ‘paralisia errante’ de Anne Helen Petersen serve à imediata identificação pessoal de qualquer um. Aquele ir deixando para trás as tarefas não urgentes. E o pânico de um dia acordar e simplesmente não conseguir mais, como o do paciente de Josh Cohen, está lá. É o pânico de todo mundo e qualquer um.

O burnout, enquanto Estados e sociedades não se readequarem ao mundo transformado, persistirá sendo o mal do tempo.

Nunca estivemos tão expostos

Diz o cânon do ofício que jornalista não é personagem, mas vou pedir licença aos leitores cá deste Meio para escrever na primeira pessoa. Embora o caso seja pessoal, ele é comum a milhares de pessoas em todo o país. Caí ontem, sem prejuízos no fim, em um golpe por telefone muito bem elaborado envolvendo minha conta bancária.

O golpe envolve um tiquinho de tecnologia e muito teatro. Uma pessoa telefona para seu número fixo se dizendo da Central de Segurança do banco onde você tem conta. A atriz é boa, tem tom de voz de sargento. Quando diz “Central de Segurança”, dá vontade de bater os calcanhares. Ela confirma seu nome, endereço e CPF e informa que foi indicada uma compra suspeita com seu cartão de crédito de final XXXX (não vou botar os números do meu cartão aqui, please) em outro estado etc. Pede que você ligue daquele mesmo aparelho, para o sistema registrar que está ligando de seu estado de origem, para o número no verso de seu cartão.

Aí está o pulo do gato. A maioria dos leitores, jovens que são, não lembra, mas nos telefones de disco, nós colocávamos o fone no ouvido e discávamos na base, ouvindo o sinal de linha. Hoje, com os aparelhos sem fio, apertamos o botão verde e já vamos digitando o número. Acontece que a ligação só é encerrada quando o emissor, o golpista, desliga, o que ele não faz. O incauto, eu, acha que está ligando para seu banco, mas continua falando com os golpistas. Como estamos ligando, cria-se uma sensação de segurança.

Do outro lado da linha, o golpe segue, uma gravação imita a central de atendimento do banco e passa para uma atendente. A atriz, porém, não era tão boa, e o enredo se tornou inverossímil. Conseguiu informações do cartão, mas acabou reconhecida como fraude e desligou. Uma corrida na agência da esquina, senha e código alfabético mudados, nenhuma compra feita naqueles minutos. Caso encerrado.

“Ok”, o gentil leitor está se perguntando, “no que esse vacilo do tosco do Leonardo me interessa?”. Primeiro, para que o leitor não caia em golpe semelhante. Segundo, para ressaltar o quanto a vida online nos expôs. O golpe só era possível porque os golpistas tinham nome, endereço, CPF e os últimos números do cartão, informações que deixamos em nove a cada dez sites que visitamos. A verdade é que nunca estivemos tão expostos.

Em 2011, a atriz Scarlett Johansson teve fotos nua divulgadas na internet. Ela havia enviado as imagens ao então marido Ryan Reynolds (ex de Alanis Morissette e hoje casado com Blake Lively, lucky bastard!), e um hacker invadiu sua conta. A invasão foi surpreendentemente simples. De posse do e-mail da atriz, o criminoso tentou se logar, comunicou ter esquecido a senha e escolheu como modo de recuperação a resposta a perguntas pessoais – qual o nome de solteira de sua mãe, qual sua escola de ensino fundamental, qual o nome de seu primeiro animal de estimação etc. Todas as respostas estavam disponíveis em sites de fã-clubes de Scarlett.

E nem é necessário ser uma estrela de Hollywood super-mega-blaster-gata. Qualquer olhada em nossas redes sociais dá um panorama completo de nossas vidas. Os lugares que frequentamos, quem conhecemos, nossos gostos... O check in de uma jovem numa boate, antes da pandemia, permitia a golpistas ligarem para seus pais e aplicarem o golpe do falso sequestro, por exemplo.

Isso, claro, é a superfície. Esses são os pequenos punguistas do mundo conectado. Há coisa muito pior. Municiado pela Anistia Internacional, um consórcio de veículos de comunicação liderado pelo jornal inglês Guardian revelou que o malware Pegasus, desenvolvido pela empresa israelense NSO Group havia sido usado para espionar ativistas políticos, jornalistas, advogados e autoridades em todo o mundo.

O “mal” em malware não é um apelido de Malaquias; significa maligno. O Pegasus é usado para infectar celulares, rastrear sua localização, ligar câmera e microfone e espionar mensagens. Teria sido auxiliado no assassinato de um jornalista no México e no sequestro e possivelmente assassinato de uma princesa que tentava fugir de Dubai. A NSO diz que faz uma checagem do histórico de respeito aos direitos humanos por parte de seus clientes, cuja lista não divulga. Balela. Como o Guardian revelou, as ditaduras teocráticas da Arábia Saudita e de Dubai são fregueses assíduos.

O Pegasus é uma arma criada para espionar. No Brasil, tanto o “gabinete do ódio” quanto a força-tarefa da Lava-Jato em Curitiba tentaram obtê-lo. Dado o respeito de ambos às liberdades individuais e ao Estado Democrático de Direito, é uma sorte que não tenham conseguido.

Enfim, nunca estivemos tão expostos. Nossos dados pessoais e bancários circulam livremente. São vendidos ou roubados e usados por golpistas. Todo SMS, telefonema ou e-mail é um risco. Como cantou Gal Costa há mais de 50 anos, é preciso estar atento e forte.

A história da luta feminina nas Olimpíadas

Além de trazer o debate sobre saúde mental, as atletas desta edição das Olimpíadas também têm levantado a pauta sobre direitos iguais entre homens e mulheres.

As ginastas alemãs fizeram um pequeno protesto ao usar pela primeira vez calças que cobrem as pernas até o tornozelo. Elas não defendem que todas as atletas usem o mesmo traje, mas sim que cada uma tenha a liberdade de utilizar o que quiser.

A sexualização das atletas é histórica. As primeiras campeãs olímpicas do vôlei de praia, em Atlanta-96, Jaqueline Silva e Sandra Pires tiveram que subir ao pódio de biquíni em vez do padrão dos outros atletas que usam agasalho. E pouco avançou desde lá. Apesar de não ser parte dos Jogos, este ano, a seleção norueguesa de handebol de praia foi multada por optar usar um shorts em vez do biquíni no Campeonato Europeu. Enquanto os homens podem usar um shorts de até 10 centímetros.

A história das mulheres nas Olimpíadas é recente e marcada por protestos e lutas das atletas para serem reconhecidas de igual pra igual. Os Jogos de Tóquio contam com a maior presença feminina da história. E ainda assim são minoria: 48,8% dos cerca de 11 mil atletas. Foi somente em 2012, nas Olimpíadas de Londres, que pela primeira vez teve participação feminina em todas as modalidades. Aquela também foi a primeira edição em que todos os países tiveram ao menos uma mulher em suas delegações.

No primeiro registro dos Jogos Olímpicos da Antiguidade em 776 a.C, na Grécia Antiga, as mulheres sequer podiam assistir à competição. A visão sobre a mulher naquela época era de que não tinha físico bom o suficiente para competir e aguentar competições que tivessem qualquer contato físico. Mas teve participação feminina indireta: a princesa espartana Kyniska foi a primeira a ganhar uma medalha de ouro nos Jogos. Ela não competiu de fato, mas seus cavalos foram vencedores nos Jogos de 396 a.C. e de 392 a.C.

Ao trazer de volta a competição, criando a edição moderna, o Barão Pierre de Coubertin manteve essa lógica de mulher frágil, deixando elas fora das quadras, campos e arenas esportivas. Em um artigo, ele defendeu que “a glória de uma mulher viria através do número e da qualidade dos filhos, e não cabe a ela bater recordes”. Assim, a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, em Atenas, 1896, contou apenas com a participação masculina.

Mas, mais uma vez, as mulheres encontraram um jeito de não serem excluídas completamente. Sem permissão para competir no atletismo, a grega Stamata Revithi fez o mesmo trajeto de 42 km no dia seguinte, sendo que a última volta aconteceu fora do estádio porque foi proibida de entrar. Terminou sua corrida menos de duas horas atrás do vencedor e foi mais rápida de que alguns de seus adversários masculinos.

Quatro anos depois, em Paris 1900, elas puderam competir pela primeira vez. No entanto, entre 997 atletas, somente 22 eram mulheres (2,2%). Só puderam disputar modalidade sem contato físico: tênis, vela, croquet, hipismo e golfe, sendo que apenas o tênis e o golfe contavam com eventos exclusivamente femininos.

Com a aceleração da industrialização no fim do século 19 e início do século 20, as mulheres saíram de casa para trabalhar em fábricas, conquistando novos papéis dentro da sociedade, e consequentemente no esporte. Mas esse movimento não veio sem resistências. A francesa Alice de Milliatt organizou os primeiros Jogos Olímpicos Femininos em 1922 após o Comité Olímpico Internacional não aceitar a participação feminina no atletismo. Os Jogos foram tão bem sucedidos que tiveram mais edições em 1926, 1930 e 1934. Esse sucesso pressionou o COI. Em 1936, nas Olimpíadas de Berlim, as mulheres foram incluídas oficialmente como atletas olímpicas, e os Jogos Olímpicos Femininos acabaram.

Mesmo assim, o COI ainda controlou a participação delas nas modalidades. No judô e no boxe, por exemplo, as mulheres só passaram a competir nos Jogos a partir de 1992 e 2012, respectivamente. O Brasil também delimitava a participação por esporte. Um decreto que vigorou de 1941 a 1979 proibia mulheres de praticarem esportes “inadequados a sua natureza”, que durante a ditadura militar foram listados, incluindo futebol, rúgbi e artes marciais.

A participação delas nos Jogos também estava longe de significar tratamento igual. Nas Olimpíadas de 1900, por exemplo, elas não ganharam medalhas iguais aos homens, apenas um certificado de participação. E na década de 1960, existia uma política de verificação de gênero. Aquelas que se destacavam pela força física passavam por uma inspeção genital para que fosse verificado se eram homens fingindo ser mulheres.

E com mais presença feminina no esporte, elas cada vez mais foram atreladas à beleza. A objetificação do corpo da mulher aumentou, principalmente, a partir dos anos de 1970, com a propagação da cultura fitness. Um estudo de 2016 da Universidade de Cambridge identificou que as atletas eram mais propensas a serem descritas na mídia por características físicas, idade, estado civil e estética do que os homens.

Além da igualdade entre homens e mulheres, as Olimpíadas vão ter que cada vez mais lidar com outras pautas. Há pelo menos 160 atletas assumidamente membros da comunidade LGBTQIA+ nos Jogos de Tóquio — o maior número na história das Olimpíadas. Já tem atletas que se consideram não binários (não se identificam nem como homens nem como mulheres) e pela primeira vez terá participação de uma atleta trans, a neozelandesa Laurel Hubbard competindo no levantamento de peso.

A sociedade tem avançado, mesmo que devagar, sobre a questão de igualdade de gênero e orientação sexual. E as Olimpíadas vão ter que acompanhar.

Então… As atletas mais premiadas na história das Olimpíadas. Confira.

E mais mulheres que fizeram história. Veja.

Pictogramas olímpicos, uma história de design

Você deve ter visto o novo conjunto de pictogramas olímpicos que foi apresentado na abertura dos jogos de Tóquio de maneira lúdica, usando performers fantasiados. Este ano os desenhos também ganharam uma versão animada, adequada à constante substituição de placas de sinalização por telas planas. Mas os simpáticos bonequinhos que correm, chutam, remam, saltam, lutam, nadam, pedalam, surfam, escalam (paro por aqui, são 33 esportes em disputa) representam muito mais do que isso. Os pictogramas criados por Masaaki Hiromura (estáticos) e Kota Iguchi (cinéticos) são uma homenagem ao primeiro registro dessa linguagem, introduzida nas Olimpíadas de Tóquio, em 1964.

Criados para serem reconhecidos a grande distância ou em tamanhos pequenos, os pictogramas estão nas placas de trânsito, na sinalização de aeroportos, na meteorologia e nas etiquetas de nossas roupas. Estamos acostumados a ver esses desenhos simplificados representando objetos ou conceitos. Sua origem está na escrita cuneiforme do sumérios e nos hieroglifos egípcios, mas a idéia de criar um sistema de comunicação independente do idioma é bem mais moderna e nasceu com as Olimpíadas.

Os Jogos Olímpicos de Paris (1924), de Berlim (1936) e os de Londres (1948) já apresentavam ilustrações para as diferentes modalidades, porém seu uso foi bastante restrito, se limitando a ingressos e documentos.

Foi na Olimpíada de Tóquio, em 1964, que surgiu o primeiro sistema de comunicação baseado em pictogramas. O desafio de orientar milhares de atletas e turistas, vindos de 90 países e que não falavam japonês, parecia intransponível. Traduzir as placas seria inviável. A solução veio do diretor do projeto, Masaru Katzumie, e dos designers Yoshiro Yamashita (Vila Olímpica) e Aisaku Murakoshi (aeroporto). A equipe produziu 20 imagens para os esportes e 39 com informações gerais como restaurante, telefone e bilheteria. Foi a estréia dos famosos bonequinhos nas portas dos banheiros, e isso mostra o tamanho do impacto social deste trabalho. Os pictogramas de 1964 mudaram permanentemente o design gráfico e foram um dos primeiros passos no caminho para substituir palavras por imagens no cenário global. Os Jogos abraçaram os pictogramas e cada edição procura inovar, adequando seu formato à identidade do evento.

Os da olimpíada seguinte, no Mexico em 1968, são atraentes mas parecem ilustrações, enquadrando equipamentos e mostrando detalhes como os dedos dos atletas. Coube a Otl Aicher, em Munique 1972, retomar o caminho da síntese iniciado em Tóquio. Contratou o caricaturista Gerhard Joksch e juntos criaram um sistema completo para projetar pictogramas focados nos movimentos do corpo. Joksch conta que outra fonte de inspiração foram as figuras pintadas na caverna de Altamira, na Espanha. No novo sistema, a cabeça circular ganhou um corpo retangular, além de braços e pernas em forma de palito. Desenhados dentro de uma grade rígida, com ênfase nas linhas diagonais, os pictogramas alemães fizeram imenso sucesso e ambos os designers passaram a vender versões redesenhadas desses ícones para sinalização de empresas ao redor do mundo.

Em 1974, o Departamento de Transporte dos Estados Unidos (DOT) reconheceu as deficiências na sinalização das rodovias e encarregou o Instituto Americano de Artes Gráficas de produzir um conjunto abrangente de pictogramas. Partindo da sinalização do Aeroporto de Tóquio e da Vila Olímpica de Munique, e recorrendo a extensa pesquisa de outros sistemas de sinalização, os designers Roger Cook e Don Shanosky criaram 34 símbolos para solucionar o problema. Extremamente bem desenhados e livres de direitos autorais, logo se tornaram os pictogramas mais reconhecidos do mundo. Provavelmente a imagem que vem à sua cabeça quando falamos em portas de banheiro são os bonequinhos da DOT.

O design dos pictogramas foi criado no Japão, refinado na Alemanha e espalhado pelos Estados Unidos, mas o conceito surgiu na Áustria. Antes da invenção da palavra pictograma, o filósofo, sociólogo e economista Otto Neurath, cofundador do Círculo de Viena, procurava uma forma de levar o conhecimento à massa de iletrados. Criador do Museu para Habitação e Planejamento Urbano (Siedlungsmuseum), Neurath queria substituir a linguagem científica, opaca, por imagens simples, organizadas de forma clara. Seu lema era: palavras dividem, imagens unem. Socialista, buscava uma “estatística visual” capaz de superar as barreiras do idioma para ser compreendida universalmente. Foi no museu que conheceu a empolgada estudante Marie Reidemeister e a convidou para trabalhar no projeto. O grupo se completa com a contratação de Gerd Arntz, artista modernista alemão conhecido por suas xilogravuras em preto e branco e a militância comunista. Responsável pelo visual, Arntz desenhou mais de 4 mil símbolos que hoje podem ser chamados de pictogramas. Juntos eles criaram o “método de Viena de estatísticas pictóricas”, posteriormente rebatizado (por Marie) de ISOTYPE, acrônimo para Sistema Internacional de Educação Tipográfica Pictórica. Pioneiros na história da visualização de dados, os três trabalharam juntos na Áustria e na Holanda, fugindo da Segunda Guerra. Quando a Holanda se rendeu, Otto e Marie foram para a Inglaterra, onde se casaram e refundaram a ISOTYPE para continuar seu trabalho. Criaram um instituto semelhante, o IZOSTAT, na União Soviética, e publicaram dezenas de livros para divulgar suas idéias. Marie Neurath foi a primeira pessoa a chamar para si a responsabilidade de traduzir dados estatísticos em objetos visualmente quantificáveis para leigos. Após a morte precoce do marido, continuou à frente do instituto, dedicando-se principalmente à publicação de livros infantis de divulgação científica. Marie, Otto e Gerd inventaram conceitos que hoje são chamados de “Linguagem Visual” e “Design Thinking”.

Com as Olimpíadas e o DOT, a revolução conceitual do ISOTYPE universalizou-se permitindo que outras formas de comunicação não verbal florescessem. Nos anos 90, o Japão novamente chacoalhou o mundo com seu poder de síntese. Em 1997, a Softbank lançou um telefone com suporte para 90 caracteres representando os primeiros emojis. A palavra emoji é resultado da junção da pronúncia dos kanjis “e”, que significa figura, “mo” que significa escrita, e “ji”, que significa caractere. Em 1998, Shigetaka Kurita, um jovem de 25 anos que trabalhava para a operadora NTT DoCoMo, recebeu a tarefa de produzir 176 emojis para um pager. O serviço decolou em 99 e Kurita ficou com a fama de inventor dos emojis. A respeitada Wired reproduziu o erro em matéria de 2018. E, pior, o MOMA incluiu o set da DoCoMo em seu acervo creditando erroneamente Kurita como o pai dos emojis. Mas um levantamento de 2019 feito pela Emojipedia aponta que um funcionário não creditado da Softbank foi seu verdadeiro criador.

Hoje, os pictogramas são fundamentais na comunicação, ajudando nossos deslocamentos pelo mundo real e reinando nas interfaces de software. Ao seu lado, onipresentes em mensagens diretas, nos grupos da família e nas redes sociais, os emojis ousaram representar muito mais do que objetos ou conceitos, eles expressam sentimentos. Facilitam a compreensão do que escrevemos dando o tom da conversa.

Mesmo existindo aos milhares, às vezes não encontramos o emojis certo para o que queremos dizer. Principalmente se o assunto for o Brasil ou os brasileiros. Se você sente falta de emojis para caipirinha, saci, passoquinha, capivara, brigadeiro ou panelaço, existe uma solução. Desde 2019 venho desenhando figurinhas para o WhatsApp e Telegram que trazem a ginga e o deboche nacional ao mundo dos emojis. Conheça o projeto.

E só deu olimpíadas nos mais clicado desta semana:

1. UOL: De ‘xerecou’ a ‘viaaado’. Os melhores momentos de Karen Jonz nas Olimpíadas.

2. Globo Esporte: Manobras que deram a prata à fadinha de Imperatriz.

3. Folha: Galeria – Caras e bocas das olimpíadas de Tóquio.

4. G1: A trajetória de Rayssa Leal, a fadinha de prata.

5. Twitter: Ilustrações em homenagem à Rayssa Leal.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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