Edição de Sábado: Seis golpes militares e um que fracassou

De tempos em tempos, fechados em seus gabinetes, generais do Exército concluem que têm o direito de decidir quem governará o Brasil. De 1889 para cá, aconteceu mais de uma dezena de vezes. Em seis delas, os oficiais tiveram sucesso. Esta é a história de cada um destes seis golpes de Estado. E de um que fracassou.

1889

O marechal Deodoro da Fonseca estava doente, tomado por uma crise asmática, na manhã de 15 de novembro, em 1889. Ainda assim sua casa foi tomada por militantes republicanos que o puseram num coche. Deodoro, de mau humor. Ao chegar ao Campo de Santana, onde trabalhava o primeiro-ministro, visconde do Ouro Preto, Deodoro deixou a carruagem, montou a cavalo, entrou no palácio, derrubou o premiê dizendo poucas palavras e voltou para casa onde se trancou sem querer receber mais ninguém.

Em momento algum deixou claro se havia derrubado só o gabinete ou se havia encerrado também a monarquia brasileira.

O imperador dom Pedro II, àquela altura, estava longe do Rio, na cidade de Petrópolis, quando recebeu no fim da manhã um telegrama de Ouro Preto informando de sua deposição. Tomou um trem para a capital e, do palácio imperial, mandou convocar Deodoro. Que o ignorou.

Amanheceu o 16 de novembro com sua residência cercada por soldados armados.

A história dos golpes brasileiros é marcada por muitos eufemismos. O de 1964 foi por anos chamado de ‘revolução’, atualmente os militares preferem trata-lo por ‘movimento’. O de 1889 éestá nos livros como ‘proclamação da República’. Alguns dos golpes militares em nossa história foram organizados. Os generais se reúnem, combinam o jogo, destituem o governo e encerram a Constituição. Outros foram confusos, com bateção de cabeças, planos vagos, nenhum acordo claro. Acabaram dando certo mais por omissão dos governantes que decidiram não resistir. Foi, igualmente, o caso de 1889 e 1964.

As Forças Armadas brasileiras se formaram profissionalmente a partir da Guerra do Paraguai e saíram com prestígio. Mas este prestígio não foi retribuído pelo Império na forma de salários e poder. Ao mesmo tempo, principalmente na elite agrária, em fins da década de 1880 havia insatisfação com a abolição da escravatura. As duas forças políticas levaram ao golpe desajeitado que tornou o Brasil uma república e pôs em seu comando um marechal.

1891

Mas era um inepto, Deodoro, como governante. A inflação disparou e ele não conseguiu garantir apoio político. Em 1891, o Congresso entregou uma Constituição para a República e, por uma margem tênue, elegeu indiretamente Deodoro, o que deveria consolidá-lo na presidência. Tinha, porém, a oposição de boa parte dos integrantes do movimento republicano. Numa situação de instabilidade, com líderes políticos regionais ameaçando pegar em armas contra o governo, o marechal tomou a decisão de fechar o Congresso Nacional. Foi o Golpe de 3 de novembro.

Só que havia um problema: ele não contava com a lealdade do Exército.

Quem tinha este apoio era Floriano Peixoto, também marechal, seu vice-presidente, e número dois das Forças Armadas desde os tempos do imperador. Em 23 daquele mês, os navios atracados na Baía de Guanabara voltaram seus canhões para a capital e ameaçaram bombardear a cidade caso Deodoro não renunciasse.

Renunciou, pois, tendo perdido tanto Exército quanto Marinha. Dois golpes seguidos, um após o outro. A República demorou décadas para se estabilizar. Inúmeros movimento armados eclodiram. Alguns populares, outros de suboficiais, muitos rurais, tantos urbanos. Mas aquela instabilidade institucional que marcou o período entre 1889 e 91 passou por um tempo.

Ao menos, até os militares começarem a questionar novamente os civis.

Um golpe fracassado

No início da tarde de 6 de julho, em 1922, ainda antes das 14h, 28 militares deixaram o Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, em direção ao palácio presidencial no Catete. Quatro tenentes, os outros soldados, haviam decidido por um suicídio ritualizado. Pouco mais de um dia antes, na madrugada de 5, havia sido tentado um levante militar para derrubar do poder o presidente Epitácio Pessoa. O líder golpista era um ex-presidente: o marechal Hermes da Fonseca. Sobrinho de Deodoro e o mais condecorado militar do Exército brasileiro. Mas durante uma noite confusa, o levante na Vila Militar havia fracassado e os oficiais amotinados foram presos. Dentre eles, o tenente Arthur da Costa e Silva. Àquela altura, dentre os rebeldes, só haviam sobrado aqueles 28 do Forte de Copacabana. Pois decidiram não se render e marchar contra o Palácio do Catete plenamente conscientes de que no caminho seriam interceptados por tropas leais ao presidente.

Pois foram.

Não se sabe quantos deles chegaram à rua Barroso — alguns foram perdendo a coragem e fugindo pelo caminho. Eram mais de dez, possivelmente menos de 15, mas a história registrou um número mítico. Os Dezoito do Forte. Pois foi àquela altura que soou o primeiro tiro, abatendo um praça que caiu imediatamente morto. Os homens se atiraram na praia, buscando proteção na mureta de concreto que separava a pista da areia. Por mais de uma hora, aquela dezena e pouco resistiu ao assédio de mais de mil soldados. Quem viu lembra que parecia chover no mar de tantas balas que caíam. Foi um massacre — sobraram vivos apenas dois, muito feridos. Os tenentes Antonio Siqueira Campos e Eduardo Gomes. Anos depois, a rua Barroso teria seu nome trocado pelo de Siqueira.

Os Dezoito do Forte deram início a uma onda de revoltas que tomariam o país nos anos seguintes e o movimento ganharia nome. Tenentismo. Aqueles tenentes como Siqueira, Gomes e Costa e Silva eram formados pela turma admitida em 1918 pela Escola Preparatória de Oficiais do Realengo, que anos depois seria substituída pela Academia Militar de Agulhas Negras. Foram, eles, os primeiros oficiais formados profissionalmente pelo Exército Brasileiro, com uma escola própria de nível universitário. Siqueira e Gomes foram líderes importantes do movimento, junto de Luís Carlos Prestes, Juarez Távora e João Alberto Lins e Barros.

Sua geração consolidou a convicção que herdou dos oficiais que os antecederam.

O princípio era simples: militares são formados para dar a vida à nação. São disciplinados. Têm apenas os interesses do país em mente. Nenhuma instituição, portanto, é mais leal ao Brasil do que as Forças Armadas. Quando os políticos traem o país, em nome da pátria são militares que têm o dever de salvá-la. Ao longo dos anos 1920 este modo de pensar impregnou nas Forças Armadas. E, nos três golpes de Estado que marcaram as décadas seguintes, líderes tenentistas estiveram envolvidos.

De alguma forma, o espírito democrático nunca pegou nas Forças Armadas. O atual discurso de generais contra o Supremo Tribunal Federal deixa isto claro.

1930

Na manhã de 24 de outubro, em 1930, deixaram o mesmo Forte de Copacabana um grupo de oficiais liderados por dois generais — Augusto Tasso Fragoso e João de Deus Mena Barreto. Desta vez, não encontrariam qualquer resistência. Ambos estavam numa conversa permanente desde a véspera. Mena havia procurado Tasso para lhe informar que, em discussões com outros generais, haviam concluído que o presidente Washington Luís Pereira de Souza não tinha mais condições de governar. “Já se achavam articulados os elementos necessários à pacificação do país”, afirmou. “Não é justo que Exército e Marinha”, continuou Mena Barreto, “se aferrem à defesa de um governo que a nação já não suporta. A força armada é servidora desta e não daquele.”

Àquela altura, tropas rebeladas compostas por soldados e policiais militares, que tinham entre os líderes Eduardo Gomes e João Alberto, estavam no Paraná prestes a avançar sobre São Paulo. Siqueira Campos havia morrido afogado meses antes e por isso não caminhava com os antigos companheiros. Prestes se juntara aos comunistas e assim escolheu outro caminho. Aquelas topas, não. Sua intenção era colocar no governo o governador gaúcho Getúlio Dornelles Vargas. E era tendo em mente este avanço rebelde que o alto-comando do Exército tomou sua decisão. Ao invés de proteger o presidente e a Constituição, precipitaria sua queda.

Ao chegar ao palácio presidencial, os dois generais já traziam consigo o contra-almirante Isaías de Noronha, representando a Marinha. (A Aeronáutica ainda não havia sido formada.) Apenas na véspera, irritado, Washington Luís havia proibido seus auxiliares de trazerem a ele as histórias que circulavam na capital de que um golpe de Estado estava em marcha. Havia se convencido de que eram boatos, de que o Exército lhe era fiel. Os três oficiais entraram no palácio e pediram que o presidente fosse informado de sua presença. Então se sentaram. E esperaram. Àquela altura, por ordens suas, o palácio já estava cercado. Washington Luís podia ter se movido ao autoengano até aquela manhã, mas já não era mais possível. E, ainda assim, não mandava entrar aqueles oficiais. Os três homens esperaram. E esperaram. Até que desistiram. Se levantaram, atravessaram salas uma após a outra, e simplesmente abriram a porta do presidente. Encontraram-no de pé à cabeceira da mesa, com todos seus ministros também de pé.

“Disse-lhe que ele de certo compreenderia o nosso pesar de sermos obrigados a assumir aquela atitude”, escreveu mais tarde Tasso Fragoso. “Naquele momento só uma coisa me preocupava, a vida dele”, registrou não sem um quê de cinismo. “É a única coisa que não me preocupa”, respondeu o presidente. Mas, com o palácio cercado e aqueles dois generais mais um contra-almirante à frente, não havia escolha. Horas depois, Washington Luís deixou o prédio num automóvel.

A imagem foi registrada por um jovem repórter que havia recebido a notícia de que aquele golpe estava em curso. Roberto Marinho fez ali a foto que se tornou o mais importante furo de sua carreira.

Quando Getúlio enfim chegou ao Rio, Tasso, Mena e Noronha ocupavam o governo federal e o repassaram ao novo presidente.

1937

Foram anos intensos e confusos os primeiros de Vargas no poder. A Primeira República caiu, Washington Luís foi exilado, e em 1932 São Paulo se levantou rebelada. O presidente gaúcho tomou o poder derrubando um presidente paulista, alijara a elite daquele estado e havia prometido uma Assembleia Constituinte. Não aconteceu. A guerra civil veio e foi, deixando quase dois mil mortos, a Constituinte então foi entregue e, em 1934, o país ganhou a Constituição mais democrática que teve até chegar a de 1988. Entre outros temas, determinava eleições presidenciais para dali a quatro anos.

É só que, quando a campanha eleitoral já estava em curso e chegava o segundo semestre de 1937, Getúlio Vargas não se sentia ainda disposto a ceder o poder. Apenas um novo golpe de Estado, que pusesse abaixo mais uma Constituição, poderia lhe garantir isso. Só que golpes exigem justificativas. Em 1930, havia exaustão com os fracassos do regime que durava já desde o primeiro presidente eleito, sucessor de Floriano Peixoto. Em 1937 seria necessário contar uma história e ela veio na forma de uma mentira. O Plano Cohen.

Naquele ano, um jovem coronel chamado Olímpio Mourão Filho redigiu um plano que indicava como uma revolução comunista poderia acontecer no Brasil. Mourão Filho não era comunista — na verdade, estava num lugar ideológico diametralmente oposto. Era o número dois da milícia fascista da Ação Integralista Brasileira. Ao longo da vida, o coronel disse que escreveu o texto como um estudo para ter um cenário sobre o qual pudesse pensar a defesa do país perante aquele levante.

Em 1937, a possibilidade de um levante comunista não era apenas hipotética. Apenas dois anos antes, Luís Carlos Prestes havia liderado a Intentona, justamente uma tentativa de revolução financiada pela União Soviética de Josef Stálin. Foi mal planejada e um fracasso completo, mas o alerta estava aceso. E dois generais, justamente os dois mais graduados do Exército, levaram a Getúlio o plano e tomaram a decisão de divulga-lo como se fosse verdadeiro. Eram Pedro de Góes Monteiro e Eurico Gaspar Dutra.

O Congresso Nacional era, principalmente, liberal. Góes Monteiro e Dutra, porém, começavam a sugerir que sua composição tinha disfarçados traços comunistas. Em 28 de setembro de 1937, o presidente Getúlio Vargas recebeu uma delegação de generais. “É preciso agir, mesmo que fora da lei, mas em defesa das instituições”, lhe disse um deles. O político gaúcho assentiu. Mas não bastava o apoio militar, o presidente considerou que precisava ter certeza de que políticos o suficiente apoiariam uma medida de força. No final de outubro, enquanto o Plano Cohen era badalado pelas ondas de rádio e páginas de jornais, encaminhou ao Congresso o pedido de que fosse decretado Estado de Guerra. É quando certos preceitos constitucionais são suprimidos porque o país está sob ameaça externa. Quando deputados e senadores o aprovaram, Getúlio teve a confirmação de que seu golpe não teria resistência.

Na madrugada de 10 de novembro de 1937, as Forças Armadas cercaram o prédio do Congresso Nacional. Inúmeros parlamentares foram presos. Naquela manhã, Getúlio apresentou uma nova Constituição. Tinha por apelido a Polaca, por ter sido inspirada na Carta polonesa. Fascista.

1945

Em finais de 1943, estava ficando já claro que os Aliados venceriam a Grande Guerra. Com o fim do conflito na Europa, era inevitável que uma mudança de rumos precisaria ocorrer no Brasil. A Ditadura do Estado Novo teria de ceder espaço a uma democracia. Sempre hábil, Getúlio tinha planos de ser seu próprio sucessor. Para isso, pôs a máquina do Estado a serviço de cultivar sua imagem e construir uma base popular que pudesse elegê-lo no voto. Assim, do flerte aberto com a direita na década anterior, começou a reconstruir sua imagem à esquerda. Em 1º de Maio de 1943, anunciou o decreto-lei 5.452, que consolidava as Leis do Trabalho. CLT. Formalizava regras para criação de sindicatos, consolidava a carga horária de 8 horas, seis dias por semana, barrava o trabalho infantil, estabelecia o salário mínimo e uma estrutura previdenciária para aposentadoria.

Era um golpe de mestre. Se por um lado consolidava direitos trabalhistas despertando a fidelidade de operários da indústria que nascia, por outro submetia os sindicatos à pesada influência do Estado, afastando os comunistas. Ao fazer com que o Estado repassasse dinheiro para que os sindicatos se sustentassem, criava uma dependência que lhe garantia influência.

Mas conforme 1945 se aproximava, Getúlio não se anunciava candidato. Incentivava o surgimento, na sociedade, de um movimento em seu apoio. Queria ser alçado ao poder. Àquela altura, já haviam se formado três grandes partidos políticos. Dois deles, por suas mãos. Um, o PTB, seria o seu, concentrando funcionários públicos e operários. O PSD reuniria os chefes políticos regionais. A UDN era da oposição, composta por liberais e conservadores. Eurico Gaspar Dutra, que havia sido seu ministro da Guerra e parceiro no golpe de 1937, era o candidato do PSD. O agora brigadeiro tenentista Eduardo Gomes era o candidato da UDN, de oposição. Se o PTB teria candidato seguia em aberto — mas todos sabiam que Getúlio se organizava para ocupar o posto.

Em 28 de outubro daquele ano, o chefe da polícia da capital, João Alberto Lins e Barros, foi informado de que seria substituído no cargo por Bejo Vargas, irmão do presidente. No mesmo momento, informou ao general Cordeiro de Farias da mudança. Os dois haviam sido companheiros de Tenentismo, líderes da Coluna Prestes. Cordeiro havia também comandado a Força Expedicionária Brasileira durante a Guerra. Para os dois, estava claro. Quando pôs o irmão no comando da segurança da capital, Getúlio estava planejando algo. Pois Cordeiro de presto procurou Góes Monteiro — e os generais foram conversando entre si.

Em 29 de outubro de 1945, Cordeiro de Farias e Góes Monteiro entraram no gabinete presidencial e comunicaram Getúlio de que as Forças Armadas não o desejavam mais como presidente.

1964

O gaúcho João Belchior Marques Goulart era herdeiro político de Getúlio Vargas. Vice, havia assumido a presidência após a renúncia surpreendente de Jânio Quadros, em 1961. Governou com o país em crise econômica, inflação e com um certo desajeito — não tinha a habilidade política do padrinho. E havia escolhido um duplo confronto. Com o Congresso Nacional, onde abriu mão de adquirir apoio. Também contra o alto-comando do Exército, decidindo insuflar um levante de suboficiais. Enquanto isso, uma onda conservadora tomava a classe média, principalmente em São Paulo, que se organizava em marchas contra o governo. Simultaneamente, líderes comunistas de um lado, e o governador gaúcho Leonel Brizola do outro, faziam discursos defendendo justamente que Jango partisse para a briga. Que acirrasse a disputa. As vozes pedindo moderação ao seu lado eram poucas, mas dentre elas pesava a do líder governista na Câmara, Tancredo Neves. O deputado acreditava que contornar a crise era possível, caso o governo decidisse botar panos quentes.

Se em 1937 era possível dizer que os soviéticos realmente tinham planos de uma revolução comunista, no Brasil, não havia qualquer indício real disso em 1964. Mas, se aproveitando da radicalização do discurso de Brizola e dos comunistas, a direita defendia que o país corria risco real.

E, entre a busca do diálogo defendida por Tancredo e do confronto proposta por Brizola, Jango ficou com o segundo.

Se nos golpes de 30, 37 e 45 havia se formado um rápido consenso no alto-comando do Exército, em 1964 não foi exatamente assim. As conversas ocorriam. Envolviam o marechal da reserva Cordeiro de Farias, os generais quatro estrelas Orlando Geisel, Humberto Castello Branco, Arthur da Costa e Silva. Todos eram conspiradores profissionais desde os anos 1920 e já haviam planejado golpes não concretizados em 1954 e 55. Não conseguiam chegar, porém, a um acordo claro.

Desta vez, não houve uma comissão de generais entrando pelo gabinete presidencial para comunicar o fim do governo.

Na madrugada de 31 de março, começou a se espalhar a notícia de que o agora general Olympio de Mourão Filho havia levantado suas tropas, em Juiz de Fora, e tomara o rumo do Rio de Janeiro para dar um golpe. Nunca aconteceu, mas os boatos eram convincentes e ninguém o negava. Naquela tarde, Castello, chefe do Estado-Maior do Exército, se isolou em um apartamento de Copacabana e passou a tarde em telefonemas para seus pares. Os generais golpistas eram muitos, mas de telefone em telefone, não se entendiam, não chegavam a conclusão alguma. Só que, diferentemente de Washington Luís 34 anos antes, Jango acreditou que o golpe estava em curso.

E desistiu.

Ao fim de dois dias nos quais havia pouca informação, muitos boatos e nenhum acordo, o presidente tomou um avião para o Rio Grande do Sul e o presidente do Senado tomou o microfone no plenário da Câmara, em sessão conjunta do Congresso.

Sem base legal, declarou vaga a presidência da República.

Seis golpes concretizados com a participação do alto-comando do Exército brasileiro. E o fantasma está sendo atiçado novamente. Não custa dizer: o número de golpes planejados e nunca levados adiante, ou mesmo fracassados, é maior do que os de sucesso.

As histórias registradas por aqui foram colhidas dos livros Washington Luís, de Célio Debes; Getúlio 1930—1945, de Lira Neto; A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari.

A síndrome de Frankenstein no Afeganistão

Quando o assinante estiver lendo estas palavras, praticamente a metade do território afegão terá voltado ao controle do Talibã, um grupo islâmico que dominou o país asiático entre 1996 e 2001, promovendo um regime de terror teocrático que se tornou abrigo e centro de treinamento de terroristas. Ao longo de duas décadas, a presença militar dos EUA sustentou o governo afegão, mas diante da impopularidade interna do conflito, o presidente Joe Biden determinou em julho a retirada total das tropas, abrindo caminho para o retorno do Talibã. Militares americanos ainda estão por lá, mas apenas para coordenar a saída de seus cidadãos que permanecem no país.

Há um que de Vietnã na debandada americana. Mais uma vez a superpotência se vê forçada a bater em retirada diante de um inimigo muito mais fraco, vencida não pela superioridade militar, mas pelo cansaço. A diferença é que o futuro do povo afegão é conhecido e sombrio. Adepto de uma interpretação estrita da Lei Islâmica, o Talibã tem uma política de intensa misoginia, homofobia e intolerância religiosa. Em seu governo, escolas para mulheres foram fechadas. Em 2001, o grupo destruiu um conjunto de estátuas monumentais de Buda de valor histórico inestimável em Bamiyan. A ultraortodoxia islâmica era (e tudo indica que voltará a ser) lei.

Mas há um aspecto peculiar nessa derrota dos EUA e da Civilização. A Síndrome de Frankenstein, quando a criatura monstruosa se volta contra o criador. Há uma parcela nada pequena de responsabilidade do governo americano na ascensão do Talibã. Para isso temos que voltar no tempo até entender o que acontecia nos dois países ao longo dos anos 1970.

Antiga província persa, saco de pancadas dos mongóis e vassalo involuntário do Império Britânico, o Afeganistão se tornou uma monarquia secular independente em 1919, dando início a um processo de modernização do país, incluindo a educação de mulheres, que prosseguiu mesmo após o golpe que aboliu a monarquia, em 1973. A capital Cabul e grandes cidades como Kandahar refletiam o espírito cosmopolita que o governo buscava, embora o câncer do fundamentalismo religioso ainda prosperasse no interior do país.

Em 1978, um golpe de Estado sangrento levou ao poder o Partido Democrático do Povo do Afeganistão – Partido Comunista do Afeganistão para os íntimos. Imediatamente surgiu uma resistência na figura dos mujahideen, guerrilheiros islâmicos financiados pelo vizinho Paquistão, pela China e pelos EUA. Em dezembro de 1979, o Exército Vermelho invadiu o Afeganistão para sustentar o regime.

Vamos nos mudar para os EUA um pouquinho. A década de 1970 foi dolorosa para os americanos, condicionados a acreditar em sua excepcionalidade. A vexaminosa retirada do Vietnã mostrou que eles não eram invencíveis; o escândalo de Watergate e a renúncia de Richard Nixon desnudaram o quão corrupto seu sistema político se tornara. Para culminar, o “mundo livre” parecia encurralado, com uma revolução comunista (ok, Sandinista) derrubando o ditador amigo Anastasio Somoza na Nicarágua – bem ali, na América Central – em 1978, a Revolução Islâmica arrebatando o Irã em 1979 e os soviéticos entrando com seus tanques no Afeganistão.

A eleição do ultraconservador Ronald Reagan em 1980 representou uma virada da maré. Um resgate da hegemonia, mesmo que amoral, dos EUA. O financiamento ao terrorismo dos Contra na Nicarágua, o apoio ao ditador Saddam Hussein na guerra Irã-Iraque e a ação no Afeganistão.

Ah, o Afeganistão. Ali era o caso de matar dois coelhos com uma cajadada. Os mujahideen não eram apenas anticomunistas, eles eram sunitas, inimigos dos xiitas iranianos. Não vamos nem tentar explicar a diferença aqui. Basta dizer que ela vem justificando banhos de sangue desde a morte de Maomé, no ano 632 da era atual.

Treze anos de guerra com os soviéticos reduziram o Afeganistão a escombros, e em 1992 o país tentou se reerguer. Mas ficou claro que os mujahideen não passavam de bandos de arruaceiros, abrindo espaço para que um grupo de estudantes da lei islâmica, os talib, financiados pelo Paquistão e novamente pelos EUA, se organizassem num movimento religioso-militar que varreu o país até tomar o poder em 1996.

Aqui cabe um detalhe curioso. Na virada de 2000 para 2001, um golpe judiciário perpetrado pela Suprema Corte dos EUA e pelo Partido Republicano entregou a presidência a George W. Bush. Cumprindo uma promessa de campanha, ele entregou temas como direitos reprodutivos e da mulher a grupos evangélicos. Durante quase um ano, o único país que votou sistematicamente com os EUA sobre esses temas em fóruns internacionais foi o Afeganistão do Talibã.

A parceria acabou em 11 de setembro de 2001, quando a al-Qaida de Osama Bin Laden, baseado no Afeganistão, desfechou o mais sério ataque terrorista contra os EUA. Osama, um rico saudita seguidor do wahabismo, uma versão ultrafundamentalista do islã sunita, foi um dos mujahideen treinados pelos EUA para enfrentar os soviéticos. Como o Talibã se recusasse a entregá-lo, uma coalizão liderada por Washington invadiu o Afeganistão e depôs o grupo fundamentalista.

E hoje os EUA estão mais uma vez em retirada, abrindo espaço para os horrores da teocracia. Washington fecundou e chocou o ovo da serpente, mas caberá aos afegãos provar novamente de seu veneno.

Quando QAnon e 'Eu Sou A Lenda' se encontram

Quando a música parou de tocar na estação de rádio CBS, os ouvintes se depararam com a “notícia extraordinária” de uma invasão marciana ao estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Era, na verdade, uma peça de radioteatro escrita e dirigida por Orson Welles, adaptada do livro Guerra dos Mundos de H. G. Wells. Metade dos seis milhões de ouvintes tinha sintonizado na emissora depois da introdução do programa, que alertava o fato de ser uma história ficcional. Assim, pelo menos meio milhão de desavisados iniciaram o caos nas ruas de Nova Jersey e Nova York, com linhas telefônicas sobrecarregadas, pânico nas ruas e congestionamento de estradas por pessoas tentando fugir do perigo iminente. 

Alguém pode até pensar que o mundo era muito diferente naquele ano de 1938, quando o rádio vivia sua Era de Ouro. Não faria muito sentido que alguém acreditasse em absurdos como invasão alienígena ou zumbis em pleno ano de 2021. Mas um artigo no New York Times, que mostra uma ótica na cidade de Nova York com dificuldades para convencer seus funcionários a se vacinarem contra a Covid-19, tem repercutido mundo afora. Entre as alegações da recusa em se imunizar, um motivo chamou a atenção. Uma das funcionárias chegou a dizer que estava preocupada, por achar que os personagens do filme Eu sou a Lenda se transformaram em zumbis por causa de uma vacina. 

Eu sou a Lenda

Na verdade, o filme de 2007 dirigido por Francis Lawrence é uma adaptação do livro homônimo de Richard Matheson, que conta a história - fictícia, aliás - de um grupo de cientistas que modificam um vírus para encontrar a cura do câncer, mas acaba transformando todo mundo em mutantes, com exceção do pesquisador Robert Neville, personagem vivido por Will Smith. 

O filme tem sido usado por grupos antivax, que distorceram fatos sobre o enredo para convencer pessoas a não tomar nenhuma vacina contra o coronavírus. Com a repercussão da reportagem do New York Times, nesta semana Akiva Goldsman, um dos roteiristas da película, se viu na necessidade de esclarecer que a história não é real. “Eu inventei isso”, disse o escritor no Twitter. 

Diversas peças de desinformação circulam pelas redes, dizendo que os personagens de Eu sou a Lenda se transformaram em zumbis depois de tomar uma vacina. Essas postagens passaram a ser compartilhadas após o governo norte-americano autorizar o uso do imunizante da Pfizer contra o coronavírus. Até a quarta-feira, mais de 166 milhões de pessoas foram totalmente vacinadas nos Estados Unidos, mas sem nenhum zumbi identificado - ou mesmo transformado em jacaré.  

Comparar filmes com a situação atual da pandemia já não é novidade. Por aqui, títulos como Flu (A Gripe, na versão em português) tiveram fatos distorcidos para confundir e gerar desconfiança, quanto à origem do coronavírus, nas redes sociais. 

QAnon

Mitos que envolvem o enredo de produções cinematográficas - e fictícias, vale ressaltar - são muito comuns em grupos de teoria conspiratória, como o QAnon (sigla para Q Anônimo). Esse movimento teve início em outubro de 2017 em fóruns na rede social 4chan. Um usuário anônimo autodenominado “Q” fez diversas postagens enigmáticas e com conteúdos pró-Trump. Durante a pandemia do novo coronavírus, as teorias levantadas por seus seguidores se espalharam por diversas redes sociais, ganhando maior visibilidade. Uma das principais crenças de seus adeptos é que o ex-presidente Donald Trump travava uma batalha contra pedófilos adoradores de Satanás, que são protegidos por membros do alto escalão do governo, empresários e a imprensa. 

Membros desse grupo estão envolvidos em casos graves dentro e fora dos Estados Unidos. O mais emblemático foi a invasão ao Capitólio em 6 de janeiro, com o objetivo de impedir a confirmação de Joe Biden como presidente eleito do país e que causou a morte de cinco pessoas. Um caso divulgado nesta semana envolvendo outro adepto do QAnon ocorreu no México, quando um americano matou seus dois filhos, um de 10 meses e outro de dois anos, antes de voltar à sua terra natal. Em depoimento aos agentes do FBI, ele disse que precisou matar as crianças porque elas tinham adquirido “o DNA de cobra da mãe”. Em sua visão, as crianças se tornariam monstros, e para “salvar o mundo”, precisou cometer os infanticídios. 

Seja em 1938 por um ruído de comunicação ou agora, por desinformação e disputas políticas de narrativas, a mente humana ainda é fértil em dar vida à ficções e não só imitar a arte, mas vivê-la como se fosse realidade.

Como montar uma coleção de discos de vinil do zero em 2021

Acredite se quiser, mas aquelas bolachas esquecidas no fundo do armário dos nossos pais e avós estão voltando à moda. Na pandemia, a venda online de discos de vinil cresceu 30%. Além da adesão da geração Z – aqui representada por esta que vos escreve –, artistas como Billie Eilish e Taylor Swift estão aquecendo novamente um mercado que já dominou a indústria fonográfica em décadas passadas. Mas é possível colecionar discos em pleno 2021? A resposta é sim. E se você pretende começar uma coleção do zero, as dicas a seguir podem ser valiosas para qualquer aspirante a colecionador (da geração Z ou não).

Os primeiros discos

Voltando à história dos armários, é comum que os primeiros discos de um colecionador sejam herdados dos pais e avós. Não é para menos. Afinal, se bem conservados e cuidados, os vinis podem durar (e tocar) por décadas. Por isso, é possível que você encontre alguns discos perdidos ou esquecidos em casa. Claro, nem sempre são os discos dos sonhos. Mas se você tiver algum apreço por Roberto Carlos ou A-ha, vale a pena fazer uma busca e selecionar alguns com carinho. Eu mesma tenho uma edição original do álbum Robertos Carlos, de 1966, com alguns dos maiores clássicos da Jovem Guarda. Por isso, eu aconselho: sempre dê uma chance. Às vezes você pode até encontrar um disco raro, cobiçado por muitos colecionadores. Agora, se tudo isso for muito cringe para você, siga para a próxima dica.

Garimpando

Se os últimos vinis da sua família ficaram lá na década de 80, como foi o meu caso, a saída é pôr a mão no bolso. Felizmente ainda existem diversas formas de comprar um disco, novo ou usado. No Instagram, por exemplo, a hashtag “vinil” possui mais de 1,7 milhão de publicações. São milhares de colecionadores, vendedores e lojas especializadas. Também existem lojas físicas, como as da Galeria do Rock, em São Paulo, e a Nova Barão, ambas no centro da cidade. Além de LPs, você encontra CDs e até fitas K7, em estilos e preços variados.

Aliás, essa é uma experiência à parte. Garimpar LPs é uma das atividades mais prazerosas que existem para qualquer colecionador, e você pode fazer isso tanto em lojas quanto em sebos e feiras. Uma das maiores feiras de São Paulo foi criada em 2011 pela Locomotiva Discos, tradicional loja de discos de vinil e CDs da cidade. Após mais de um ano sem edições por conta da pandemia, o evento volta a acontecer neste sábado, 14. Já os sebos e lojas de antiguidades também são uma boa opção para quem tem paciência, pouco dinheiro e, muitas vezes, resistência ao cheiro de mofo. Existem espaços com milhares de discos que chegam a custar apenas R$ 6. Nesses locais, você vai se perguntar por que tanta gente ouvia Julio Iglesias e trilha sonora de novela, fora os incontáveis exemplares do Xou da Xuxa. Garimpar vinil também é isso: procurar um bom disco em meio à milhares de bolachões velhos e misturados.

Aqui uma lista com 30 lojas de discos para começar a garimpar já.

Comprando uma vitrola

Se você não é tão exigente quanto à qualidade do som ou simplesmente não quer gastar muito em um toca-discos mais avançado pode optar pelas famosas vitrolas em formato de maleta. A Multilaser possui algumas opções mais em conta que podem variar de R$ 300 até R$ 500. Para quem quer começar uma coleção com tudo, os toca-discos automáticos Audio-Technica são um exemplo de equipamento mais complexo e que precisa de uma caixa de som externa. Esses, por sua vez, podem custar de R$ 1.300 até R$ 2.000, com opções ainda mais caras. Embora tenham a mesma função de tocar discos, as vitrolas e os toca-discos não são a mesma coisa. Veja os melhores de 2021.

Segure a emoção

Eu sei. A vontade de comprar a discografia completa dos Beatles ou da Lana Del Rey é grande, mas o preço de um vinil pode variar de acordo com alguns fatores e costuma ser salgado. Por serem novos, importados e disponíveis em pouca tiragem, discos de artistas atuais, por exemplo, não saem por menos de R$ 100 reais. A edição azul de 2020 do LP Future Nostalgia da Dua Lipa, por exemplo, custa cerca de R$ 300. Por isso, além dos discos novos, os LPs usados são os queridinhos dos colecionadores, mas existem exceções. A qualidade da capa, do disco e se possui ou não encarte são fatores que influenciam no preço. Desconfie se encontrar o Racional Volumes 1 ou 2 do Tim Maia ou qualquer disco do Led Zeppelin com preços muitos baixos e sempre leia a descrição dos anúncios. Afinal, quem gostaria de comprar um disco e ter a infeliz surpresa de ouvi-lo pulando e com faixas riscadas? A compra online também exige cuidado redobrado.

Pronto, agora que você pegou as dicas básicas, já pode se tonar um hipster analógico em 2021. Bom garimpo!

E os mais clicados da semana foram...

1. O Globo: Quanto cada medalhista brasileiro vai receber pelas conquistas em Tóquio.

2. UOL: Os melhores memes da tanqueada dessa semana.

3. Poder 360: Brasil é comparado com Coréia do Norte por conta de desfile de blindados.

4. BBS: Os blindados da Marinha que foram exibidos na tanqueada.

5. G1: Se já havia recebido duas doses de vacina, como Tarcísio Meira morreu de Covid-19?

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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