Edição de Sábado: A montanha-russa política do Chile

Na última pesquisa realizada no Chile pela Atlas Inteligência, o candidato de extrema-direita José Antonio Kast apareceu liderando a corrida para as eleições do próximo dia 21 de novembro, com 30,1% das intenções de voto. No início de setembro, há apenas dois meses, tinha dificuldades de encostar nos dez pontos percentuais. Kast, o filho caçula de um oficial nazista que chegou fugido ao país nos anos 1940, vem sendo tratado na imprensa latino-americana como o ‘Bolsonaro chileno’. Sua repentina ascensão é uma surpresa que boa parte dos cientistas políticos não anteviram — mas é, também, sintoma de um país que se dividiu profundamente desde 2019, quando as ruas da capital Santiago entraram em convulsão social. As forças políticas se espatifaram e então se rearranjaram bem mais do que uma vez nos últimos dois anos, desfazendo e criando alianças que levassem a algum sentido ideológico e que ao mesmo tempo fossem capazes de dar respostas às frustrações que existem na sociedade. Frustrações que são grandes. Quem presta atenção no detalhe vê, no Chile, um debate político que se aproxima bem mais do europeu do que o de seus vizinhos. Os problemas, porém, são tipicamente latino-americanos. É uma montanha-russa: não bastasse uma eleição presidencial particularmente intensa, o atual presidente Sebástian Piñera está enfrentando um processo de impeachment e uma assembleia constituinte acaba de ser formada. Com maioria de esquerda.

O debate chileno tem muito a iluminar a respeito do Brasil.

Kast não é o favorito para o segundo turno — por enquanto, apenas uma das pesquisas indica sua vitória. Mas o resultado será apertado. Seu adversário deve ser o deputado-federal Gabriel Boric, um político de centro-esquerda de apenas 35 anos, candidato da aliança de partidos Apruebo Dignidad. Boric, na pesquisa Atlas, tem 24,5% e a terceira colocada, Yasna Provoste, tem 10,2%. Também ela, candidata da Unidad Constituyente, representa uma aliança de centro-esquerda.

Compreender como são compostas estas alianças, similares às federações partidárias recém-aprovadas no Brasil, ajuda a entender como os partidos no Chile refletem sobre o momento. Pois, na formação de cada agrupamento, há por trás um cálculo tanto eleitoral quando ideológico. É como se os distintos jeitos de pensar a sociedade fossem peças possíveis de encaixe em muitos quebra-cabeças. Cada forma de encaixar dá uma mistura diferente. Em seus debates, os políticos buscam o potencial eleitoral de cada partido e, simultaneamente, analisam cada conjunto de ideias, as possibilidades de encontro, e as dificuldades de possíveis atritos. As duas alianças de esquerda, por exemplo, são marcadamente distintas.

Entre a Esquerda e o Centro

A Apruebo Dignidad, ou Aprovo Dignidade em português, é composta de duas coalizões que, juntas, representam dez partidos. A coalizão Chile Digno é notadamente de esquerda enquanto o Frente Amplio guina para a centro-esquerda. Na primeira, a maior força é o Partido Comunista de Chile, assumidamente marxista-leninista. Na segunda, o partido dominante é a Convergencia Social. As duas coalizões realizaram juntas eleições primárias em julho para definir seu candidato único à presidência. O comunista Daniel Jadue entrou na disputa como favorito, mas o conjunto de afiliados preferiu um nome mais moderado. Os cinco de esquerda se identificam como marxistas, ecossocialistas, social-libertários. Os cinco de centro-esquerda preferem se ver como social-democratas.

Não é um encontro sem tensões. Após Daniel Ortega ser reeleito para o quarto mandato seguido na Nicarágua em uma eleição com indícios de fraude e sete candidatos da oposição presos, Boric imediatamente se manifestou. “Nosso governo terá o compromisso com a democracia e os direitos humanos, sem qualquer apoio a ditaduras”, tuitou. “A Nicarágua precisa de democracia, eleições sem fraude ou perseguição de opositores.” Sem que ele soubesse, os comunistas haviam também se posicionado horas antes. Elogiando a eleição de Ortega. O desgaste para o candidato foi inevitável. Os adversários imediatamente põem em dúvida se sua candidatura é de centro-esquerda ou se representa a esquerda radical.

Por vezes os conflitos internos não tratam do debate teórico sobre democracia, são mesmo práticos. No início de novembro, por uma margem estreita, o Congresso Nacional decidiu não autorizar o quarto saque de até 10% dos fundos voltados para aposentadoria. Durante a pandemia, quase um milhão dos 20 milhões de chilenos perderam o emprego e ainda não voltaram a trabalhar. O desespero por causa da economia é real, e para criar alguma forma de auxílio os legisladores autorizaram a população a sacar uma parte do que tinham depositado nos fundos que garantem a aposentadoria futura. Três saques de até 10% passaram — o quarto, não.

Como deputado, Boric votou a favor. O nome mais cotado para ser seu ministro da Fazenda, um amigo pessoal desde o movimento estudantil chamado Nicolás Grau, o criticou. “As necessidades entre a primeira autorização de saque e esta quarta mudaram radicalmente”, declarou Grau numa entrevista. “Hoje temos inflação que se explica em parte porque o consumo disparou. Não conheço ninguém no mundo da economia a quem esta ideia soe como boa política.”

O Frente Amplio de Boric cortou na própria carne para construir a aliança com o Chile Digno. Entre novembro de 2019 e dezembro de 2020, deixaram a coalizão o Partido Ecologista Verde, o Igualdad e, principalmente, o Partido Liberal. Do ponto de vista pessoal, foi a perda mais dolorosa — na Câmara, com frequência Boric e o principal parlamentar liberal, Vlado Mirosevic, propunham juntos leis de desburocratização e de cortes de gastos com atividades políticas, projetos contra o fisiologismo. Mas a decisão de formar uma aliança que envolvia os comunistas levou ao rompimento. “Quando as vontades não convergem a respeito do caminho a seguir”, publicaram os liberais num comunicado oficial, “o correto é seguir caminhos separados.” O custo da aliança com os comunistas não se contou apenas em partidos. Outros dois deputados importantes do Centro, Pablo Vidal e Natalia Castillo, também parceiros constantes de Boric no parlamento, deixaram seus partidos partidos para se juntar no caminho que os liberais tomaram.

Este grupo insatisfeito formou outra aliança, a Unidad Constituyente, de Centro e Centro-Esquerda, encabeçada por um dos mais tradicionais partidos do país — o Partido Socialista, da ex-presidente Michelle Bachelet.

Terceira colocada, candidata da Unidad, Yasna Provoste fez questão de pontuar as dificuldades de Boric com seus parceiros da esquerda radical. “É difícil mesmo para o Gabriel”, observou a candidata da aliança Nuevo Pacto Social. “Ele tem uma aliança em que diz uma coisa e os seus partidos dizem outra.”

No segundo turno, os dois grupos se encontrarão novamente.

A política do Chile é um conflito de gerações

Todos estes líderes do Centro à Esquerda têm menos de 40 — não é só Boric aos 35. Castillo tem 39 anos, Vidal tem 38 e, Mirosevic, 34. O líder comunista, Daniel Jadue, é que vem de outra geração. Tem 54 anos. E isto explica muito sobre as diferenças de postura.

“Os chilenos são cada vez mais liberais em seus valores”, explica o cientista político Roberto Funk. “Mas isto é uma particularidade dos mais jovens. Acesso a educação em terceiro grau é algo relativamente novo no país, então boa parte dos muito educados tem menos de 40. Enquanto isso, os eleitores mais velhos, menos educados, ou os das zonas rurais, veem valores progressistas como elitistas e moralmente questionáveis.”

Enquanto parte do eleitorado mais urbano e mais jovem se divide entre as duas alianças de centro e esquerda, quem tem medo flertou com o candidato do presidente Sebastián Piñera, Sebastián Sichel. Ambos têm o mesmo prenome e representam o mesmo conservadorismo tradicional. Sichel vinha bem nas pesquisas, num sólido segundo atrás de Boric, quando seu mundo despencou no início de setembro. Piñera foi implicado num escândalo de corrupção revelado pelos Panama Papers — ele interveio como presidente para facilitar a mineração numa área protegida e, assim, valorizar uma empresa que sua família vendeu. É por isto que, no início da semana, a Câmara dos Deputados aprovou abertura de processo de impeachment. Mas o infortúnio de Piñera é uma explicação fácil para suas dificuldades. Como candidato, Sichel começou a buscar diálogo com forças mais ao Centro do espectro político. Para um pedaço grande do eleitorado incomodado com avanços progressistas, pegou mal.

Em 24 de setembro ele era o segundo colocado na pesquisa Cadem. Em 8 de outubro estava em quarto e seu adversário no espectro de direita, Kast, chegava a sua posição de segundo. Em 22 de outubro Kast já aparecia como primeiro.

A plataforma de José Antonio Kast não oferece qualquer surpresa para quem acompanhou as promessas de Donald Trump ou Jair Bolsonaro. Em seu discurso há ataques à ‘ideologia de gênero’, quer construir uma barreira física na fronteira com a Bolívia para impedir a entrada de imigrantes, acusa a ONU de representar uma força do ‘globalismo de esquerda’. É contra a ideia de que o país deve ampliar os direitos das comunidades indígenas.

O que separa Kast de Bolsonaro e Trump é a velocidade. Tanto o brasileiro quanto o americano cresceram lentamente ao longo de mais de um ano até chegarem à presidência. Kast é um fenômeno de dois meses. E, para compreendê-lo, é preciso antes compreender o que ocorreu no país desde as manifestações que tomaram suas ruas, em 2019.

A Convulsão Social

2019 no Chile foi como 2013 no Brasil. Pois é — a diferença entre os dois países passa pela compressão do tempo. O que se deu no Brasil ao longo de cinco anos — convulsão social, impeachment, ascensão da extrema-direita —, no Chile está acontecendo em um ano e meio. Como 2013, o 2019 chileno foi percebido inicialmente como uma revolta popular de esquerda. Mas, como aqui, era mais complexo do que isso.

“A convulsão social nunca acabou”, segue em seu raciocínio Roberto Funk. “Se acalmou porque apareceu a pandemia, mas ainda estamos na lógica daquele processo. Veja essa política de autorizar saques dos fundos de pensão. O único fator que explica esta medida ter sido aprovada três vezes é que os parlamentares têm medo das ruas.”

Funk, como a maior parte de seus colegas na ciência política, acreditaram que dos movimentos de 2019 sairia um populismo de esquerda. E tudo indicava algo assim. A expectativa é de que a Apruebo Dignidad escolheria nas primárias o comunista Daniel Jadue como seu candidato ao invés de cair para um nome mais moderado, como o de Boric. O plebiscito que autorizou a formação de uma assembleia constituinte contou com 80% de aprovação do eleitorado — e as pautas todas eram progressistas. A esquerda venceu 55 das 155 cadeiras da assembleia. Além disto, representantes dos indígenas já tinham reservadas outras 17 cadeiras para a garantia de sua representatividade.

O cenário estava pronto para um candidato de esquerda que se posicionasse como um Robin Hood, um herói do povo contra as elites que a tudo sugam. Boric se recusou a fazer este papel. Sem abrir mão de um discurso declaradamente de esquerda, seu ideal de sociedade se parece mais com países nórdicos ou com a Alemanha do que com Venezuela ou Cuba. Mesmo quando cita o brasileiro Lula como uma referência, fala muito especificamente do Lula eleito em 2002, aquele que iniciou o governo garantido amplas alianças, diálogos com todas as forças, e estabilidade econômica. Boa parte dos conflitos internos de seu grupo vêm, justamente, das pressões dos comunistas por radicalização.

Ocorre que, por trás dos números aparentemente favoráveis à esquerda, muito se esconde. Sim, 80% dos eleitores votaram a favor da Constituição. Mas o número trata dos votos válidos e 50% dos chilenos aptos a votar não foram às urnas. Também é verdade que a esquerda e independentes tiveram uma vitória estrondosa na formação do colegiado que vai redigir a nova Constituição. A abstenção foi de 43% dos eleitores.

“Esta eleição presidencial será uma briga entre a esperança e o medo”, resumiu num de seus tradicionais Leaders a revista britânica The Economist. A esperança vem dos jovens, o medo da mudança, dos mais velhos. O corte que divide os chilenos não é econômico, o corte é geracional, é educacional e é entre quem vive no campo e quem vive na cidade. As agruras econômicas, todos estão vivendo.

Um dos sinais disso é que até Kast, o candidato que defende a obra do ditador Augusto Pinochet e que tomou para si o manto do populismo, é crítico do sistema de aposentadorias chileno. Justamente uma das principais obras da atual Constituição, preparada ainda no governo do general-ditador. No Chile, cada cidadão é livre para escolher entre ter um plano privado ou um público. O resultado é que quem tem dinheiro opta pelo privado e pouco dinheiro sobra para a previdência do Estado. Durante os anos 1990 e 2000, imediatamente após o fim da ditadura, o Chile cresceu economicamente sob a democracia, ampliou acesso a escolaridade, tirou quantidades imensas de pessoas da pobreza. Mas, nos últimos dez anos, o processo de avanço estancou, a economia se fragilizou, os planos privados não têm pago aposentadorias que deem tranquilidade aos mais velhos e a previdência pública está quebrada.

É dado como certo que a nova Constituição vai determinar que a aposentadoria é um direito fundamental de todos os humanos e que é obrigação do Estado garanti-la. Mais conservador, Kast critica o sistema atual mas defende a manutenção da opção pela solução privada e propõe que um imposto seja criado sobre o consumo para ajudar a financiar a previdência pública.

Outras mudanças que devem sair da Constituição é que o presidencialismo chileno possivelmente acabará. Pinochet ergueu um sistema para si, apelidado de ‘hiperpresidencialismo’, um no qual o presidente da República lá tem ainda mais poderes do que tem no Brasil. É o chefe do Executivo que define a prioridade das leis que o Congresso vai votar. Além disso, parlamentares não podem propor emendas ao Orçamento ou novos impostos. Só entra se for por iniciativa presidencial. A maioria da assembleia é favorável ao regime semipresidencialista. A nova Carta deve sair também com maior proteção ambiental, o que no Chile tem mais custo político do que no Brasil. Afinal, a principal fonte de riqueza é a mineração, principalmente de cobre. Esta ameaça, a de aumento da taxação das mineradoras, não assusta investidores internacionais. Continuam achando que o negócio será bom.

Inaugurada faz três meses, a assembleia constituinte se moderou. Nela, comunistas e el Frente Amplio já estão em lados opostos. Além do quê, se o país guinar para a direita, a Constituição deve se moderar mais. Até porque a previsão é de que o texto deve ser aprovado por referendo popular. Mas, não importa quem seja eleito, o governo será difícil. Ao escolher a esquerda dura como parceira, Boric talvez tenha construído uma coligação que o permitirá chegar ao governo. Mas terá, continuadamente, de negociar com os comunistas num país em que algo próximo da metade desejava um governo de direita. Para Kast, a dificuldade será maior. Afinal, mesmo que moderada, a Constituição vai sair progressista.

O racha é profundo.

O colonialismo que sobrevive no algoritmo

Em 4 de julho de 2021, uma notícia irrompe a tela do computador: "Líder indígena é eleita presidente da nova Assembleia Constituinte no Chile". Eu, do lado de cá da tela, sabia que o Chile estava prestes a redigir uma nova Constituição, mas não sabia nada além disso. A notícia me chamou a atenção por alguns motivos: uma mulher, indígena, presidindo uma Assembleia Constituinte que tem como objetivo superar a Constituição atual, concebida em 1980, à época da ditadura de Augusto Pinochet.

No feed do Twitter, a manchete veio acompanhada por um vídeo em que era possível ver Elisa Loncón discursando pela primeira vez após ter sido escolhida como presidente da Constituinte. Vestida com trajes e indumentárias mapuche, disse ela, abrindo sua fala (YouTube):

¡MARI MARI PU LAMNGEN!

¡MARI MARI KOM PU CHE!

¡MARI MARI CHILE MAPU!

¡MARI MARI PU CHE TA TUWÜLU TA PIKUN MAPU PÜLE!

¡MARI MARI PU CHE TA TUWÜLU TA PATAGONIA PÜLE!

¡MARI MARI PU CHE TA TUWÜLU TA DEWÜN PÜLE!

¡MARI MARI PU CHE TA TUWÜLU LAFKEN PÜLE!

¡MARI MARI KOM PU LAMNGEN!

Em mapudungun, idioma dos mapuche, Loncón saudou o povo do Chile, do Norte à Patagônia, das ilhas à costa, para depois recorrer ao espanhol. Intrigada pelo que estava assistindo, recorri ao Google para buscar mais informações sobre Elisa Loncón. Abri o site de buscas e digitei Loncon, sem aspas e sem o acento original do sobrenome.

No topo da página, a informação de que 538 milhões de resultados foram encontrados em menos de um segundo. Logo abaixo, a observaçãoExibindo resultados para Lincoln”. Esta busca, vale lembrar, foi feita minutos após Loncón discursar durante sua posse como presidente da Constituinte. Mas os algoritmos entenderam que eu buscava por Lincoln que, conforme os resultados mostram, é interpretado tanto como a marca estadunidense de automóveis de luxo como Abraham Lincoln, presidente e figura histórica dos Estados Unidos.

Os critérios do Google

Na primeira página de resultados não há sequer uma menção a Loncón. Segundo o próprio Google explica, os algoritmos de busca funcionam de acordo com uma série de critérios e parâmetros. Um deles diz respeito a erros de ortografia e digitação. De como que, caso o usuário cometa um deslize na hora da busca, a máquina é capaz de reconhecer o erro e apontar o resultado. Por exemplo, se o usuário buscar por Bolosnaro, o Google entende que a intenção era procurar por Bolsonaro e retorna resultados de acordo com isso. Logo, nesta lógica, uma busca por Loncón, ainda que sem acento, deveria retornar informações sobre a parlamentar chilena. Não foi o caso.

Sabemos que outros parâmetros também influenciam na busca, como o local e a relevância do assunto. Assim, pedi a uma amiga que mora na Espanha e outra que mora no Chile para fazerem a mesma busca. O resultado foi idêntico. Inclusive no Chile, onde, segundo os próprios critérios do Google, Loncón deveria figurar entre os primeiros resultados. Esta pesquisa corriqueira foi o suficiente para que fosse possível testemunhar a tal colonialidade algorítmica operando.

Loncón carrega em si identidades que são significativamente atravessadas pela colonialidade. Entende-se aqui a colonialidade a partir do pensador peruano Aníbal Quijano, segundo o qual o sistema-mundo é pautado pela estrutura histórica de poder colonial que age sobre diferentes aspectos da vida social, incluindo-se aí a autoridade, o gênero, a sexualidade, a economia, de modo a reproduzir hierarquias de raça, gênero e política. Englobam as dimensões do poder e do ser.

Desumanização do colonizado

Colonialidade pode ser vista, portanto, como aquilo que sobreviveu ao colonialismo. Pode-se interpretar também como não só aquilo que sobreviveu como aquilo que se inventou/reinventou a partir do colonialismo: os algoritmos entram nessa seara se entendidos como um produto, uma nova forma de controle sobre corpos nas colonialidades do poder modernas. O mundo digital recria relações que emulam a forma de poder colonial.

Ao permitir que os algoritmos operem numa lógica colonial, temos como resultado um processo de desumanização que torna o colonizado “menos que seres humanos”, como disse a socióloga argentina María Lugones, falecida no ano passado. O caso de Elisa Loncón explicita esse lado perverso da colonialidade algorítmica. Como vimos anteriormente, a parlamentar mapuche teria a seu favor elementos em consonância com os parâmetros algorítmicos que regem o que é mais relevante nas buscas dos Google, e ainda assim foi invisibilizada nos resultados da plataforma.

As teorias decoloniais oferecem os recursos e o repertório necessário para acessar e resolver tarefas que incluem criar novas formas de comunidade política e afetiva além de recompactuar o contrato social de modo a tornar o ambiente online mais justo, diverso e plural - tal qual o novo Chile desejado por Elisa Loncón.

A trilha de Moro para o Planalto

“Desde que me entendo por gente, ouço as pessoas falarem que o Brasil é um País injusto. Que precisamos fazer reformas, mexer nas leis para que o país melhore, para que as coisas comecem a funcionar, para que as pessoas tenham escolas decentes para seus filhos e hospitais que resolvam seus problemas. [...] Mas as reformas nunca chegam ou quando chegam são malfeitas. E o Brasil fica sendo esse País do futuro e nós nos perguntamos: quando vai chegar o futuro do País do futuro?”, questionou o ex-ministro Sergio Moro durante o discurso de seu ato de filiação ao Podemos na última quarta-feira, 10. Trata-se de uma pergunta retórica lançada aos ares do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, onde ocorreu o evento em Brasília. Para Moro, a resposta é clara: o futuro chegará em 2022, quando pretende ocupar a cadeira da Presidência da República.

De acordo com o último levantamento da pesquisa Genial/Quaest, Moro já acumula 8% das intenções de votos ao Planalto em 2022. Até o momento, a porcentagem o coloca em terceiro lugar na corrida eleitoral, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que atinge 48% das intenções de voto, e do atual líder do Executivo, Jair Bolsonaro (sem partido), que reúne 21%. Após o discurso de cerca de 50 minutos no qual expôs ideias para erradicar a pobreza, investir em educação e combater a corrupção, o nome que encarna a Lava-Jato impactou fortemente a composição do xadrez eleitoral.

Equilíbrio entre dois adversários

“O primeiro desafio de Moro enquanto candidato é conseguir equilibrar a atuação como antagonista de dois fatores, explorando o conflito alicerçado contra Lula quando ainda era juiz e enfatizando o embate contra Bolsonaro já na vida política”, afirma o cientista político Rafael Cortez, sócio da Tendências Consultoria. Além desse desafio, destaca a dificuldade que o ex-ministro terá para ampliar o capital político. “A maneira como Moro construiu seu capital político inicial, paradoxalmente, ocorreu por meio da contraposição ao processo político. Quase como em um voluntarismo em relação à agenda de combate à corrupção. Agora, ele precisará trabalhar para transportar seu capital político inicial, que é ‘antipolítico’, para um discurso político, capaz de mobilizar não apenas o povo, mas os partidos para um eventual apoio a sua candidatura.”

Apesar de Moro concentrar os votos da dita terceira via, também acumula uma grande rejeição. Ainda segundo a pesquisa Genial/Quaest, 61% conhecem e não votariam no ex-juiz. 19% conhecem e poderiam votar, 14% não o conhecem e 5% conhecem e votariam. O cientista político e coordenador do Mestrado Profissional em Gestão e Políticas Públicas da EAESP-FGV, Cláudio Couto, avalia que tamanha rejeição é uma grande pedra no sapato de Moro. “Ele é um candidato de direita, por isso sua campanha crescerá do lado direito do espectro. Inclusive, ganhando apoio de setores que inicialmente apoiaram a candidatura de Bolsonaro, como o setor empresarial, as forças de segurança e as classes média e alta. No entanto, os dados das pesquisas têm mostrado que há uma grande rejeição a Moro. Se você não é conhecido e tem uma alta rejeição sabe-se lá por que, é fácil reverter o quadro. Mas este não é o caso de Moro, muito conhecido e com a rejeição nas alturas. Não é algo impossível, mas é dificílimo reverter a situação”, pondera.

Lava-Jato é bônus e ônus

Questionado se a força de operação Lava-Jato seria capaz de sustentar a candidatura, Couto analisa que a atuação do ex-juiz pesa como bônus e ônus para a corrida ao Planalto. “Por um lado, o grande trunfo dele é a atuação na Lava-Jato, por mais que tenha sido parcial, afinal não há outra coisa que possa apresentar. Moro teve uma rápida atuação como ministro, na qual não colecionou grandes feitos. O protagonismo de Moro provém da Lava-Jato. Por outro lado, quando se revelou a parcialidade de sua atuação como juiz, muita gente deixou o lavajatismo. Além disso, também há a própria questão da entrada dele no governo, que o queimou.”

O professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) Rui Tavares Maluf concorda com Couto. “A imagem de um homem duro no combate à corrupção, construída há pouco tempo, é uma camisa-de-força. Permanecer preso a apenas uma bandeira, como a do combate a corrupção, é um tiro no pé”. No entanto, Maluf reitera que Moro “parece estar bem atento” e deve procurar um “leque de quadros” que o façam penetrar no campo econômico e em demais setores. “Observando do ponto de vista empresarial, de quem puxa a economia e gera emprego, economistas que fizeram o Plano Real estão conversando com Moro, como Pérsio Arida. Se essa turma sair da fase preliminar e aderir ao governo, será um aceno de confiança ao mercado, o ajudará a ter um discurso melhor”.

Lula seria o adversário mais provável

Os três especialistas concordam que são grandes as chances do ex-ministro se consolidar como o grande nome da terceira via. E não há discordância: o trio considera que é quase improvável um segundo turno entre Bolsonaro e Moro. “Só se acontecer algo muito inesperado, como Lula morrer”, exemplifica Couto. “Neste caso, Moro levaria uma vantagem considerável sobre Bolsonaro porque poderia, simplesmente, prometer ao eleitorado fazer mais do que o atual presidente - o que não é difícil, porque Bolsonaro não só não fez nada, como destruiu o que estava feito. Além disso, poderia mirar nas denúncias de corrupção que cercam o governo”, completou. Já num embate mais realístico, Maluf revela as estratégias de Moro e Lula na segunda etapa das eleições. “Seria quase uma reedição de 2018, com o petista enfrentando o juiz que o colocou na cadeia. Neste cenário, os vacilos de Lula ficariam mais expostos, assim como a falta de experiência pública, a ausência de plano de governo, e a atuação parcial de Moro na Lava-Jato. Essa final seria a mais interessante”.

Por fim, se quiser se consolidar como um nome possível para 2022, o ex-juiz terá que trabalhar muito, como encerra Cortez. “Se as eleições ocorressem hoje, seria pouco provável que Moro ganhasse. Não se tem condições para isso. Ele teria que ampliar as alianças e o apoio político-partidário e construir um projeto de governo que não fique restrito ao combate à corrupção. São tarefas que devem ser cumpridas a médio-longo prazo.”

Marília Mendonça, antimachista acima de tudo

Marília Mendonça (Spotify) começou em extremos, cantando na Igreja e em bares, e foi julgada por se apresentar na noite. Em entrevista a Tata Werneck, contou que a mãe foi traída pelo padrasto, o que também gerou comentários preconceituosos. Quando virou estrela, cantou sobre trair e ser traída, bebedeiras, sexo, dar a volta por cima, e empoderamento feminino. Claramente era uma mulher antimachista. Nascida em Cristianópolis (GO), a sertaneja começou o movimento do “feminejo” e teve uma rápida ascensão. Infelizmente o acidente aéreo, do dia 5 de novembro, interrompeu a vida e auge da carreira do fenômeno de 26 anos.

Cantora, compositora, instrumentista e com uma voz grave, potente e inconfundível, Marília Mendonça não marca apenas uma geração, mas um movimento de dar voz às mulheres que passam por relacionamentos abusivos e desigualdade de gênero. A própria Marília sofreu para emplacar suas canções e, antes de estourar no cenário musical, oferecia as letras para cantores homens, pois não havia espaço no mercado. Ela pavimentou o próprio caminho, que abriria portas para um novo nicho de mulheres na cena musical. Quase ao mesmo tempo surgiriam Simone e Simaria, Maiara e Maraísa, Naiara Azevedo e inúmeras mulheres, em dupla ou solo, que construíram um novo genero: o feminejo.

O feminejo vem com um movimento antimachista, mas não propriamente feminista. A intercambialidade de culturas entre “a roça” e a “metrópole” foi bem difundida com o sertanejo universitário desde duplas masculinas como Zé Neto e Cristiano, Luan Santana e Michel Teló. Até mesmo na moda de viola, aquele sertanejo de bota e fivela que foi amplamente divulgado com os famosos “rodeios” Brasil afora e se fortaleceu com Chitãozinho e Xororó, Zezé di Camargo e Luciano, Leandro e Leonardo, nos anos 1980 e 90.

Antimachista ou feminista

“Muitas vezes a mulher ‘não se encaixa no feminismo’ por causa de algum preconceito com militantes ou estereótipos. Eu mesma só passei a estudar feminismo depois de conhecer um pouco mais e entender que é uma luta por direitos. A visão que eu tinha antes – e é a que a maioria das pessoas ainda tem – é de ativistas que querem destruir o machismo interferindo na liberdade sexual, em questões estéticas (como depilação) e presumindo que homem é sempre um agressor (mesmo que seja um menino de cinco anos”, explica Cynthia Semíramis, Doutora em Direito (UFMG), professora e pesquisadora dos direitos da mulher em perspectiva jurídica não-ativista.

O sertanejo de Marília Mendonça vem carregado com instrumentos que já conhecemos do gênero “modão” como sanfona e viola, porém traz batidas de bateria bem marcadas que dão fôlego diferenciado para a ‘sofrência’, não deixando com que o ritmo seja comparado às músicas de “fossa” tradicionais de cantoras que também marcaram época cantando suas mágoas e tristezas como Maysa Monjardim Matarazzo, Dolores Duran e puxando para um internacional atual, Lana Del Rey e Olivia Rodrigo. Marília nos ensinou que possível chorar e sofrer pela dor de ser corno e ainda continuar dançando. É inegável que a música fica ainda melhor se acompanhada de uma cervejinha e um boteco com os amigos, mas até na pandemia Marília operou milagres na saúde mental dos brasileiros!

“Parte do sertanejo atual é no estilo Bachata – dança originada da República Dominicana na década de 1960 –, que é mais alegre. Um exemplo clássico de Bachata é Borbulhas de Amor do cantor e compositor Fagner. A gente separa tudo em compartimento, mas música é um grande compartilhamento de estilos e ideias”, diz a Cynthia.

A especialista lembra que a identificação profissional como feminista pode ser uma faca de dois gumes: “Uma pessoa famosa que se identifica como feminista atrai mais atenção e pode gerar bons resultados imediatos para as lutas das mulheres. Mas essa identificação pode restringir a fama, limitando a pessoa a um nicho temático-político. Isso é prejudicial tanto para a carreira (rotula, limita e não amplia o público) quanto para o feminismo (não expande as questões feministas para novos públicos). Por isso que considero que a mensagem é mais importante que o rótulo feminismo, antimachismo ou qualquer outro que apareça.”

Fenômeno comercial

O gênero que Marília Mendonça popularizou fez tanto sucesso, que a cantora teve a live mais vista da história do Youtube, em 2020, no começo da pandemia do coronavírus. Já em 2021, a Rainha da sofrência bateu outros recordes como o de cantora nacional mais ouvida do Youtube, Deezer e Spotify. Além de ter passado o número de seguidores de bandas internacionais como The Beatles e AC/DC e até mesmo Michel Jackson e Sia, no Spotify.

Em outubro, Marília se juntou à dupla Maiara e Maraísa para formar o trio As Patroas, que rendeu um álbum de inéditas, 35% (Spotify), com nove músicas, sendo Esqueça-Me Se For Capaz um hit instantâneo e com um clipe, no mínimo, premonitório. As Patroas se vestiram de pilotas de avião para cantar “esquece, aí, cê não é o bichão? Nunca esquecerão.”

No mesmo dia em que o bimotor que transportava Marília Mendonça, seu tio Abicieli Silveira Dias Filho, o produtor Henrique Ribeiro, o piloto Geraldo Martins de Medeiros Júnior e o copiloto Tarciso Pessoa Viana, caiu, a cantora lançou seu último trabalho, o videoclipe de Fã Clube, com as amigas feminejas.

Marília Mendonça mostrou que o seguimento “sertanejo” transformou os períodos de Rodeios em mais do que “temporadas de Rodeios”. O sertanejo avançou as porteiras de Barretos, Jaguariúna e Itapecerica da Serra e conquistou outros públicos, deu voz às mulheres, todas elas. Marília tem protagonismo à parte e deixa um legado na distribuição do que é hoje a música mais popular brasileira.

Músicas, vídeos e um toque de política nos mais clicados dessa semana:

1. Instagram: Homenagem do ilustrador JHO mostra Marília Mendonça sendo recebida por Paulo Gustavo no céu.

2. Youtube: Porta dos Fundos tenta enquadrar Caetano no TikTok.

3. Poder360: Como votou cada deputado na PEC dos Precatórios.

4. Youtube: Encontrada uma gravação do produtor indiano Suresh Joshi com participação de George Harrison e Ringo Starr.

5. Youtube: Ponto de Partida – STF pode salvar o Brasil de Lira.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk
Edição de Sábado: Eu, tu, eles
Edição de Sábado: Condenados a repetir
Edição de Sábado: Nísia na mira
Edição de Sábado: A mão forte de Lula

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)