Edição de Sábado: O que é uma democracia?

Esta semana, na quinta e sexta-feira, o presidente americano Joe Biden reuniu virtualmente 111 países na Cúpula pela Democracia. A lista dos escolhidos diz muito — o Brasil estava nela. A dos excluídos diz mais — China e Rússia, que não são mesmo democracias, não foram convidados. Num evento assim tão curto, Biden certamente não pretendia fazer um debate profundo sobre a extensa crise democrática em curso. A intenção da Casa Branca era outra: demarcar território e dividir o mundo em dois como no tempo da Guerra Fria. Mas a competição entre EUA e China não é como a entre EUA e União Soviética. Lá a disputa era principalmente militar e se dava num contexto de duas potências buscando domínio global por influência ideológica. Hoje a briga é comercial e chineses competem com os EUA em avanço tecnológico como os soviéticos nunca conseguiram. O poderio militar, nessa disputa, tem relevância mas não muita. Em seu discurso de abertura, Biden descreveu a briga como uma em que democracias seriam mais capazes de gerar crescimento econômico do que autocracias.

Talvez até seja verdade, mais ainda não temos como afirmar. E este é um critério que diminui democracias. Não é este desafio que democracias impõem, não é para isso que democracias nasceram, tampouco é por esta razão que tantos lutaram para viver nelas. Se houver crescimento econômico, tanto melhor. Mas a pergunta por trás da busca de democracias já faz quase três séculos é outra: um povo pode viver bem e em liberdade, cuidando ele próprio do governo de sua nação?

Não precisa ser mais rico do que os outros. O importante é viver bem e em liberdade.

Biden, claro, enquadra a questão desta forma por razões políticas. Após décadas de expansão democrática, vivemos um período de recessão do regime, com populistas autoritários sendo eleitos, a qualidade de vida caindo por toda parte, e pessoas com cada vez mais dúvidas sobre o que são democracias. Sobre se elas valem a pena. Neste contexto, a China apresenta ao mundo um sistema ditatorial capaz de crescer economicamente, desenvolver tecnologia e distribuir renda. É por isso que o presidente americano quer fazer a disputa nestes termos.

Mas é um argumento perigoso por fugir à natureza das democracias. Por ignorar que não foi por uma economia que tantos deram a vida para erguer um regime baseado em liberdade e autogestão. Fez-se isso, inclusive no Brasil, porque viver em liberdade é melhor. Porque ter voz na sociedade é melhor.

Então — o que faz uma democracia? Esta é a pergunta que o pai da ciência política americana passou três quartos da vida tentando responder.

O viking

Alguns de seus alunos chamavam Roberto Dahl de ‘o viking’. Era um homem alto e imponente, de cabelo castanho, cujo avô Ivar se mudou da Noruega para os Estados Unidos no ano em que Abraham Lincoln foi assassinado — 1865. Era viking porque era nórdico todo. Os amigos o chamavam de Bob. Viveu quase cem anos. Nasceu em 1915 numa cidadezinha de Iowa, e morreu em 2014 bem próximo do campus de Yale, a universidade em que passou boa parte da vida.

Bob escreveu até o fim, deu entrevistas, pensou. “Quando comecei a pós-graduação”, ele se lembraria um dia, “havia talvez uma meia dúzia de países que pudéssemos estudar.” Uma meia dúzia de democracias em todo o planeta. “Havia a França, o Reino Unido, talvez o Canadá.” É por isso que Dahl é conhecido — como um dos pais do estudo moderno do regime democrático. Como uma das primeiras pessoas a tentar entender como democracias funcionam de fato, não apenas em seu ideal. O que havia de mais denso para se refletir a respeito de democracias até ali, até os anos 1930 e 40, era em geral filosofia, muita citação de Atenas nos tempos de Péricles, ou então textos de pensadores liberais como Alexis de Tocqueville. Havia mais um listar de valores e aspirações do que a descrição rigorosa de como o bicho realmente funciona, de como as forças se equilibram ou as instituições se organizam. Foi a este trabalho que Dahl dedicou sua vida. E, sem compreender esta vida, é impossível perceber o que guiou seu olhar.

Dahl nasceu numa família de classe média baixa porém muito educada para os padrões do tempo, numa cidadezinha que ainda hoje não chega a mil habitantes. Seu pai era o clínico local. Durante a Depressão, quando o dinheiro esgotou e não havia mais por ali quem pudesse pagar por consultas, Peter Dahl conseguiu emprego de médico funcional da companhia ferroviária no interior do distante Alaska — e carregou a família para aquele mundo de neve constante. Foi lá que Bob terminou o ensino fundamental e encarou o secundário. Lá também começou a trabalhar, adolescente, como estivador, carregando e descarregando vagões. Se sindicalizou, virou líder sindical, quando jovem se tornou um socialista não-revolucionário. Aí juntou seus papéis e foi buscar uma graduação na Universidade de Washington. Aos 25, no ano de 1940, já havia completado o doutorado em Yale.

A Europa estava em guerra, mas não os EUA. Não ainda. Dahl se mudou para a capital e trabalhou no governo. Primeiro no Conselho de Relações Trabalhistas, depois no Ministério da Agricultura, então após o ataque japonês à base americana de Pearl Harbor, no Conselho de Produção para a Guerra. Poderia ter ficado na burocracia, mas achou que não devia. Se alistou e foi para a Itália encarar a frente de batalha como oficial. Ganhou medalha por bravura em combate. Permaneceu na Europa após o conflito, numa unidade do Exército à qual foi atribuída a difícil missão de denazificar a Alemanha. Afinal, ele já tinha um PhD em política. Quando voltou para Yale, em finais dos anos 1940, havia pouco passado dos trinta e já tinha vivido uma vida inteira.

Experimentou o trabalho de gente pobre, se envolveu na luta por direitos quando se está por baixo, daí foi experimentar ser acadêmico, conheceu por dentro o governo, viveu na pele a luta física por liberdade e então mergulhou no interior do pior regime fascista para compreender como desmontá-lo. Os outros quase setenta anos que teve pela frente, passou-os tentando decifrar democracias. “Ganhei cedo um respeito profundo por gente comum”, disse já passado dos noventa, quando entrevistado por uma amiga da ciência política. “São pessoas que têm um grau de bom senso que nem sempre dá para perceber entre nossos colegas.” (Assista.)

A democracia de Dahl

Dahl era cientista social, não filósofo. Então seu estudo ao longo das décadas seguintes foi dedicado a pesquisar em campo. Primeiro fazia perguntas que se dedicaria a responder. Por exemplo:

Num sistema político onde quase todo adulto vota mas em que conhecimento, riqueza, posição social e acesso a autoridades não são bem distribuídos, quem de fato governa?

Com perguntas precisas em mão, não construía teses, ia isto sim ao mundo ver e ouvir. Como é aprovado um projeto de lei? Que pressões sofre um prefeito? Quem se mobiliza para pressionar governantes? Começou pelo estudo do governo municipal de New Haven, a cidade em Connecticut onde fica Yale, então foi para o governo americano, e a partir daí passou a incentivar o estudo de outras democracias pelo planeta. Para compará-las. Assim, logo sentiu que era melhor distinguir dois conceitos.

Democracias de fato, o governo do povo, pelo povo, para o povo, não têm como existir. Regimes podem se aproximar de democracias, mas nunca chegam lá. No mundo real o que há são poliarquias — o governo de muitos. Podemos chama-las de democracias, mas não são e nem têm como ser. Democracia é a meta que poliarquias buscam eternamente. Há duas razões para isto.

Uma é que a maioria não vai dedicar tempo o suficiente para acompanhar política e compreender os problemas com o grau necessário de profundidade para resolvê-los. “Há uma distância entre o que as pessoas precisam saber para defender seus próprios interesses e o que de fato sabem”, afirmou. “Este papel acaba sendo cumprido por aqueles que acham que sabem tudo.”

Há também a dimensão prática — em países grandes, é preciso construir um sistema de representação popular. Os representantes governam, não o povo. Este, para ele, é o dilema inescapável do regime. Aquilo que o afasta constantemente de seu ideal. Quanto menor uma nação democrática, maiores as possibilidades de os cidadãos participarem diretamente das decisões de governo. Quanto maior for, porém, haverá a necessidade de delegar estas decisões para representantes eleitos.

Em seu estudo de campo, Dahl também chegou cedo a uma conclusão que ainda hoje é polêmica na ciência política. Primeiro num artigo de 1958, depois em Who Governs?, Quem Governa?, seu livro de 1962, defendeu uma ideia que ia contra um conceito que sequer era questionado até então. Ele argumentou que, no mundo real, democracias eram pluralistas. A defesa, nos estudos até ali, era de que no fundo uma elite sempre tomava as principais decisões num governo. Hoje, a disputa marca duas correntes de pensamento — pluralistas e elitistas.

Para Dahl, o poder de pressão sobre governos, sobre legisladores, certamente é desigual. Obviamente varia de acordo com o momento e com o lugar. Mas as pressões sobre quem toma decisões, em regimes democráticos, são sempre muitas e nem sempre quem tem mais poder aparente ganha neste conflito. Daí o pluralismo.

Era assim, observando como o jogo do governo funciona em lugares diferentes, que Bob Dahl foi construindo um modelo para explicar o que são democracias — ou poliarquias — e como funcionam. No mundo real, em países com muitos milhões de habitantes, governos são muito complexos. O objetivo da ciência política é construir um modelo que simplifique esta complexidade, para facilitar a observação e a compreensão. Daí a criação de conceitos. Ao fim, ele foi capaz de desenhar a estrutura geral do que é um regime democrático. Cada democracia tem suas características, suas contradições, suas dificuldades. Variam pela cultura e história daquela sociedade, dos recursos naturais disponíveis naquele local, pelo avanço econômico, científico, tecnológico. Mas, no geral, todas da segunda metade do século 20 para cá têm certos traços em comum.

1. Toda democracia têm eleições livres e justas, que ocorrem em intervalos razoavelmente curtos, na qual os grupos de oposição têm toda a possibilidade de chegar ao poder. Se não todos, quase todos os adultos têm direito a votar e a concorrer nos pleitos.

2. Há, nestes regimes, liberdade de expressão, principalmente de expressão política, de forma que quaisquer temas que apareçam perante a sociedade possam ser debatidos. De forma que quem está no comando do governo, decisões do governo e políticas públicas possam ser livremente criticados.

3. Há, também, fontes alternativas de informação à disposição de todos os cidadãos. Não pode haver monopólio nem público, nem privado, da imprensa.

4. Todos têm o direito de se associar livremente, na forma de partidos ou quaisquer outros tipos de organização, para defender seus interesses e tentar influenciar o governo em suas decisões.

Cada uma destas características pode ser quantificada de alguma forma e é isto que permite definir quão democrático é um país. Pela definição de Bob Dahl, a Nicarágua não é mais uma democracia — grupos políticos inteiros foram impedidos de participar das últimas eleições. A Venezuela, com o governo em ataque constante a grupos de imprensa e dificuldades crescentes à livre associação, está no limiar de deixar de ser. É este também o caso da Rússia, da Hungria, da Polônia, da Turquia.

Já o Brasil é uma democracia. Todas as condições seguem de pé. Mas isto pode mudar a ponto de nos juntarmos aos países limítrofes.

Em vida, o decano da ciência política americana não apenas estudou como também atuou como democrata em seu microcosmo. Por décadas foi convocado por inúmeros reitores de Yale para ajudar a resolver conflitos. Intermediou a negociação entre o comando da universidade e os estudantes, durante a Guerra do Vietnã, para que o Exército pudesse colocar no campus um posto de recrutamento. Era uma obrigação legal mas os estudantes tinham preocupações legítimas. Também defendeu, e conseguiu, que Yale estabelecesse uma regra garantindo que haveria número igual de homens e mulheres entre os estudantes. Muito preocupado em abrir oportunidades para quem tem menos acesso a influenciar nas decisões da sociedade, ajudou a criar o primeiro centro de estudos de cultura afro-americana no país.

Bob Dahl revolucionou a maneira como compreendemos democracias. Suas lições valem mais do que nunca.

Pois é... Certas coisas não são acidente. Lewis Dahl, o irmão apenas um ano mais velho de Bob, foi o médico que descobriu a relação entre sal e hipertensão. Foi, no século 20, um dos cientistas mais respeitados da área e criou, por cruzamentos, uma espécie de ratos de laboratório ainda hoje usados para estudos de hipertensão arterial em humanos. São chamados Ratos de Dahl.

Orçamento já não é entrave à criação

Há não tanto tempo assim, produzir um show, reality, documentário ou programa de rádio requeria um orçamento muitas vezes bem generoso. Uma série da Netflix, por exemplo, pode ainda chegar a custar milhões de dólares. Mas a tecnologia avançou, e pessoas sem grandes empresas ou montanhas de dinheiro podem criar, com um mínimo de equipamento, material que deixaria qualquer produtora de cinema, TV e entretenimento de queixo caído.

Um dos primeiros passos para isso foi o surgimento do YouTube. As produções feitas nos primeiros anos da plataforma permitiram o nascimento e crescimento de diversos artistas, músicos, editores e criadores de conteúdo em geral.

Recentemente o youtuber MrBeast recriou em seu galpão os jogos da série da Netflix Round 6, nos quais o vencedor ganharia $500 mil dólares – e os demais participantes não morreriam, claro. Houve um grande investimento, é verdade, seja em produção ou em efeitos especiais, porém, anos atrás dificilmente teria sido feito por alguém que não um estúdio e nem teria espaço para exibição. Se o exemplo do MrBeast foi um pouco acima dos orçamentos modestos de que estamos falando, que tal o fotógrafo Peter McKinnon, que fez um documentário há três anos sobre uma foto que ele queria muito fazer? Ou então o casal Becki e Chris, que fez uma série própria de viagens com o seu helicóptero?

Aqui no Brasil, Lito, do canal Aviões e Músicas, além de contar diversos casos de aviação, produziu uma série onde mostra como se tornou um piloto. Os Castros Brothers, em 2012, começaram uma série de animações que virou o jogo A Lenda do Herói, um dos maiores projetos no Catarse. O jogo Celeste, desenvolvido pelos canadenses Maddy Thorson e Noel Berry em parceria com o estúdio brasileiro MiniBoss, teve seu protótipo criado em uma game jam, um encontro de desenvolvedores de jogos, e posteriormente lançado, ganhando o prêmio de melhor jogo independente da The Game Awards 2018.

Músicos que criam seus clipes e lançam álbum em streaming, sem depender de uma gravadora; comediantes que produzem seus especiais de comédia, sem depender da TV para isso; escritores que podem lançar seus e-books ou até mesmo livros físicos, atraindo a atenção das editoras.

A internet e a tecnologia foram os facilitadores para que anônimos e criadores de conteúdo tenham seu espaço. Criar o que você quiser, tendo a liberdade de fazer da forma preferir, superando as próprias limitações, é possível agora. O que, além de você mesmo, te impede de criar?

O metaverso e o fator Meta

O metaverso explodiu nos últimos meses. No entanto, a possibilidade de acessar uma realidade paralela na qual uma pessoa pode ter uma experiência de imersão não é nova. O termo foi criado há 20 anos pelo escritor Neal Stephenson no seu livro de ficção científica Snow Crash. Já o Second Life, videogame popular nos anos 2000, serve de ilustração do que é o metaverso. O conceito voltou a ficar em alta desde que Mark Zuckerberg, fundador do Facebook, mudou o nome da empresa que controla a rede social para Meta e anunciou novos esforços para construir um metaverso. Entretanto, esse mundo virtual gera uma série de dúvidas, não apenas sobre um conceito ainda desconhecido pelo público em geral, mas também por ser a aposta de uma big tech que enfrenta uma das piores crises de sua história.

O caso Facebook Papers expôs uma série de denúncias contra a rede social. As principais empresas da Meta, Facebook e Instagram, tornaram-se o centro de uma crise desencadeada em setembro deste ano, após um enorme vazamento de documentos internos entregues às autoridades dos Estados Unidos pela delatora Frances Haugen, ex-gerente de produtos do Facebook. Em reportagens divulgadas por um consórcio de jornais, incluindo o americano The Wall Street Journal, a companhia é acusada de ter conhecimento de que alguns de seus produtos poderiam ser nocivos aos usuários. No entanto, a atual Meta teria escolhido priorizar o crescimento sobre a segurança.

Mas enquanto seus executivos enfrentam os tribunais, o Facebook resolveu mudar sua marca e decidiu investir pesado na nova tecnologia, anunciando US$ 10 bilhões ainda em 2021 para colocar a ideia em prática. A companhia já é dona da Oculus, voltada para a criação de produtos para experiências imersivas, como o óculos de Realidade Aumentada (RA). Pelo menos outros cinco dispositivos estão sendo desenvolvidos pela big tech, entre eles os aparelhos que pretendem ser imperceptíveis na vida cotidiana e se assemelham a óculos comuns, mas com sensores para captar vídeo, áudio, localização e rastreamento ocular do usuário. Existem também pulseiras que detectam os movimentos das mãos, captando sinais elétricos gerados pelos movimentos do pulso e dos dedos para traduzi-los em comandos.

O envolvimento e o comprometimento da Meta com o metaverso impressionam e levantam uma série de alertas. Se para a companhia e outras big techs o metaverso é o “futuro da internet”, quais serão os riscos se uma empresa como a Meta, que está na mira de reguladores americanos e enfrenta denúncias contra a sua política de segurança e privacidade, estiver no controle desse “futuro”? Frances Haugen afirmou estar preocupada com o metaverso, em depoimento ao Parlamento Europeu em novembro. Ela questionou o plano da companhia de contratar milhares de funcionários para desenvolver sua ideia de metaverso e voltou a dizer que a empresa prioriza o crescimento em vez de garantir que seus produtos sejam seguros.

Mas, para Haugen, um dos principais problemas com o universo virtual projetado pela Meta é a necessidade de haver mais sensores em casas e escritórios, o que faria a empresa ter ainda mais informações de seus usuários. “O Facebook demonstrou que mente a qualquer hora que seja útil. A ideia de que devemos preencher nossas casas e escritórios com muito mais sensores de uma empresa que não é transparente... acho que é uma má ideia”, continuou. Para executivos de outras empresas que já atuam ou criaram metaversos, Mark Zuckerberg está tentando capitalizar em cima de um conceito que não criou. Muitos se preocupam com as atitudes controladoras que a plataforma pode tomar. Ao anunciar a criação de mais de 10 mil empregos só na União Europeia para a criação do metaverso, Nick Clegg, vice-presidente de assuntos globais do Facebook, disse que "nenhuma empresa será proprietária e operará o metaverso”. Resta saber até quando.

A suíte Cosby: o caso de assédio na Blizzard

Nós sabemos que o ambiente gamer é tóxico e amplamente sexista, mas isso tem um fim? Em agosto de 2014, um pouco antes do termo ‘cancel culture’ (cultura do cancelamento) se popularizar no Twitter, a hashtag #GamerGate ganhou visibilidade. O ‘movimento’ atacava mulheres na indústria do videogame, mais especificamente duas desenvolvedoras e uma crítica feminista; Zoe Quinn, Brianna Wu e Anita Sarkeesian.

Os ataques eram em essência sexistas, e os participantes ameaçavam as mulheres da indústria de estupro, morte e vazamento de informações íntimas. Um dos motivos do cancelamento ter começado foi um jogo independente de Zoe Quinn que fez muito sucesso na mídia. Com isso, um de seus ex-namorados fez um post com falsas acusações sobre Quinn ter tido relacionamentos com jornalistas para sua criação ser bem-recebida.

Foi uma campanha de assédio em massa que atacou diversas mulheres. A resposta da indústria na época? Notas de repúdio, reportagens extensas falando sobre a “toxicidade da comunidade do videogame” e alguns discursos de produtoras declarando apoio a quem sofreu algum ataque. Em resumo, nada que promovesse alguma mudança. Um dos discursos aconteceu na BlizzCon, conferência da própria Activision Blizzard para divulgar seus jogos. O então presidente e cofundador da empresa, Mike Morhaime, falou emblematicamente sobre como aquele evento era positivo e respeitoso e que um “grupo pequeno de pessoas estava fazendo coisas horrorosas e destruindo a nossa reputação como gamers”. Mas essa reputação algum dia foi boa?

Esse ano, a Activision Blizzard confirmou que não somente os jogadores são sexistas, como também a sua cultura empresarial é. Em julho, centenas de trabalhadores da empresa se juntaram num ‘walkout’ - um tipo de greve. O motivo foi a falta de resposta da companhia para as diversas alegações de abusos sexuais. O Estado da Califórnia processou a Activision Blizzard após uma investigação do Department of Fair Employment and Housing (Departamento de Justiça no Trabalho e Habitação). Uma das consequências do processo foi um acordo com a Equal Employment Opportunity Commission (Comissão de Oportunidades Iguais de Empregabilidade). A Blizzard concordou em estabelecer um fundo de US$18 milhões para compensar as vítimas de assédio sexual e discriminação de gênero no estúdio.

Uma das vozes desse movimento é de Christine, que, ao lado de sua advogada Lisa Bloom, está denunciando o comportamento e a cultura sexista da empresa. Bloom também foi a advogada de defesa das vítimas do caso do Jeffrey Epstein – bilionário americano condenado por estupro e até tráfico de crianças.

Mas a companhia precisa mudar por dentro. Apenas 20% de sua equipe é composta por mulheres. Todos os cargos de liderança são de homens brancos, mulheres são mais demitidas e menos promovidas. Entre a cultura sexista, mulheres comentaram no processo a existência de “cube crawls” - onde homens entravam nos escritórios das mulheres para agarrá-las em suas mesas. Além disso, no processo, mencionaram a “Cosby Suite” - um quarto de hotel onde trabalhadores homens se juntavam para assediar as mulheres em eventos empresariais. Fotos mostram vários desenvolvedores deitados numa cama de hotel com a foto do ator e comediante BIll Cosby, acusado de estupro por aproximadamente 60 mulheres. A resposta do CEO, Bobby Kotick, ao processo foi apenas que iria ‘escutar melhor as mulheres da empresa’. Após a revelação do processo pelo Wall Street Journal, centenas de mulheres começaram a denunciar outros comportamentos machistas dentro da empresa com fotos, histórias e prints de conversas. Inclusive, foi relatado que o leite materno de mulheres em puerpério que retornavam ao trabalho era roubado pelos colegas.

Dessa vez, os trabalhadores cansaram. O processo veio aparentemente ‘do nada’, depois de anos de investigação. Após o GamerGate e a aparência de que o clima não mudaria, os trabalhadores da Activision Blizzard se uniram e estão em greve desde a última segunda-feira. A empresa, porém, não pagará salários de quem permanecer em greve após esta quarta-feira. Por isso, os trabalhadores realizaram uma vaquinha online - com meta de US$1 milhão. O objetivo da greve é sindicalizar os trabalhadores. Jessica Gonzalez, organizadora da greve e da vaquinha, disse ao Washington Post que os trabalhadores merecem mais e que Bobby Kotick segue os ignorando. Ela já se demitiu, e seu último dia no estúdio foi sexta-feira.

O timing da greve foi para coincidir com o maior evento de tapete vermelho da indústria, The Game Awards. Criado em 2014 pelo jornalista canadense Geoff Keighley, o evento não só premia os melhores jogos e criadores do ano, como também mostra trailers e gameplays inéditos de próximos lançamentos. Na abertura edição deste ano, no dia 8 de dezembro, Keighley fez um discurso condenando o abuso da indústria, de forma vaga. O que não foi vago foram seus tweets e o fato de que removeu toda a participação da Activision Blizzard do seu evento.

O banimento da empresa do evento não apaga o fato de que ela ainda é um membro da Fortune 500 e incrivelmente bem-sucedida, com títulos como Diablo, World of Warcraft, Overwatch e Call of Duty. Mas agora, finalmente, pessoas decidiram dar um passo à frente para que o sexismo no mundo gamer seja punido.

E como todo fim de ano, as listas de retrospectiva se fazem presentes nos mais clicados da semana...

1. BBC: 5 hábitos de conversa que podem melhorar suas relações.

2. g1: Conheça os emojis mais usados em 2021.

3. Youtube: O segundo trailer de Matrix Ressurrections.

4. Estadão: As senhas mais usadas no ano.

5. Quaest: A íntegra da pesquisa Genial+Quaest sobre as eleições do ano que vem.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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