Edição de Sábado: Em busca de Maria

A cena é universalmente conhecida. Nela há uma estrela que guia, a manjedoura de palha num estábulo em Belém, também o burrico, o boi, no centro o bebê que foi Jesus, ao redor seu pai José e a mãe — Maria. Quem primeiro apresentou assim esta cena, inspirada nos Evangelhos de Mateus e Lucas, foi são Francisco de Assis, no ano de 1223. É a cena do natalício de Cristo, em 25 de dezembro, que hoje completa 2021 anos. É o Natal. No centro deste presépio está o menino que os cristãos consideram filho de Deus, alguns deles o próprio Deus. Mas não é apenas ele, hoje, cuja história tentaremos recontar. É principalmente a da moça, a quase menina a seu lado, de 14, talvez 15 anos, Maria. Não é uma história trivial porque o que temos de fato para além dos textos religiosos é muito pouco, é quase nada. Não há, aliás, rigorosamente nenhum registro histórico de que esta cena tenha ocorrido. As dificuldades são maiores, até. Todas as referências dadas pelos dois evangelistas se desmontam perante o registro histórico.

O imperador Augusto não convocou um censo no tempo em que Herodes, o Grande, governava a Judéia. Censos, quando eram convocados, não exigiam que ninguém de deslocasse de sua casa para a cidade em que havia nascido — seria inviável em termos práticos. Portanto, aquilo que conta Lucas, de que no tempo de Augusto houve um censo, que José e Maria tiveram que deixar Nazaré rumo a Belém, cidade de suas famílias, não pode ter ocorrido. Os romanos eram diligentes em sua burocracia. Realizavam censos e conhecemos suas datas. Não bastasse, Herodes morreu quatro anos antes da data tradicional para o nascimento de Cristo.

Os historiadores que se dedicam ao assunto não debatem que Jesus tenha existido. Não há documento a respeito dele em vida, ou mesmo sobre sua condenação à morte. Mas há muito sobre a Primeira Igreja. Nos anos imediatamente após a crucificação, os apóstolos se mantiveram reunidos. Estão lá, em Jerusalém por exemplo, São Pedro e São Tiago, irmão de Jesus, outro filho de Maria. Gente de todo o mundo romano escreve para eles e recebe respostas. São Paulo entra em debates. Mesmo entre os críticos daquela primeira Igreja de Jesus, quando ainda era um grupo judeu que seguia os ensinamentos de um rabino e não o início de uma nova religião, não há uma única pessoa que questione a existência do homem. Se tantos que o conheceram ou viveram em seu tempo tratam de sua vida e de suas ideias, é porque ele existiu.

O que os historiadores fazem é partir do princípio de que temos uma narrativa bastante sólida a respeito de sua última semana. É Páscoa, época em que Jerusalém enchia e os romanos ficavam particularmente tensos. Formavam um povo fervoroso em sua religiosidade, os judeus, e as seitas eram muitas e diversas. Na Páscoa, as emoções na capital ficavam à flor da pele e os soldados romanos tinham ordens de ficar de olho para evitar que pregadores mais carismáticos pudessem levantar uma revolta. Jesus de Nazaré, como era conhecido, chega, se irrita com os cambistas na porta do templo. Provoca uma dessas situações de alta tensão. Os soldados vão atrás dele, o encontram durante o seder, a ceia pascal. O prendem e ele é condenado à morte quase imediata. Anualmente situações do tipo ocorriam. A diferença é que, diferentemente de outros tantos pregadores, Jesus teve impacto. Seus seguidores mantiveram-se leais, dedicados a espalhar sua mensagem, nos anos após sua ausência.

Nunca mais parou. A mensagem era tão forte que rapidamente começou a conquistar comunidades de cultura grega nas proximidades. De lá, para Roma.

A partir desta narrativa essencial, o trabalho da historiografia vira reconstruir o que o rabino realmente disse, qual era realmente sua mensagem. Os textos mais antigos que ficaram são as cartas de Paulo. Os evangelhos são bastante posteriores, todos costuras de tradições orais e textos que se perderam. E, principalmente, todos foram escritos com o objetivo de atender às aflições de determinadas comunidades do cristianismo inicial.

O mais antigo, de Marcos, é datado de por volta do ano 70, logo após a destruição do Templo em Jerusalém. Foi redigido, muito provavelmente, por uma comunidade cristã na região da Palestina ou Síria que já não tinha origem judia, falava grego. Mateus e Lucas são dos anos 80 ou 90, o primeiro da Turquia e, o segundo, da Palestina. Os três livros têm pelo menos uma fonte comum perdida, habitualmente chamada de Q. O último evangelho, de João, é do início do segundo século. Pela sua distância no tempo, pela sua natureza mais soturna e mágica, é aquele com menor valor como narrativa histórica.

Os quatro livros foram escritos em grego para pessoas de cultura greco-romana, mas todos tratam de um rabino, um mestre judeu que falava aramaico e hebraico, e cujos ensinamentos se baseiam na Torá, no Velho Testamento. Nenhum dos quatro livros pretendiam ser narrativas históricas. Eram, antes disso, alegóricos, mais preocupados em passar certos valores, consolar aflições. É aí que o emaranhado complica a vida de quem busca fatos e não fé. A pregação do Jesus adulto e sua última semana de vida são conhecidas — sua história de vida, não. Então ela foi preenchida para confirmar certos preceitos.

Maria

Há uma única informação que o Novo Testamento traz a respeito de Maria, mãe de Jesus, para a qual temos condição de dar peso histórico. É que a mãe do rabino Jesus se chamava Maria. Ou melhor. O rabi Yeshua ben Yosef era filho de Myriam. O outro filho de Maria, Tiago, fazia parte da igreja original, ninguém jamais questiona seu nome — não há por que fazê-lo.

Nós o chamamos Jesus Cristo — Khristós, o ‘ungido’ em grego. Uma tentativa de traduzir Maxyah. Em algum ponto pouco preciso, durante aquele primeiro século, uma comunidade judia começou a tratar o rabi Yeshua como maxyah. Talvez isto não tenho ocorrido durante sua vida, tenha sido posterior.

Mas considera-lo o homem enviado por Deus à Terra como seu representante trazia questões importantes, porque nos livros do Velho Testamento há profecias sobre o este ungido. Uma é de Isaías, em 7:1-17. “O Senhor lhes dará um sinal: a virgem que está grávida dará à luz um filho e porá nele o nome de Emanuel. Quando ele chegar à idade de saber escolher o bem e rejeitar o mal, o povo estará comendo coalhada e mel.” Outra é de Miqueias, em 5:2-3. “Belém-Efrata, você é uma das menores cidades de Judá, mas do seu meio farei sair aquele que será o rei de Israel. Ele será descendente de uma família que começou em tempos antigos, num passado muito distante.”

Há um problema de tradução, aí. Almah, o termo hebraico usado por Isaías, quer dizer mulher jovem. Parthenos, escolhido pelos gregos para tradução é jovem intacta, nunca tocada sexualmente. Virgem. O profeta afirmou que uma jovem daria luz ao messias. As primeiras comunidades greco-cristãs, ao adaptar a história para fazer com que ela confirmasse a profecia, transformaram esta jovem em virgem por um erro de tradução.

Em hebraico, a tradição para nomes era simples. O nome da pessoa seguido do nome de seu pai, ou da cidade de onde vinha. Assim, Yeshua ben Yosef, Jesus filho de José. Ou Yeshua ha Natzrati, Jesus de Nazaré. Não era possível negar a cidade de onde vinha alguém que todos chamavam Yeshua ha Natzrati. Mas, para se adequar à profecia, sua mãe tinha de dar à luz em Belém. Inventou-se o censo.

Pois é outro dos censos romanos, um que de fato ocorreu, que indica que Nazaré, no tempo de Jesus, era uma cidadezinha de 400 moradores onde havia um banho público, que era um local importante para a mikveh, uma cerimônia de purificação. Após o nascimento de Yeshua, Myriam certamente mergulhou ali.

O típico para uma menina judia do interior é que fosse prometida a um homem mais velho logo que menstruasse, por volta dos doze anos. O casamento se realizaria um ano depois e ela engravidaria assim que possível. Quando seu filho nasceu, portanto, tinha algo entre 14 e 15. Era uma cultura parcialmente matriarcal, então por certo até a adolescência ela esteve muito próxima do menino. Como os moradores da região, ela deveria ter um cabelo bastante preto, entre ondulado e crespo. A pele seria de um marrom com tons de vermelho, algo próximo dos árabes de hoje, os olhos castanhos.

Se Yosef era carpinteiro e treinou Yeshua na profissão, o que é muito provável, então não eram pobres — eram de algo parecido com a classe média de então. Uma família capaz de produzir com seu trabalho o próprio sustento. Há outro indício: Yeshua era um rabi, um mestre itinerante como os muitos que surgiam no tempo. Um sábio que ensinava sobre a religião e que tinha sua própria leitura dos preceitos. Isto quer dizer que ele sabia ler a Torá e havia tido acesso a outros mestres em sua juventude. Meninos pobres não sabiam ler e seus pais não poderiam se dar ao luxo de dispensá-los do trabalho para que pudessem estudar.

Myriam muito possivelmente estava viva para ver o filho cruelmente assassinado.

Um dos motivos pelos quais sabemos pouco da mãe de Cristo é que as primeiras igrejas, quando a distância do tempo ainda permitia memória a seu respeito, não retiveram muito além de seu nome, além da sugestão de que ela esteve ao pé da cruz quando o rapaz de trinta e poucos foi morto.

Hoje é Natal, celebramos bem próximo do Solstício de Inverno em Jerusalém o aniversário de um homem sobre cuja mãe sabemos bem pouco. Ela não era virgem, embora o erro de tradução tenha permitido a metáfora de sugerir que seu filho fosse de Deus, não de Yosef. Certamente foi uma mãe dedicada — temos estes indícios pela cultura, e por sua presença na morte do filho.

A religião, principalmente o catolicismo, a transformou ao longo dos séculos noutra figura. Mas nem em tudo distante de quem realmente foi. A imagem da Pietá, repetida por tantos artistas, da mãe arrasada, ainda jovem, com o filho morto ao colo, não é só plausível. É muito provável de ter de alguma forma ocorrido.

2021, o ano do burnout

O ano parecia que não ia terminar. Muitas perguntas sem respostas. Horas de trabalho excessivas, crises de pânico, sobrecarga parental, exaustão materna, crescimento no número de divórcios e estresse prolongado. Casa virou trabalho, computador virou escola. Os sintomas da síndrome de burnout antes confinados aos ambientes laborais, transbordaram para outros âmbitos da vida cotidiana. A louça se acumulou. Os boletos não pararam de chegar. Conflitos latentes. Tensões antes veladas foram descortinadas.

“Nós nos revelamos para nós mesmos e para os outros. A sociedade se revelou em seus mecanismos cruéis, desiguais ou exploradores. Os pais, os filhos, os amantes, os chefes, os miseráveis e os ultrarricos: tudo está exposto”, resume a psicanalista Maria Homem, que escreveu o livro Lupa da Alma – Quarentena-revelação (Todavia).

No segundo ano de pandemia, especialistas registraram um aumento vertiginoso nos casos de transtornos mentais. A explicação é que a excessiva vigilância contra o vírus estressou nosso sistema hormonal e endócrino de maneira prolongada, tornando-nos mais vulneráveis a patologias psiquiátricas.  A Organização Mundial da Saúde (OMS) denominou de fadiga pandêmica o cansaço derivado do esgotamento gerado pela hipervigilância e pelo medo. Um estudo da Universidade de Oxford revelou que 34% dos que tiveram covid-19 desenvolveram problemas psicológicos dentro de seis meses após terem sido infectados. Publicada na revista The Lancet Psychiatry, a pesquisa aponta ainda que 17% dos pacientes contaminados pelo coronavírus foram diagnosticados com distúrbios de ansiedade e 14% com distúrbios de humor.

Burnout como doença ocupacional

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que mais de trezentos milhões de pessoas, no mundo todo, sofrem de depressão. Na América Latina, o Brasil é o país com mais casos. Eles aumentaram ao longo da pandemia. Até 2030, esta será a doença mais comum no país. Entre os distúrbios, um dos mais relatados pelos médicos é o burnout. A partir de janeiro de 2022, entrará em vigor a nova categorização da síndrome pela OMS, a CID 11 (classificação de transtornos mentais e comportamento).

O que muda na prática? Segundo especialistas, a nova classificação vai facilitar o reconhecimento pelo INSS do direito ao afastamento por doença ocupacional, já que a classificação relaciona a doença diretamente ao trabalho, o que não ocorre com outras síndromes. A mudança abre espaço para pedidos de indenização, por exemplo.

Alterações repentinas de humor, cansaço extremo e irritabilidade. Os sintomas do burnout muitas vezes são semelhantes aos de outras condições de saúde como a ansiedade e a depressão.

Apesar de a OMS destacar que o esgotamento “se refere especificamente a fenômenos relativos ao contexto profissional”, para muitos, a falta de fronteiras entre trabalho e vida pessoal foi o grande gatilho - eis outro termo que marcou 2021.

Contornos, limites e angústias

Foi um ano indigesto. Corpos não velados, casas e relações bagunçadas. Intermináveis ciclos de recomeços para uns, ponto final para outros. Se antes a pergunta Como você está? era meramente protocolar, respostas mais honestas começaram a aparecer ao longo do ano. Já que não tivemos para onde fugir, fomos forçados a dialogar com nossas dores, medos e sombras mais profundas?

“Para aqueles que têm saúde mental suficiente, sim. Foi e está sendo uma oportunidade de se deparar com aquilo que se é, com aquilo que se teme. Seja individualmente, entre casais e em família, nunca estivemos tão debruçados nas relações com o convívio intenso gerado pelo isolamento. Ao olhar para nossos contornos e limites, muitos se viram diante de angústia”, responde a Maria Homem.

Para ela, ainda estamos digerindo esse ano tão pesado. A psicanalista faz uma síntese radical: “assustamo-nos com a violência em jogo nas relações íntimas, sociais e globais. Estamos sofrendo de transtorno pós-trauma e com todo o lixo que jogamos debaixo do tapete nos longos tempos pré-trauma”.

Maria Homem registrou em seu livro que as emoções ficaram à flor da pele neste ano. Se estávamos buscando formas de mantê-las sob controle, ou sob anestesia, agora parecem ter obtido um passe livre para circular sem tanta repressão.

“A semente de inquietação ou loucura dentro de nós parece que se expande. Irrequietos não conseguem ficar quietos ou em casa. Deprimidos ficam mais tristes e ansiosos. Loucos ficam mais delirantes. Agudizar seria o verbo destes tempos?”

A psicanalista Márcia Luna Azulay contradiz o senso comum de que a pandemia causou o adoecimento psíquico das pessoas.  “Os quadros se intensificaram porque já existiam dentro de cada um. Sejam transtornos alimentares ou crises conjugais. Eles apareceram, ficaram visíveis. Apesar da síndrome ser considerada um fenômeno estritamente associado ao âmbito profissional, o estresse crônico se instalou na sala de casa. E nas relações. Na pandemia, o burnout passou a acontecer dentro de casa. E essas características ligadas ao trabalho, como o excesso de tarefas e cobranças, atingiram as outras áreas da vida”, opina Márcia.

“Variações” do burnout clássico não se restringiram ao campo ocupacional. Exaustão emocional, mental e física são os componentes que resumem a síndrome de acordo com Ayala Malach Pines (1945-2012) psicóloga, pioneira na investigação do tema e autora de Couple Burnout: Causes and Cures (Burnout de Casais: Causas e Curas, em tradução livre). Para a pesquisadora, a síndrome resultante consiste em sentimentos de desamparo, desesperança, de estar preso numa armadilha, com sintomas de irritabilidade e apatia.

Até que a pandemia nos separe

A “torta de climão” servida na mesa de jantar. As mudanças drásticas na rotina impulsionaram um novo recorde de divórcios no primeiro semestre de 2021.  Dados do Colégio Notarial do Brasil indicam que de janeiro a junho de 2021, foram 37.083 divórcios, um aumento de 24% em relação ao primeiro semestre do ano passado, com o início da pandemia da covid-19. Há dois anos, 75.033 casais oficializaram a separação.  A quarentena é apontada como principal responsável pelo fenômeno, além da facilitação dos trâmites, que agora podem ser feitos pela internet.

Selvageria do inconsciente

O “cérebro pandêmico” é um termo não clínico que chegou a ser usado por cientistas para definir os efeitos do estresse crônico e prejuízos psíquicos decorrentes da covid-19.  Os danos na área da saúde mental compõem uma pandemia silenciosa. Só o tempo para sublimar, elaborar e compreender as suas consequências.

“Ainda precisaremos de alguns anos (décadas?) para mensurar. De certa forma, um dos mecanismos de defesa, ainda em voga, foi minimizar ou mesmo precisar negar o medo e a angústia diante dessa ameaça. O que, por sua vez, não é sem efeitos – e cobra seu preço. A própria estratégia defensiva delirante tem alto custo psíquico”, reflete a Maria Homem.

Para fugir do tédio, uns aprenderam a fazer pão, outros a costurar. Teve gente que comprou cursos on-line por impulso e não teve paciência (ou foco) de fazê-los. Uns aprenderam a lidar com a falta de intimidade com o digital. Quem pôde fugiu para as montanhas. Nos sentimos cansados. Mais do que isso: foi inevitável olhar para si.

Dentro de um ambiente de confinamento forçado, nossos aspectos psíquicos pularam para fora sem dó nem piedade. “Lá fora é perigoso, o que temperou mais ainda a selvageria do inconsciente que aproveitou o medo para puxar todo mundo para dentro”, resume o terapeuta junguiano Gustavo Otero.

“Todos foram expostos às tempestades internas que antes eram solenemente negadas. Na tentativa de fugir, muitos se jogaram no trabalho. Mas não tem jeito, o inconsciente foi claro: tem que olhar para dentro. Então, tivemos uma onda gigantesca de burnouts, não só no trabalho”, explica Gustavo.

Para ele, a sociedade hiperestimulada e superconectada se viu em 2021 com uma tarefa que nunca poderia imaginar: “O trabalho foi dado: convivam, mas não só com quem está do lado, conviva e aprenda a conhecer os muitos que existem dentro de nós mesmos e que antes, talvez, nem fazíamos ideia de que existiam”, destaca o terapeuta.

Quando isso vai acabar? Quando chega a minha vez de vacinar? É gripe ou covid? Deu negativo? Ufa. Fulano foi internado. Piorou. Não, não vai ter velório. Faz o que com essa dor? Os processos de luto mudaram. Os reais e simbólicos.

Maria Homem destaca sobre a necessidade de escuta das pessoas. Espaços simbólicos que buscam elaborar a experiência bruta via palavra e linguagem são necessários em todas as instituições. Das empresas às escolas, das famílias aos círculos sociais.

Este 2021 que termina foi um ano distopicamente trágico. Mesmo diante de tantos conflitos pessoais e traumas coletivos, houve brechas para alegrias e (re)descobertas. Situações caóticas foram oportunidades de renegociação de acordos na convivência familiar. Novas formas de interagir, de brincar e de se amparar. A tensão foi dissipada com afeto. Solidão virou solitude. Perdemos. Celebramos pequenas vitórias. Novo. Normal. É tempo de revisar o que é normal e o que é verdadeiramente novo.

A revolução da 'Grande Renúncia'

Um fenômeno histórico no mercado de trabalho dos Estados Unidos vem sendo chamado de “The Great Resignation” (A Grande Renúncia), uma alusão às outras crises enfrentadas pela economia americana, como a “Grande Depressão” de 1929. Mais de 4 milhões de norte-americanos pedem demissão por mês, criando números sem precedentes na maior economia do mundo. Essa tendência, que deve seu nome ao pesquisador da Universidade do Texas Anthony Klotz, pode ser descrita como um realinhamento no mercado de trabalho em que uma parcela considerável de pessoas, por diversos motivos, escolhe se demitir.

Entre fevereiro e abril de 2020, início da pandemia de covid-19, o número de desempregados no país passou de 6 milhões para 23 milhões. Em meio ao cenário de crise, no entanto, os EUA começaram uma retomada gradual da economia, fazendo com que a taxa de desemprego ficasse em 5,8% em maio deste ano, bastante abaixo dos 14,8% em abril do ano passado. Mas algo maior e complexo começou a surgir. Restaurantes fast-food e lanchonetes reduziram suas operações e passaram a vender comida apenas para viagem. No setor de lazer e hotelaria, a demanda por funcionários aumentou, mas o segmento está entre os mais afetados não apenas pela pandemia e diminuição de viagens, mas também pela escassez de trabalhadores.

Entretanto, esse cenário não está restrito apenas aos trabalhos operacionais e cargos menores, uma vez que, no topo na hierarquia das organizações, diretores de empresas e CEOs também pediram demissão no país. Um estudo da empresa de recrutamento de executivos Heidrick & Struggles mostrou que a rotatividade de CEOs aumentou no primeiro semestre deste ano. Em 1.095 empresas de diferentes regiões, incluindo os EUA, China e Europa, 103 executivos do alto escalão deixaram seus cargos. Em 2020 foram apenas 49.

Esgotamento emocional

Enquanto milhões de americanos estão procurando empregos, há outros milhões que estão pedindo demissão, e, em muitos casos, a renúncia ocorre sem a garantia de um outro trabalho ou a intenção de procurar. Entre as explicações estão os novos conceitos que a pandemia trouxe, como priorizar não apenas o salário, mas também flexibilidade, benefícios e qualidade de vida. Com a adoção do trabalho remoto, muitos profissionais foram obrigados a passar mais tempo em casa, o que lhes permitiu repensar a forma como se relacionavam com seus trabalhos e as pessoas. Vale lembrar, ainda, que a pandemia e o isolamento social aumentaram a incidência de casos de depressão e da síndrome de burnout, que entrou para a Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Novos modelos de trabalho

Outra consequência do trabalho remoto, e que pode ajudar a explicar a “Grande Renúncia” nos EUA, é que muitas pessoas se adaptaram ao home office e agora não querem voltar ao escritório, embora essa parcela de pessoas seja menor, segundo o pesquisador Anthony Klotz. Um estudo da Microsoft revelou que 70% dos funcionários querem que as empresas mantenham o trabalho remoto, e 45% dos que trabalham remotamente têm planos de mudar de moradia, já que não precisam mais ir para o escritório. Desde 2020, diversas companhias vêm estudando a implementação do trabalho híbrido, ou devem manter 100% do trabalho remoto durante a pandemia de coronavírus. Com isso, profissionais estão se demitindo para buscar empregos remotos ou híbridos ou oportunidades com maior flexibilidade.

O abandono de postos de trabalho nos Estados Unidos também ocorre em meio a uma maior mobilização sindical que atravessa o país e que ganhou força com a pandemia. E, se antes, qualquer oferta de emprego poderia ser aceita, hoje, os trabalhadores cobram mais responsabilidade das empresas, em termos de segurança de trabalho, e do Estado, por meio de políticas públicas de proteção ao trabalhador.

Embora o governo dos EUA tenha injetado estímulos na economia contra a pandemia, o país passa por uma reformulação radical da cultura do trabalho, na qual trabalhadores experientes ou esgotados pelo sistema abrem mão de seus cargos, sejam operacionais ou corporativos, em nome da qualidade de vida. Portanto, agora, não é apenas o salário que leva a pessoa a escolher o emprego, mas também flexibilidade, benefícios e bem-estar. Isso porque o preço psicológico, às vezes até físico do trabalho, muitas pessoas já não parecem dispostas a pagar.

E eis que termina mais um ano. Estudantes e muitos profissionais de férias, empresas em recesso de fim ano, mais tempo livre. Pensando nisso, a equipe cá do Meio resolveu apresentar sugestões, cada um seguindo seu gosto, de filmes, séries e músicas para ajudar a preencher esse tempo. Alguns são novidades, outros são clássicos que merecem ser revisitados. Uns fazem rir, uns fazem chorar, uns encantam, outros até assustam, mas todos a seu modo nos levam a pensar. Aproveitem e boas festas e um ótimo 2022 para todos.

Adriano Oliveira: O fim de ano é aquela hora de confraternizar com os colegas de trabalho e rir um pouco também. Mas que tal rir muito com os problemas e trapalhadas dos funcionários do escritório da Dunder-Mifflin, uma empresa de papel americana liderada por um chefe, no mínimo, sem noção e funcionários bem diversos? Aproveite a folga e veja a aclamada série The Office, disponível na Amazon Prime Video e na HBO Max.

Bruna Buffara: Para resumir os “tempos pandêmicos”, Bo Burnham - comediante desde os 16 anos - fez um filme e a trilha sonora completa dentro de casa, sozinho. O resultado é emocionante, melancólico e cheio de sentimentos. Esse é Inside, feito em parceria com a Netflix. O projeto é diferente e um tanto esquisito, mas definitivamente bem artístico. No final, quem não se enxerga um pouco deprimido após dois anos de reclusão?

Júlia Ribeiro: As dores da maternidade, pobreza, relações de poder, opressões sociais são reveladas de forma nua e crua em Maid. Disponível na Netflix, a série é uma oportunidade para investigar os contornos subjetivos da violência, os abusos psicológicos e como os padrões sistêmicos familiares afetam nossas relações. É sobre loucura e amor. Já pode separar o lenço.

Leonardo Pimentel: Todos queremos um 2022 alegre, de alto astral e colorido. Exatamente o contrário da minha sugestão, a série islandesa Katla, da Netflix. Após um ano de erupção contínua do vulcão que dá nome à história, os habitantes remanescentes do vilarejo vizinho veem surgirem pessoas nuas cobertas pelas cinzas. Elas são quem parecem e dizem ser? Ah, um aviso, o último dos oito episódios é somente para os muito fortes.

Mari Tegon:  Lana Del Rey! Por quê? A voz de anjo, os arranjos sofisticados das músicas, a profundidade das letras e a facilidade que ela tem em escrever sobre amor, sexo, o profano e o sagrado, pandemia e até mesmo os incêndios na Califórnia. Precisa mais? Este ano ela lançou dois álbuns, Chemtrails Over The Country Club e Blue Banisters e foi eleita “Artista da Década” pela Variety.

Micaela Santos: Para quem vai viajar ou precisa recarregar as energias neste fim de ano, o álbum A Página do Relâmpago Elétrico (1977), de Beto Guedes, será a melhor trilha sonora para começar 2022 com o pé direito. É o primeiro disco oficial da carreira solo de Beto, integrante do Clube da Esquina, ao lado de nomes como Milton Nascimento, Lô Borges e Flávio Venturini, entre outros. O álbum é cheio de influências, como a música regional mineira, Bossa Nova, Tropicalismo, o rock progressivo do Yes e a psicodelia dos Beatles, mas com veia brasileira. Destaco as canções Lumiar, Chapéu de Sol e Maria Solidária.

Pedro Doria: Você já reassistiu House? Suas oito temporadas, exibidas entre 2004 e 2012, ainda têm aquele formato no qual cada episódio é uma história que se fecha em si. O médico interpretado por Hugh Laurie é um Sherlock Holmes moderno que resolve cada diagnóstico com profundo conhecimento e sofisticada dedução. Mas, se parece uma série das antigas, engana, e só dá para descobrir isso maratonando. A evolução do personagem principal forma um arco dramático extraordinário, na dobradinha entre Laurie e o criador, David Shore. Na Amazon Prime.”

Tay Oliveira: Um álbum em particular ficou no modo repeat no meu Spotify que foi Roteiro pra Aïnouz (Vol. 2) do rapper cearense Don L. A obra dele mistura crítica social e musicalidade de primeira. O álbum aborda a trajetória de Don L para chegar ao sucesso e idealiza um novo Brasil com ideias mais igualitárias. São17 faixas, com direção artística de André Maleronka e produção executiva de Marina Deeh. Don L está aí para provar que fazer Rap é um ato político e de resistência

Vitor Conceição: Veja Beforeigners, na HBO Max, ambientada na Oslo dos dias de hoje. Sem qualquer explicação, começam a aparecer no mar pessoas vindas da idade das cavernas, dos tempos dos vikings e do século 19. O que no princípio era só um mistério logo se transforma em uma crise de refugiados que afeta toda a sociedade. Uma excelente alegoria com o que vive a Europa atualmente. A segunda temporada estreou no começo de dezembro, com três primeiros episódios já disponíveis.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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