Edição de Sábado: A Web 3.0 pode transformar a internet — e toda a sociedade

Existem duas teses circulando a respeito de como será o futuro da internet. Uma é o Metaverso. A outra, a Web 3.0. O Metaverso é fácil de explicar — Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, vem batendo nesta tecla com firmeza há vários meses. É uma visão que junta o mundo digital no qual já estamos com realidade virtual. Quase ficção científica: podemos nos reunir com amigos a quilômetros de distância como se estivéssemos num só ambiente. Vemos as pessoas em três dimensões com óculos especiais. Este futuro, do ponto de vista tecnológico, está a no mínimo dez anos de distância, se não for mais. Com a Web 3.0 é diferente. Ela não é simples de explicar, mas boa parte da tecnologia para torna-la viável já existe. Se acontecer, e tudo indica que começará a acontecer brevemente, ela não muda só a internet. Muda a própria estrutura de como a sociedade se organiza. Transforma a economia e a política de formas potencialmente radicais. O que falta para ela não é ser inventada, isso já aconteceu. Falta ser simples para que todos a compreendam e saibam usar.

Como chegamos até aqui

Quem chegou à internet na última década do século 20 conheceu a Web 1.0. Foi ela que criou, em inúmeros pontos do mundo, uma quantidade imensa de pensadores otimistas com o potencial democrático da nova tecnologia. Aquela web inicial era descentralizada. Toda pessoa poderia ter um site, caso trabalhasse para isso. Todo mundo poderia conectar o próprio servidor à internet.

O que muita gente descobriu rápido é que estar na internet dava trabalho. Para manter de pé os negócios iniciais que nasceram ali era preciso manutenção constante de servidores, pesado investimento em segurança, contornar panes a toda hora. Era impossível, naquela web, publicar informação sem muito conhecimento técnico e algum investimento em dinheiro. Cada página tinha de ser escrita em código. Nada era simples.

A Web 2.0 nasceu para resolver todos os problemas que existiam na primeira versão.

As nuvens, por exemplo, atacaram a dificuldade com infraestrutura de hardware. Deixou de ser preciso manter os próprios servidores — basta contratar o serviço de uma nuvem e armazenar nelas seu conteúdo. A provedora de nuvem, uma empresa especializada, resolve quaisquer dificuldades técnicas que surjam.

A exigência do conhecimento técnico para cada pessoa publicar foi resolvida pelas plataformas. Primeiro vieram os blogs. Ninguém precisava mais escrever em código. Depois, quem queria publicar vídeos podia simplesmente abrir seu canal num YouTube. Por fim vieram as redes sociais.

Se os blogueiros, no período de transição da Web 1 para a 2, penavam para encontrar audiência, nas redes este problema foi resolvido. Sempre que uma rede juntava gente o bastante, os algoritmos de inteligência artificial se tornam capazes de achar o público que pode se interessar por aquele tipo de conteúdo. As plataformas trazem o público para quem deseja ser ouvido, assistido ou lido.

As plataformas e seus algoritmos resolveram, assim, dois problemas essenciais que a Web 1 apresentava.

Aquela internet inicial era tão complexa tecnicamente que só gente com conhecimento especializado e empresas conseguiam participar. A Web 2 é a rede na qual todo mundo constrói seu conteúdo, todos podem ter sua voz. Por conta disso, a Web 2 se tornou atraente o bastante para trazer as massas para o mundo digital.

Porque havia pouca gente, e porque era tão difícil publicar online, boa parte da década de 1990 se passou na busca por modelos de negócio que tornassem a internet viável economicamente. Mas os algoritmos da Web 2.0, por serem capazes de encontrar o público certo para cada um que participa, também têm a habilidade de achar os olhos ideais para qualquer peça publicitária. O problema do modelo de negócios desapareceu e, em seu lugar, ergueram-se corporações capazes de crescer em velocidade e escalas que o capitalismo jamais havia testemunhado.

Mas nada vem de graça.

O apelo democratizante da Web 1 se baseava no fato de que aquela rede trazia promessas por ser descentralizada. Cada um conectava seu servidor e disputava de igual para igual o público pela arte do convencimento. Como era difícil, poucos faziam.

No primeiro momento, as plataformas pareceram oferecer facilidades para quem tinha dificuldade técnica de publicar suas ideias. Não bastasse, facilitavam o acesso ao público. Mas, logo ficou claro, de democratizante havia muito pouco ali. Se a Web 1 era descentralizada, a Web 2 começou a centralizar a internet em um número limitado de plataformas. O público está não mais em qualquer lugar da grande rede, mas dentro das quatro paredes virtuais erguidas por um número pequeno de corporações.

No interior destas paredes, os algoritmos têm viés, incentivam um tipo de informação em detrimento doutra. De sérios problemas de autoimagem para adolescentes à manipulação do debate público que incentiva mentiras com consequências graves em troca de eleição, a tecnologia da Web 2 se mostrou uma ameaça à sociedade.

O modelo de negócios também se mostrou nocivo. Em essência, transforma a venda dos dados pessoais de cada pessoa na fonte de lucro. E quebra um equilíbrio necessário e fundamental para qualquer mercado. São as pessoas, e o que elas produzem, que dão valor às plataformas. Ninguém entra no Facebook ou no YouTube pelo que estas companhias pagam para produzir. Entra-se pelo conteúdo que amigos ou gente interessante apresenta, em muitos caos sem receber nada por isto. Estas mesmas empresas, por conta das consequências de como suas plataformas se estruturaram, ameaçam democracias.

Algumas das plataformas, como o YouTube, ainda distribuem parte de seus lucros a quem cria conteúdo. Outras, a maioria das redes, ou pouco ou nada distribuem. A concentração destas altas margens de lucro nas mãos das plataformas viabilizaram a criação dos maiores oligopólios da história do capitalismo.

Violam privacidade, ameaçam saúde e democracias, concentram lucros como jamais houve. É isto que a Web 3 ambiciona resolver.

Plataformas e protocolos

De cara, há um desafio técnico importante para enfrentar. Uma rede centralizada se baseia em plataformas. Uma descentralizada, em protocolos.

Protocolos são linguagens comuns que todos podem usar. O protocolo 4G, assim como o 5G, é composto por uma série de instruções técnicas sobre como cada aparelho celular precisa ser montado para que possa se conectar àquela rede de telefonia. Assim, Samsung, Apple ou Motorola podem fabricar aparelhos que sejam plenamente compatíveis entre si.

A internet é construída em cima de protocolos. O TCP/IP regula o tráfego dos dados e a comunicação entre cada servidor. O HTTP define como páginas da web encontram umas às outras através de links. E qualquer um pode construir equipamento que se integre à rede ou um software que apresente páginas nesta rede.

Uma plataforma é um ambiente fechado. O Facebook é uma plataforma, o YouTube outra, o Twitter uma terceira. WhatsApp. Instagram. TikTok. Sem a permissão do Facebook, uma empresa privada, ninguém constrói algo que se encaixe livremente em seu espaço. Vale para qualquer plataforma.

Há vantagens. Plataformas, por serem fechadas e privadas, podem evoluir rapidamente. Se os donos do Twitter desejam incluir uma função nova, o CEO manda, dois ou três programadores desenvolvem e logo está no ar. Plataformas se adaptam rápido e se sofisticam com frequência.

Com protocolos não funciona assim. Como são linguagens públicas, para que uma mudança tenha efeito é preciso que todos empenhados nela concordem e a implementem. A governança é complexa. Um novo protocolo para redes celulares demora dez anos para ser criado e posto no ar. Estamos ainda caminhando para a versão 2 do protocolo HTTP, da web.

A capacidade de mexer em protocolos, por ter de ser consensual para um número grande de jogadores, faz deles instrumentos muito lentos de inovação. Eles não têm a agilidade de plataformas.

O desafio da Web 3 é este. Como descentralizar novamente a internet, criando um ambiente no qual todos se encaixem com facilidade, mas sem perder a capacidade de contínua inovação que as plataformas da Web 2 trouxe.

Entra o blockchain

A bitcoin, a primeira criptomoeda lançada em 2009, apresentou ao mundo o que pode solucionar este dilema: o blockchain. Em uma das muitas definições que podem ser encontradas online, o blockchain é definido como “um sistema que permite rastrear o envio e recebimento de alguns tipos de informação pela internet”. Ou “pedaços de código gerados online que carregam informações conectadas – como blocos de dados que formam uma corrente – daí o nome.” Blocos de informação criptografados numa corrente.

Quem tem uma nota de dinheiro na mão e compra algo, entrega aquele papel. O dinheiro sai da carteira e entra na caixa registradora. Com o digital não é tão simples. O dinheiro digital não é físico, é um conjunto de bytes. Quem envia uma fotografia pelo WhatsApp para um amigo não deixa de ter aquela imagem — uma cópia é criada no celular de quem a recebeu. Para dinheiro, não funciona. O dinheiro precisa deixar de existir numa carteira para entrar na outra. É isto que o blockchain resolve. Em cada bitcoin há um blockchain que a identifica como uma moeda única e que carrega sua história, A cada nova transação, um elo novo de informação é incluído no blockchain — de que carteira saiu, em qual entrou, em que momento. E como esta informação é toda criptografada, o dono daquela moeda não tem como modificar esta informação, fraudar a história de cada movimentação.

É por isto que a bitocoin, como todas as outras moedas que utilizam a tecnologia blockchain, são chamadas de criptomoedas.

Este mundo financeiro do cripto se organizou ao longo da última década. Cada pessoa que tem criptomoedas precisa ter também pelo menos uma carteira digital. Ela pode ser custodiada por uma corretora online, como se fosse uma conta bancária, ou pode estar dentro do computador pessoal de seu dono — como a boa e velha carteira de couro que carregamos conosco. Mas cada moeda, mesmo digital, é única. Não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo.

Nestas corretoras, as exchanges, diariamente negociações são conduzidas como num mercado. Nelas entram reais, dólares, euros para a compra de bitcoin, ethereum, solana, e incontáveis outras criptomoedas. É um mercado como qualquer outro, cuja integridade de cada moeda vendida é garantida pelo blockchain.

A questão, logo se percebeu, é que o blockchain pode ser usado para muito mais do que apenas moedas. Para um contrato, por exemplo. Como se garante um contrato digital que duas pessoas assinam? É preciso, em essência, ter certeza de que as duas pessoas concordaram com os termos e que estes termos não foram modificados. Um blockchain faz isso. Nele ficam criptografadas as duas assinaturas e a garantia de que os termos não foram tocados.

Vale para a escritura de um imóvel. Pertencia a Fulano, desde tal data é de Beltrano, e corresponde ao apartamento de tantos metros quadrados localizado num endereço dado. Também funciona para um acordo de casamento — estas duas pessoas, a partir de tal data, tomaram a decisão de compartilhar seguros de saúde mas preferiram manter suas contas correntes separadas. Pode garantir que a tora de uma árvore foi colhida em uma fazenda legal e não no miolo de uma reserva florestal. A fazenda tal tinha tantas árvores plantadas e registradas, cada uma com seu próprio código único, aquela árvore específica tinha um tamanho que lhe permitia um volume tal de madeira e esta mesa hoje vendida consumiu tantos por cento da tora original.

Nenhum papel foi produzido, nenhum carimbo martelado, nenhum selo destacado e colado. Todo o processo é digital e o blockchain traz em si a garantia de que o acordo existe, é imutável, é único.

Um contrato garantido por blockchain não é a mesma coisa que uma criptomoeda. Afinal, existem muitas bitcoins. Mas cada contrato é único. Estes contratos são chamados de NFT — um ‘token não fungível’ na sigla em inglês. Não fungível quer dizer, justamente, que ele é único.

Uma obra de arte digital é única se está atrelada a um NFT, o contrato que descreve suas características. NFT só pode haver um. O conceito de NFT, que hoje já estabeleceu um mercado de arte digital, serve para qualquer tipo de contrato.

Mas como pode, deste conceito do cripto, surgir uma alternativa para a Web 2?

A estrutura da Web 3.0

O login e a senha que utilizamos para entrar no Facebook, ou no Gmail, funcionam um pouco como nossa identidade na internet. Entramos em inúmeros sites com eles. O Face, como o Google, tem um banco de dados centralizado, que estas empresas controlam, onde estão as informações a nosso respeito. Quando usamos um dos dois para garantir nossa identidade e entrar numa loja virtual, muito da informação sobre o que fizemos naquele ambiente é compartilhada com estas empresas. São estes dados sobre nossos hábitos digitais que as tornam valiosas. Em essência, a informação que elas têm e ninguém mais a respeito de uma parcela imensa da humanidade é o que as transformam em gigantescas corporações como nunca antes vistas.

Mas a identidade pode ser também garantida por um NFT. Um NFT emitido pelo governo de um país, ou por uma corretora de criptomoedas, carrega em si, no blockchain, o que torna aquela identidade única. Não há um banco de dados centralizado. Num mundo cripto, o documento de identidade digital de uma pessoa pode estar em seu computador, no seu celular, num chip, numa corretora. É a pessoa, a portadora daquela identidade, que escolhe. A identidade não estará no banco de dados de uma empresa gigantesca que controla as informações atreladas àquela pessoa.

Esta é uma mudança conceitual forte pois permite a criação daquilo que no mundo cripto chamam DAO — organizações autônomas descentralizadas, na sigla em inglês. É uma organização composta por pessoas que se juntam com algum propósito e aderem a um acordo coletivo registrado, claro, num blockchain.

Os membros desta organização não precisam, necessariamente, ter todos o mesmo poder de influenciar nas decisões. Basta que se crie um mercado interno. Quanto mais alguém contribui para o valor da organização, mais ganha tokens. Como se cada DAO tivesse sua própria criptomoeda. E tokens, esta moeda, podem ser gastos para votar a favor ou contra mudanças internas.

Um Instagram, na Web 3.0, jamais seria uma plataforma fechada. Seria uma DAO, uma organização descentralizada. O like que uma foto recebe é um token, uma criptomoeda devidamente armazenada na carteira digital. E não há motivo para que esta ‘moeda’ não seja negociada num mercado aberto em troca de outras criptomoedas. O valor de um like dum Instagram-DAO flutuaria naturalmente em valor, de acordo com a percepção coletiva da importância do que é produzido ali.

Mas não precisa ser um Instagram. Uma DAO pode ser uma empresa de software em que o percentual de trabalho de cada programador no produto final seja devidamente registrado e a cada vez que alguém compre o direito de uso do programa o valor seja redistribuído de acordo com os termos estabelecidos pela organização.

DAOs muito populares, que produzam qualquer coisa que seja percebida como valiosa por muita gente, distribuirão para seus membros estes tokens, estas criptomoedas, que representam valor real em dinheiro.

Partidos políticos, ONGs, empresas privadas, clubes de livro, em essência qualquer agrupamento humano pode se organizar coletivamente na forma de uma DAO. E os termos de cada contrato não precisam necessariamente passar pela remuneração financeira. Podem, mas não precisam. Os estatutos de ONG podem estabelecer que o trabalho não é remunerado, é sempre voluntário. A identidade nacional de qualquer cidadão, por exemplo, pode garantir para ele o direito ao voto a partir de uma idade e o contrato, a Constituição ancorada num blockchain daquela nação, determina que este direito não é negociável. O cidadão nunca perde seu direito de votar e seu voto nunca vale mais do que o de qualquer outro cidadão.

Em teoria, democracias inteiras podem se organizar porque, ao menos tecnicamente, será possível promover eleições e consultas com muita facilidade, a baixo custo, e com integridade garantida. Democracias diretas, onde todas as decisões emanam do voto, tendem a se tornar ditaduras da maioria sem garantias para minorias. Mas isto não quer dizer que eleições ou consultas não possam ser mais frequentes, que a estrutura de Parlamentos não possa ser modificada, as possibilidades são muitas.

O blockchain muda a maneira como se organiza tanto o mundo virtual quanto o físico. Esta é uma característica fundamental da Web 3.0. Ela é uma internet com o potencial de alterar a economia, a política e, por fim, toda a sociedade. Por ser descentralizada, distribui o poder que hoje as grandes corporações digitais mantém pelo controle de plataformas.

É enfim a democracia digital?

A tecnologia por trás da Web 3.0 já existe — ela só é difícil. Difícil de implementar tecnicamente e difícil de explicar, conceitualmente. Mas criptomoedas já estão na publicidade da TV e começam a se tornar populares entre investidores. E um mercado de arte digital baseado em NFTs já se formou, embora seja pequeno. É o início da popularização do conceito. Como tudo na história do digital, primeiro vêm os pioneiros, depois vira aquele tema sobre o qual todo mundo fala mas pouca gente experimentou e aí, enfim, chegam as massas. Estamos na segunda fase.

Há, porém, um debate intenso ocorrendo. No último mês, Jack Dorsey, fundador e há até pouco tempo CEO do Twitter entrou num debate público virulento com Marc Andreessen, sócio do fundo da Andreessen Horowitz, um dos principais investidores em novas companhias do Vale do Silício. As emoções ferveram e o Vale se dividiu.

São, ambos, estrelas de gerações distintas da internet. Quando estudante, Marc Andreessen escreveu o código do primeiro browser gráfico, o Mosaic, e depois fundou a primeira startup gigante da Web 1.0, a Netscape. Foi o primeiro bilionário da era da internet. Dorsey é criador de uma das principais marcas da Web 2.0, o Twitter, e é também fundador e CEO da Block, uma das maiores empresas americanas de pagamentos digitais.

Dorsey acusa de hipocrisia os proponentes da Web 3. Argumenta que, embora muito distinta da Web 2, é uma ilusão dizer que ela seja mais democrática. O poder, ele argumenta, estará nas mãos de quem controla as corretoras de criptomoedas e que os sistemas que interpretam o blockchain serão também poucos. Se este futuro se concretizar, haverá uma infraestrutura central que todos terão de utilizar. Quem controlar esta infraestrutura central poderá até ser menos visível do que os controladores das grandes plataformas, hoje. Mas o poder estará nas mãos destes.

Andreessen e seu sócio, Ben Horowitz, evidentemente discordam. Estão investindo pesado no setor e, ora, apontam que Dorsey mantém suas fichas no modelo atual. A Web 3 ameaça seus negócios.

Ambos têm razão.

A Web 3.0 é uma ideia, um conceito, a imaginação de como a internet pode vir a ser muito diferente de como se apresenta hoje. Não é certo que será assim. Mas, no momento, é o caminho que o futuro parece estar seguindo.

Ação afirmativa à prova de inviabilidade

Quem nunca esteve tão encrencado que precisou de um conselho? Foi assim, com um tweet, que Déia Freitas bombou. Numa conta chamada “Não Inviabilize” a psicóloga, ativista, escritora e roteirista começou a publicar histórias reais e anônimas, claro, de seus seguidores. O objetivo era discutir e distribuir conselhos. Pouco tempo depois surgiu o podcast de mesmo nome. O programa cresceu, ganhou milhares de apoiadores e tornou-se um dos podcasts mais escutados do Brasil. Seu grupo no Telegram possui 47 mil participantes que ativamente discutem e aconselham as pessoas das histórias.

Nessa semana, Déia decidiu contratar uma assistente de roteiro. Sem experiência. Só precisava cumprir um requisito: ser uma mulher negra, parda ou indígena. Seria um contrato anual, dividido quatro contratos trimestrais. Assim, estendendo a oportunidade para quatro diferentes mulheres no período de um ano se inserirem no mercado de trabalho. E com uma experiência que com certeza pesaria num currículo.

Genial para uns, excludente para outros.

A anúncio foi feito nas redes sociais, e foi nelas que a reação violenta se disseminou. Déia foi atacada por “racismo reverso”, por não querer brancos na vaga, por não querer homens. A descrição da vaga foi impressa e espalhada em grupos supremacistas brancos. Ataque de radicais feministas, já que a vaga também inclui mulheres trans (o que, para as radfems, não é considerado mulher). CNPJ vazado, endereço à solta. O e-mail para a vaga também saiu do ar. Tudo isso por uma ação afirmativa.

A oferta exclusiva para não brancos não é racismo sequer do ponto de vista legal. Ações afirmativas visam combater efeitos acumulados de discriminações ocorridas no passado. E vamos lá, por que precisamos de ações afirmativas? Se pessoas negras não tivessem sido escravizadas por 300 anos, “libertas” sem compensações, excluídas da sociedade, marginalizadas e negadas de seus direitos básicos, talvez, não fossem necessárias políticas de inserção de pessoas pretas no mercado de trabalho e em espaços de poder. E nem falamos sobre indígenas. A igualdade racial no ambiente de trabalho é um dos objetivos dessas ações. Além de ajudar a formar um imaginário coletivo de que pessoas negras, pardas e indígenas possam ocupar cargos de importância.

As ações afirmativas, tal qual a lei de cotas, são uma maneira de tentar reparar uma dívida histórica que a sociedade brasileira tem com os cidadãos não brancos. Essas vagas que as empresas abrem, como a Magazine Luiza ou O Boticário, não são uma bonificação para o povo negro. Muito menos esmola. São uma tentativa de reparar uma dívida histórica. O peso da escravidão sobre sociedade brasileira jamais será reparado de todo, mas a inserção de pessoas pretas em cargos de liderança nas empresas é um caminho para diminuir esse saldo negativo. Até porque, apesar da população negra/parda corresponder a 54% da sociedade brasileira, somente 30% dos postos de chefia são ocupados por esses indivíduos.

Sem o direito ao não

Os números não deixam margem para dúvidas. No Brasil, são 28 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Em 2020, as pessoas negras e pardas eram 72,9% dos desempregados no país. Trazendo esse dado para a população indígena – de todos os grupos –, os povos originários foram os que mais perderam renda, ao todo 26,6 %. Além disso, o desemprego cresceu bem mais do que em outros grupos marginalizados.

Na opinião do escritor de afrofuturismo Ale Santos, finalista do Prêmio Jabuti 2020, a exclusão de pretos e pardos do mercado de trabalho e de cargos de melhor remuneração tira desses trabalhadores o “poder de dizer não”. “Se você precisa de R$ 800 para alimentar a sua família, e é oferecido um trabalho que te pede muito além do possível, o que você faz?”

O irônico é que dentre os ataques recebidos pela Déia, alguns alegavam que a vaga “pagava muito” (contrato de 4 meses por R$22.000). Outro dado interessante é que a vaga era para assistente de roteirista. E se analisarmos, 97% dos escritores contratados por editoras são brancos e 70% homens. E uma vaga para menos de 3% desse público foi rechaçada.

Como Ale disse: “as redes sociais têm a mesma dinâmica que uma guerra, quanto mais radicalizado o discurso mais longe ele vai. Mas esse discurso fica ali na tela. Você não vê ninguém fazendo uma manifestação contra os trainees na porta da Magalu.”

A inclusão sempre foi pauta no podcast “Não Inviabilize”. Além de ter mais de 340 histórias publicadas em plataformas gratuitas (Spotify e YouTube) e 90 apenas para os apoiadores. O apoio ao podcast é de no mínimo R$10 e dá acesso às histórias com antecedência. Já são mais de 17 mil pessoas apoiando financeiramente o projeto. Com esse dinheiro, Déia criou e alimentou um site próprio, no qual todas as histórias foram transcritas para Libras. Para dar conta de tudo isso, Déia tem uma equipe de seis pessoas fixas e outros seis prestadores de serviços eventuais. Em sua maioria, pessoas pretas. É um projeto bem feito, uma equipe grande, pautado pela inclusão e que segue crescendo. Só podia ser coisa de preta.

Por Bruna Buffara e Tay Oliveira

Transplantes de órgãos e a falta de doadores no Brasil pandêmico

Até que ponto podemos chegar para garantir que alguém possa ter a vida salva por um transplante de órgãos? John Q., personagem vivido por Denzel Washington no filme de mesmo nome (ou Um Ato de Coragem, na versão brasileira) faz reféns no pronto-socorro de um hospital em que seu filho está internado, esperando um transplante de coração, que não foi liberado pelo convênio médico. O homem coloca sua própria vida em risco para salvar o menino. Na vida real, a falta de órgãos disponíveis para transplantes faz com que cientistas de todo o mundo busquem alternativas - nos limites da lei e da ética - para suprir a demanda.

O primeiro transplante de órgãos bem-sucedido ocorreu em um hospital em Boston, Estados Unidos, em 1954, quando um homem doou um de seus rins ao irmão gêmeo. Bem antes, em 1905, um oftalmologista austríaco realizou o primeiro transplante de tecidos, uma córnea que restaurou a visão de um homem que havia ficado cego após um acidente.

No Brasil, capas de jornais e revistas estampavam em junho de 1968 o primeiro transplante de coração no país. O receptor foi João Ferreira da Cunha, conhecido como João Boiadeiro, um rapaz de 23 anos do Mato Grosso. Chegou a ser homenageado na música sertaneja João Boiadeiro, da dupla Moreno e Moreninho. O primeiro transplante de órgãos no Brasil foi realizado quatro anos antes. Um rim doado a um jovem de 18 anos, no Rio de Janeiro.

As primeiras cirurgias não deram muito certo. João morreu 28 dias após a cirurgia. Já o portador do novo rim esquerdo suportou apenas oito dias internado, após uma pneumonia. Mas as técnicas evoluíram e hoje o índice de sucesso nesses procedimentos é superior a 80%.

Nesta semana, um novo capítulo sobre o assunto repercutiu em todo o mundo. Um homem de 57 anos recebeu o primeiro coração de porco geneticamente modificado da história. Ele tinha um problema cardíaco e corria risco de morte. Segundo um comunicado do hospital, a cirurgia era a “única opção de sobrevivência” do paciente. O transplante ocorreu no Centro Médico da Universidade de Maryland, em Baltimore, nos Estados Unidos. O porco utilizado no procedimento teve três genes anulados, que poderiam causar a rejeição do órgão no homem, e outro gene que faria o tecido cardíaco crescer em excesso. Também foram inseridos seis genes humanos, para que o órgão fosse bem aceito pelo sistema imunológico do receptor.

Mas esse não foi o primeiro experimento envolvendo um órgão suíno geneticamente modificado para transplante em humanos. Em outubro do ano passado, médicos de um hospital ligado à Universidade de Nova York realizaram o primeiro transplante de rim de porco em um humano, com sucesso. A receptora do órgão era uma mulher com morte cerebral, cuja família autorizou o experimento científico. O rim foi ligado às veias e artérias do corpo da paciente ainda mantida por aparelhos, que mantinham suas funções vitais. Por três dias, o órgão ficou fora do corpo da mulher, para que pudesse ser monitorado pelos médicos e as funções renais “pareciam bem normais” para a equipe responsável pelo procedimento.

Esse tipo de procedimento, chamado de xenotransplante, está sendo estudado como uma alternativa à falta de órgãos humanos para transplantes. Nos Estados Unidos, por exemplo, mais de 106 mil pessoas estão na fila, enquanto 17 pessoas morrem diariamente à espera de um órgão, segundo o governo federal.

Pandemia prolonga a espera

Atualmente, o Brasil tem mais de 50 mil pessoas esperando por um transplante de órgãos ou tecidos. Com a chegada da pandemia de covid-19, a situação ficou ainda mais difícil. Segundo a Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos (ABTO), houve uma redução de 13% no número de doadores no primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período de 2020 e de 18% comparado a 2019. Segundo o Sistema Nacional de Transplantes (SNT), entre janeiro e junho de 2021 houve um aumento de 14,47% de procedimentos no Brasil, comparado ao mesmo período do ano anterior. Mas os números seguem aquém do esperado.

Para se ter uma ideia, de acordo com o Sistema de Informações Hospitalares (SIH/SUS), somente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foram realizados 62,9 mil transplantes em 2020 contra 81,4 mil em 2019 - ano anterior à chegada da pandemia no país -, equivalente a uma queda de 22,7% nos procedimentos.

Entre os principais motivos estão o aumento da contraindicação das operações pelo risco de infecção por coronavírus, a impossibilidade da doação por pessoas que foram contaminadas por covid-19 ou porque não foram testadas a tempo, além da lotação das Unidades de Terapia Intensiva (UTI) ao longo dos picos de contaminação por todo o país. Com a adoção do isolamento social e mais pessoas em casa, houve uma queda de mortes por traumas, fator que contribuiu para reduzir o número de doação de órgãos e tecidos.

Tipos de doadores

Há duas categorias possíveis de doadores. Uma é de pessoas vivas, maiores de idade, saudáveis e que concordem em doar, sem que prejudique a própria saúde. Pode-se doar um dos rins, partes do fígado, da medula ou dos pulmões e é preciso ter compatibilidade sanguínea com o receptor. Pela legislação brasileira, cônjuges e parentes até o quarto grau podem ser doadores. Para outros casos, somente com autorização judicial.

A outra é de pessoas falecidas. Por lei, só podem doar órgãos pacientes com morte encefálica, ou tecidos aqueles que morrem por parada cardiorrespiratória. Podem doar rins, coração, pulmão, pâncreas, fígado e intestino. Também é possível doar tecidos, como córneas, válvulas, ossos, músculos, pele, entre outros.

Como doar órgãos

A pessoa que deseja ser doadora precisa conversar com os familiares e manifestar o desejo ainda em vida. Por lei, para que seja feito o transplante é necessária a autorização por escrito da família do doador. Não há garantia legal que o desejo da pessoa seja atendido, mesmo que esteja registrado em algum documento de identificação que ela deseja ser doadora, sendo responsabilidade dos familiares autorizar ou não.

Para saber mais sobre transplantes e legislação específica, conheça a página do Sistema Nacional de Transplantes (SNT) vinculado ao Ministério da Saúde.

E fechando o bloco com os mais clicados da semana:

1. Folha: Dia do Fico, que faz 200 anos, não foi 1º passo da Independência.

2. Caju: Novos hábitos para melhorar a sua qualidade de vida.

3. Forbes: Lições de liderança do país mais feliz do mundo, a Dinamarca.

4. Folha: Foto de 10 anos atrás já alertava para risco de desabamento em Capitólio.

5. BBC: Como deve ser o 'novo normal' no trabalho em 2022, segundo especialistas.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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