Edição de Sábado: A Esfinge Putin

É um truque antigo de marketing. Quando preparou uma pesquisa informal para entender as aflições políticas da população russa, Gleb Pavlovsky não perguntou aos leitores do diário Kommersant quem gostariam de ver no comando do Kremlin. O experiente cientista político perguntou sobre personagens de ficção. Qual seria o presidente dos sonhos. O jornal, que Pavlovsky havia dirigido nos tempos da queda da União Soviética, tinha por dono seu chefe, o oligarca Boris Berezovsky. E Berezovsky estava aflito por respostas. Ele e todos da Família.

Àquela altura, em princípios de 1999, quase todo mundo já havia abandonado Boris Yeltsin, o presidente da Rússia. Ele, o único líder eleito democraticamente na história para o comando do país, havia desapontado seus eleitores. Em parte, havia injustiça na baixa popularidade. A classe média havia se expandido imensamente nos anos anteriores e os confortos da sociedade de consumo se espalharam rapidamente — telefonia, televisões, geladeiras, automóveis. Mas também havia hiperinflação e uma sensação generalizada de desordem e decadência. A Rússia pós-URSS havia desmoronado. E Yeltsin parecia simbolizar aquilo. Com cada vez mais frequência era visto cambaleante, falando com dificuldade, às vezes também incoerente. Saíra de uma operação cardíaca invasiva e delicada fazia pouco. Sua filha dizia que o pai estava doente e tomando muitos remédios. O povo achava que seu presidente era, como tantos russos, alcoólatra. Certo é que não tinha condições de saúde para terminar o mandato. Havia sido abandonado por quase todos que apenas uns anos antes o bajulavam. Talvez por isso o pequeno grupo de parentes, assessores e amigos que continuaram ao seu lado tenham ganhado o apelido de ‘a Família’. Precisavam de um sucessor. Precisavam, principalmente, de um sucessor que idealmente pudesse ser controlado e que não mandasse prender Yeltsin e os seus por corrupção, após sua renúncia.

Não foi o primeiro nome listado na pesquisa que chamou atenção do marqueteiro. Foi o segundo: Stierlitz. Chamou atenção porque, no Kremlin de 1999, todos sabiam muito bem quem lembrava de muitas maneiras Max Otto von Stierlitz, o codinome alemão utilizado pelo agente secreto Maxim Maximovich Isaev das histórias de espionagem. Era o jovem diretor-geral do Serviço Federal de Segurança, a FSB. Desconhecido, um burocrata pouco ambicioso, alguém que sempre que testado havia demonstrado lealdade.

Lembrava Stierlitz até no jeito de sorrir. No detalhe dos maneirismos. Todos sabiam. Todos sempre percebiam.

O que ninguém no Kremlin havia entendido é que Vladimir Vladimirovitch Putin tinha um talento raro, uma habilidade construída pelos melhores agentes da antiga KGB. Ele vivia num mundo de espelhos. “Sou um especialista em comportamento humano”, havia explicado mais de década antes para um amigo de faculdade que lhe perguntara o que um agente fazia bem. Putin era capaz de refletir de volta a expectativa que criavam a seu respeito. Sempre parecia ser quem queriam que fosse.

Há 22 anos no poder, o presidente russo segue sendo a mesma esfinge num labirinto de espelhos. Vive entre a costura de realidade e ficção, num ambiente em que a verdade nunca é clara e os fatos parecem sempre manipulados. A história de como chegou onde está ajuda muito a entender por que uma guerra inacreditável acaba de estourar dentro do continente europeu.

Leningrado

Putin nasceu o filho caçula e tardio de uma típica família de Leningrado, em 1952. Nunca conheceu os irmãos. O primeiro morreu logo após ter nascido. O segundo morreu aos 8, de disenteria e fome, no cerco de dois anos e meio que os nazistas impuseram à cidade durante a Grande Guerra. Seu pai lutou e foi herói, mas a frente de batalha o deixou com as pernas doloridas, marcadas e pouco funcionais pelo resto da vida. A mãe trabalhava numa fábrica. O menino Vladimir passou a infância e parte da adolescência num apartamento dos tempos pré-revolucionários que havia sido dividido com outras três famílias, cada uma em seu quarto, a cozinha no meio com um fogão, uma pia, e só. No inverno, se aqueciam com lenha queimada em fornos de ferro fundido, um por cômodo.

Mas os Putin tinham confortos atípicos — o quarto da família era bem maior do que os outros. Tinham também um carro, já em finais dos anos 1950. Um aparelho telefônico. E até uma dacha, um casebre fora da cidade onde podiam passar o verão. Mais de um biógrafo desconfia que ali estão indícios de que o severo e silencioso pai do futuro presidente não era apenas um reservista por invalidez do Exército Vermelho. Ele próprio, filho de um dos cozinheiros de Lênin e Stálin, talvez tivesse se mantido como um agente de baixa patente da polícia secreta, um informante a respeito do que se passava no bairro.

Como era mirrado e briguento, desde cedo o jovem Vladimir, ou Volodya como os mais próximos ainda o chamam, se dedicou a aprender a lutar. Primeiro boxe, mas quebrou o nariz. Depois sambo, uma arte marcial russa, que logo migrou para judô. Ele era adolescente quando saiu publicado o romance 17 Instantes numa Primavera, um thriller de espionagem encomendado pela KGB para melhorar sua imagem. É a história de um James Bond russo, um espião frio, discreto e hábil, inteiramente dedicado à Rússia, que se insere jovem na Alemanha nazista, ascende a oficial da SS sob a identidade de Max Otto von Stierlitz, manipula as rivalidades alemãs, neutraliza a diplomacia americana e facilita a entrada do Exército Vermelho em Berlim.

O livro mexeu com a imaginação de toda uma geração de soviéticos, mas em particular com a de Putin que, na virada para a adolescência, de mau aluno tornou-se bom, e se dedicou a estudar alemão. Seus colegas sonhavam ser cosmonautas. Ele, agente da KGB. Outro indício de que seu pai tinha mais contatos do que alguém como ele teria é que o menino, embora não tivesse as melhores notas, conseguiu matrícula na Universidade Estadual de Leningrado, o curso superior de excelência dali. E que, formado, foi imediatamente convidado a se juntar ao serviço secreto.

O agente na Alemanha

Em 1992, quando Vladimir Putin era assessor do prefeito de São Petersburgo e já demonstrava ambições políticas, encomendou um documentário (trecho) a seu respeito. A história que contava era a do trabalho daquele jovem burocrata para conseguir importar comida para uma cidade faminta tentando se erguer dos destroços da URSS. Mas seu objetivo com o filme era outro — queria vazar logo que havia sido agente da KGB. A informação, se tornada pública depois, poderia prejudicar sua carreira. Queria controlar o dano. Pelo jeito do jovem político, o cineasta Igor Shadkhan não resistiu. Usou no fundo, durante a confissão, o tema composto por Mikael Tariverdiev e que qualquer russo conhecia — a trilha da minissérie televisava em 12 episódios dos anos 1970 recontando a história de Stierlitz. (Trecho.) Para Putin, era a melhor ótica possível. Não era a KGB opressora, era a KGB que havia vencido a Guerra que emanava.

Anos depois, já próximo de se tornar presidente, deu uma longa entrevista que se tornou base para boa parte de suas biografias. Contou que, formado pela KGB, trabalhou em postos burocráticos de Leningrado — a passada e futura São Petersburgo — enquanto tentava conquistar o sonho de ser um agente no exterior. Quando enfim conseguiu, foi mandado para Dresden, na Alemanha Oriental. Putin fazia graça de si mesmo. Sonhava em ir para Berlim, onde estava a ação de contraespionagem pesada, foi para uma cidadezinha industrial desimportante em que boa parte do serviço era fazer clipping de jornais estrangeiros e tentar recrutar agentes entre os estudantes da universidade local.

Não há rastro documental sobre sua carreira além do fato de que ganhou uma medalha de bronze. “Até cozinheiras ganhavam essa medalha”, ele brincou na entrevista. Também não há rastro de sua carta de desligamento da KGB. E uma única informação salta aos olhos — quando se desligou da agência, estava a um ano de se aposentar. Raros agentes tinham direito de se aposentar cedo. Ele poderia antes dos 40. Algo fez para merecer. A explicação corrente é de que se desligou mesmo faltando pouco para a pensão porque a história andou, a União Soviética se desmanchou e ele queria mergulhar na vida democrática.

Dresden não era, de fato, Berlim. Mas tinha três características que faziam da cidade importante para o serviço secreto russo e para a Stasi, a polícia secreta da Alemanha comunista. A primeira é que, justamente, não era Berlim. Por isso, não havia ali tanta atividade de contraespionagem ocidental. Os agentes podiam trabalhar mais à vontade na sombra. Em segundo, era o centro do contrabando alemão. O mundo socialista havia se mostrado incapaz de avançar tecnologicamente na velocidade do mundo liberal. Mainframes e computadores pessoais eram contrabandeados para a Europa Oriental e União Soviética via Dresden, tanto as máquinas para uso pelo governo quanto os projetos furtados de como montá-las. Mas ali estava uma corrida infrutífera, mesmo copiando pareciam sempre anos atrás. Por fim, em Dresden funcionava boa parte da atividade de contrainformação. Propaganda para seduzir jovens de esquerda na Europa Ocidental que podiam se mostrar úteis, flagrantes de encontros sexuais para ser ser usados em chantagem de pessoas com alguma importância, e histórias falsificadas que poderiam ser distribuídas pela imprensa como verdadeiras, espalhando confusão nos países inimigos. A máquina de desinformação soviética voltada para a Europa funcionava em Dresden.

Putin se mudou para a cidade com sua mulher e as duas filhas muito pequenas pouco antes de Mikhail Gorbachev assumir o comando da nação. Voltou logo após a queda do Muro de Berlim, após ter supervisionado a queima de documentos. Os da Stasi sobreviveram. A KGB foi eficiente — não deixou nada relevante para ser encontrado. Àquela altura, estava em curso a Operação Luch — quer dizer ‘raio de luz’, ‘foco de luz’. Uma operação secreta da agência para garantir a continuidade de seus serviços após a dissolução, já prevista, da URSS.

É neste ambiente que voltou a São Petersburgo um jovem e idealista Vladimir Putin que, como conta, renunciou ao cargo na KGB e em semanas se achou emprego na universidade em que havia estudado. Lá, tornou-se próximo do carismático professor de Direito Anatoly Sobchak, que meses depois terminaria eleito o primeiro prefeito democrático da cidade. Putin se fez seu braço direito.

Dresden não era Berlim, São Petersburgo não era Moscou. Enquanto na capital oligarcas saíam comprando por quase nada os espólios da URSS e se tornando bilionários da noite para o dia, na segunda maior cidade do país o problema era mais comezinho e também mais evidente. Era a máfia, um novo e violento crime organizado que se formara rapidamente e controlava boa parte dos serviços públicos.

Sobchak sabia que Putin havia sido KGB. Possivelmente, muitos analistas acreditam nisso, quando ficou claro que ele seria eleito, o próprio serviço secreto ofereceu o tenente-coronel para ajuda-lo. Neste ambiente, dissimularam um desligamento da agência. O trabalho de Volodya, Vladimirzinho, seria negociar com o crime, tornar a governança possível. Na prática, entre 1992 e 96, foi Putin quem realmente governou São Petersburgo. Ao final do governo de Sobchak, a cidade não havia se tornado mais segura. Mas a máfia estava organizada, não criava confusão com a prefeitura, e ninguém tinha dúvida de quem mandava.

Sobchak não conseguiu ser reeleito — diferentemente do esperado, perdeu por 1,5% dos votos. Um escândalo de corrupção pessoal estourou dias antes do pleito, envolvendo a compra de um apartamento. Putin, conta a narrativa oficial, foi o único a nunca abandoná-lo. Não falta quem desconfie que, em verdade, ele tenha ajudado de algum jeito a promover a derrota.

Kremlin

A derrota interessava a Boris Yeltsin, que temia a rivalidade de Sobchak na eleição presidencial. Se nunca denunciou Sobchak em público, se anos depois estava presente em seu funeral, abraçado à família, também é verdade que após a derrota eleitoral Putin já tinha emprego novo. No Kremlin. Seu primeiro cargo foi como diretor do Departamento de Propriedades Estrangeiras — tudo aquilo fora da Rússia que a URSS havia deixado de legado. Dos palácios das embaixadas às bases militares ao que não estava registrado. Em sete meses tornou-se chefe de Controle. Era quem garantia que os governos provinciais seguissem as ordens do presidente. Em um ano, virou vice-chefe de gabinete. O número dois da estrutura administrativa do palácio presidencial.

Em 1997, agora claramente com a patente oficial de tenente-coronel da reserva, assumiu o comando da FSB, a sucessora da KGB. Nos dois meses seguintes, seu principal rival em São Petersburgo foi preso e a mais importante ativista democrata do país, Galina Starovoitova, foi assassinada em condições ainda hoje misteriosas.

Apesar do documentário, que teve alcance curto, Putin passou quase todo este período nas sombras. Quando 1999 entrou, ele não era um rosto conhecido dos russos. Domou, sim, a máfia de São Petersburgo — é a única ação que pode ser concretamente atribuída a ele. Mas não é claro o que mais fez para galgar tão rápido degraus dentro do Kremlin. E, como estava longe dos holofotes da imprensa, suas ações foram pouco registradas. Mais de um biógrafo entrevistou membros do grupo Família que cercava Yeltsin tentando compreender porque ele, dentre tantos, foi o escolhido.

Ele tinha exatamente o perfil que poderia inspirar confiança na população russa, uns disseram. Ele era de nossa confiança, disseram outros. Tinha pouca ambição. Seria fácil de controlar. Seria leal.

Presidente

Boris Berezovsky era um matemático, um acadêmico, quando a URSS acabou. Naquele caos, quando as máfias locais buscavam a única fábrica de automóveis do país para comprar carros baratos e revender, aproveitando-se de um gerente corrupto que embolsava o dinheiro, ele percebeu uma oportunidade. Chegou ao gerente e ofereceu para comprar a produção de mais de um ano, pagaria uma parte como adiantamento e o resto ao longo do tempo. O homem não havia percebido, mas Berezovsky sim — a inflação ia comer aquele valor nos anos seguintes. Com a fortuna que acumulou rápido, tornou-se sócio de uma das maiores companhias petroleiras do país e o principal dono do principal grupo de mídia que tinha no antigo canal de TV estatal sua estrela. Dos oligarcas que se tornaram bilionários após a implosão do mundo comunista, foi o único que se manteve fiel a Yeltsin até o fim.

Quando percebeu que as conversas no Kremlin indicavam mesmo a escolha de Putin como sucessor, tomou um avião para a França onde encontrou o diretor da FSB num modesto apartamento alugado para as férias de verão. Lá estava Volodya, apertado numa salinha com a mulher e duas filhas correndo para cá e para lá, um russo de classe média que se comportava como quem conta o dinheiro. Queria ser ele, Berezovsky, o primeiro a sondar a respeito da indicação do presidente para que virasse primeiro-ministro.

Berezovsky desejava fazer parecer a Putin que ele lhe devia esta. Saiu bem impressionado com a humildade do homem.

No Réveillon de 1999, Yeltsin surpreendeu a Rússia com um discurso (assista) em que, comovido, anunciava sua renúncia. A câmera cortou para o primeiro-ministro que assumiria como interino em seu lugar (assista). Para muitos, era a primeira vez que viam seu rosto. Um homem miúdo, ainda não totalmente confortável com a câmera, um presidente acidental.

Àquela altura, porém, Vladimir Vladimirovitch Putin havia deliberadamente construído a história pela qual seria conhecido. Na KGB, nunca teve as promoções que desejou, havia sido sempre um burocrata, um cortador de clippings. Cresceu humilde. Não desejava, nunca procurou, poder. Era só eficiente.

Mas Putin trabalhou no centro da máquina de desinformação da KGB. Não é possível afirmar que ele era um dos agentes que faziam parte da Operação Luch, mas recém-chegado da Alemanha quase instantaneamente já estava numa posição chave do segundo mais importante governo municipal do país. Sua função, na lida discreta com o problema da máfia, era tipicamente uma função de KGB. O fato de que todos no círculo de Yeltsin se mostrassem tocados pela humildade, pela falta de ambição do homem que governa a Rússia faz 22 anos, também diz muito.

Sua arte marcial é o judô. A luta do homem pequeno que usa a força do grande para derrotá-lo. Não é uma metáfora vazia — Putin pensa sobre isso. Escreveu livros sobre judô.

A visão

Em agosto de 2000, quando Putin estava recém-eleito presidente — agora não mais interino —, afundou no Mar de Barents um submarino nuclear russo. O Kursk. O governo britânico e o norueguês ofereceram ajuda para o resgate, o Kremlin recusou. O presidente estava de férias, enquanto atrapalhada a Marinha tentava descobrir como lidar com a crise. A imprensa, incluindo o Canal Um de Berezovsky, passou a fazer uma cobertura pesada do país em comoção. E o governo paralisado. Putin demorou cinco dias para voltar ao Kremlin e, enfim, visitar o porto onde estavam as famílias. Foi um desastre de relações públicas.

Após discursar para as famílias dos marinheiros desesperados, falando às câmeras e aparentando completa indiferença com quem sofria ali na sua frente, o presidente ficou furioso com a cobertura do canal de seu aliado. Sergei Dorenko, na época o mais popular âncora do país, conta ter recebido um telefone de Putin em ira. Ele o acusava, convicto, de que a TV havia contratado prostitutas para que se fizessem passar pelas viúvas dos homens mortos.

Para o presidente, Dorenko entendeu ali, é quase como se não houvesse realidade, como se tudo fosse um teatro que o mais competente construía para fisgar o público. Berezovsky achou que controlaria Putin. Terminou sem seu canal de TV e exilado em Londres.

Em 2003, outro oligarca, Mikhail Khodorkovsky, desafiou o presidente. Era o homem mais rico do país, dono da maior companhia petroleira. Foi preso em 2004 acusado de corrupção. Obrigado a vender sua empresa. Após anos na cadeia, partiu para o exílio em 2013.

Aquilo que Putin havia feito com a máfia de São Petersburgo, ele fez em maior escala com os homens que enriqueceram nos espólios da URSS. Hoje, os oligarcas sabem quem manda. A liberdade de imprensa que havia existido no país foi lentamente se desfazendo. O governo dita a maneira como as histórias são contadas.

Em finais dos anos 1980, quando ficou claro que a URSS iria se desmanchar, um grupo de agentes da KGB iniciou uma operação para se sustentar após o fim, penetrar na estrutura do novo regime e reconstruir o império.

Stierlitz, o agente da ficção que por anos fez-se passar por alemão e discreto ascendeu na hierarquia da SS para enfim permitir a tomada de Berlim pelo Exército Vermelho não é só um personagem fictício. É uma operação de propaganda, construída nos anos 1960 após a denúncia dos crimes de Josef Stálin, para recuperar a imagem da KGB. A série de TV foi filmada com agentes de inteligência nos sets acompanhando a construção das cenas para garantir que o livro iria para a tela com o mesmo objetivo. Foi uma operação de propaganda oficial que produziu o mais popular programa de televisão da história da URSS, uma minissérie retransmitida anualmente até o colapso do regime, ainda hoje referência pop para uma geração que chega aos 70.

O comunismo, em verdade, é irrelevante. O que importa é a visão da Rússia grande. Uma visão que é contada como uma história por quem sabe construir histórias no corredor de espelhos onde a realidade se perde. Stierlitz vive.

Este perfil teve por base três livros e uma série em podcast. São Putin’s People, de Catherine Belton; The Man Without a Face, The Unlikely Rise of Vladimir Putin, de Masha Gessen; Putin’s World, de Angela Stent; e o podcast Putin, Prisoner of Power, de Misha Glenny.

A quase Guerra Nuclear de 1983

Ainda era começo de novembro. Este, como qualquer outro, mas em 1983. Portanto, diferente. Em meio à Guerra Fria, naquele mês, uma série de incidentes escalou ao ponto máximo as tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética — o que colocou a humanidade, entre os dias 2 e 11, à beira de uma guerra nuclear.

Como todos os anos, no início de novembro, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) tirou do papel os exercícios militares Able Archer. A simulação, considerada prática de rotina no Ocidente, consistia em ensaiar a resposta a uma hipotética invasão soviética na Europa Ocidental. Mas não uma reação a qualquer invasão. Estes exercícios militares praticavam a resposta a uma suposta investida soviética tão grave ao ponto de demandar da OTAN que disparasse um ataque nuclear contra as forças da URSS e do Pacto de Varsóvia.

Desta vez, no entanto, os exercícios de Able Archer acenderam o alerta entre as Forças Soviéticas. Acreditando ser a preparação de uma guerra de verdade, o chefe da Força Aérea, Pavel Kutakhov, ordenou que as armas nucleares fossem preparadas para uso a qualquer momento. Na antiga Alemanha Oriental e na Polônia comunista, um esquadrão de caça-bombardeiro Sukhoi-17 de cada regimento recebeu ordens de carregar bombas nucleares táticas. Secretamente, também foram suspensos os voos de rotina de todas as unidades do bloco comunista, uma vez que estes aviões foram levados a solo com o intuito de serem preparados para o combate real. Tanto as aeronaves quanto os navios foram colocados no estado de “prontidão 3”, pela qual deveriam permanecer em alerta 24 horas por dia para, a partir de uma ordem, destruir os alvos inimigos dentro de 30 minutos.

Toda a movimentação soviética ocorreu fora dos olhos norte-americanos, concentrados na Able Archer. Até que, no dia 9, a NSA, uma das agências de inteligência em Washington, avisou o comando da Força Aérea dos Estados Unidos que, com problemas de peso e equilíbrio, um esquadrão soviético na Alemanha Oriental havia sido autorizado a dispensar o uso de uma cápsula de segurança nas aeronaves. A situação foi detalhada em um relatório posterior ao período, preparado em 1989 pelo general norte-americano Leonard H. Perroots, um dos principais oficiais de inteligência do comando da Força Aérea dos EUA durante a simulação. No documento, ele registra que, diante do aviso da Agência de Segurança, os analistas aéreos detectaram que o problema de peso e equilíbrio “significava que pelo menos esse esquadrão em particular estava carregando uma configuração de munições que nunca havia carregado antes, isto é, uma carga de guerra”. Ao comunicar o evento atípico ao superior, o General Billy Minter, então comandante da Força Aérea dos EUA na Europa, Perroots recebeu como resposta um questionamento: o país deveria reagir aos movimentos soviéticos?

Com armas nucleares a postos para destruir sua nação, Perroots foi frio. Quando a Guerra Fria atingiu seu ápice de temperatura, ele decidiu não responder à ofensiva de forma imediata. “Eu disse ao General Billy Minter que monitoraríamos a situação com cuidado, mas que não havia evidências suficientes para justificar o aumento do nosso estado de alerta”, registrou no relatório. A falta de conhecimento norte-americano a respeito da organização soviética pode ter adiado o fim do mundo. Ou, ao menos, adiado a Terceira Guerra, já que Perroots analisou no relatório de 89 que “se eu soubesse do que descobri depois, não tenho certeza de que conselho teria dado”. Após a simulação de Able Archer ser concluída normalmente, novas informações revelaram aos EUA a verdadeira gravidade da resposta militar preparada pelos soviéticos.

Uma corrida por justiça racial

Não é novidade que praticar exercícios físicos melhora a qualidade de vida. A prática regular da corrida, por exemplo, previne doenças cardiovasculares e ajuda até a memória. Aos 25 anos, Ahmaud Arbery, um ex-jogador de futebol no Brunswick High, era com frequência visto correndo ali pela comunidade de Satilla Shores, um bairro suburbano da cidade onde morava, no estado da Geórgia. Foi assassinado.

Porque estava correndo na rua e era negro, foi assassinado.

Esta foi a conclusão do júri que condenou por homicídio Travis McMichael, Gregory McMichael e William Bryan. Culpados por crime de ódio. Os jurados no tribunal federal consideraram os três responsáveis pelos crimes de uso de força e ameaça para intimidar e interferir no direito de Ahmaud utilizar a rua para correr por causa de sua raça, tentativa de sequestro e, no caso dos McMichael, contravenção no uso de armas.

É a primeira condenação baseada em raça desde os casos mais emblemáticos contra pessoas negras, que geraram protestos dentro e fora dos Estados Unidos em 2020, como os casos de Breonna Taylor, em Louisville, e George Floyd, em Minneapolis. Aliás, três ex-policiais que viram o policial assassinando Floyd e não fizeram nada para impedi-lo foram considerados culpados nesta quinta-feira, 24, em outro tribunal federal por “indiferença deliberada” às necessidades do homem negro sendo sufocado pelo joelho do policial branco.

As condenações também representam uma vitória do governo Biden, que prometeu tratar crimes de ódio com mais rigor.

Após a comoção social que envolveu o assassinato de Ahmaud Arbery, uma lei estadual na Geórgia contra crimes de ódio foi aprovada com o apoio de democratas e republicanos e sancionada pelo governador Brian Kemp. A nova lei permite que as penas sejam maiores para crimes motivados por raça, cor, religião, gênero, orientação sexual, nacionalidade ou deficiência da vítima.

O assassinato do ex-atleta

Arbery foi morto a tiros, enquanto corria pelo bairro após ser perseguido por três homens brancos armados, pouco depois das 13h do dia 23 de fevereiro de 2020. Perdeu a vida com dois tiros que o atingiram no peito disparados por Travis McMichael, em companhia de seu pai Gregory McMichael e de seu vizinho William Bryan.

Gregory disse à polícia que Arbery parecia com um homem suspeito de vários arrombamentos na área, mas um jornal local apurou com registros públicos que só houve um roubo no bairro desde janeiro daquele ano. Uma arma furtada da caminhonete destrancada e estacionada em frente à casa de Travis.

Até o caso ir a julgamento, dois promotores se declararam impedidos de participar do processo, pois tinham algum nível de contato com os acusados. O segundo promotor, George E. Barnhill, chegou a dizer que não tinha motivos para prender os McMichael, pois entendia que os dois teriam agido dentro das leis de prisão e autodefesa da Geórgia. Barnhill somente pediu para sair do caso após muita pressão da família de Arbery.

Os promotores apresentaram uma acusação de assassinato para os três somente após uma rede de rádio local divulgar um vídeo que mostrava Ahmaud sendo morto. Naquele momento, a denúncia não tinha foco racial. Este só tomou forma no julgamento federal desta semana.

A primeira condenação

Travis e Gregory foram presos por homicídio e agressão agravada em 7 de maio, na véspera do aniversário dos 26 anos que Arbery completaria. Foi quando começou a pressão social por justiça, com a hashtag #IRunWithMaud sendo compartilhada milhares de vezes por pessoas postando fotos de suas corridas ao ar livre. Dias depois, Joyette M. Holmes, a primeira afro-americana a ocupar o cargo de promotora no condado, assumiu o caso.

Em 24 de novembro, no tribunal estadual, um júri considerou o trio branco culpado por assassinato, além de outras acusações. Os jurados concordaram que Arbery não representava nenhum risco contra aqueles homens e que eles não teriam motivos para acreditar que o ex-atleta havia cometido algum crime. Os McMichael e Bryan foram condenados à prisão perpétua, mas Bryan poderá ter liberdade condicional após 30 anos. No julgamento, o júri era composto por oito brancos, três negros e um hispânico.

Viés racista do crime

Durante o julgamento na segunda instância, para demonstrar que os autores do crime tinham comportamentos racistas, uma promotora federal leu uma lista de ofensas que os réus usaram em conversas e comentários em redes sociais para se referirem a negros, como “selvagens subumanos”, “macacos” e “nigga” — os americanos a chamam de “palavra com n” pelo pesado teor racista. Bryan havia repreendido sua filha por namorar um negro dias antes de participar da perseguição a Ahmaud com seus vizinhos.

Os promotores conseguiram demonstrar ao júri que o preconceito racial daqueles homens brancos ajudava a explicar como um jovem negro correndo poderia ser interpretado como um potencial criminoso e que a decisão de perseguí-lo sem justificativa passava pelo viés racial.

Após o julgamento, o procurador-geral Merrick Garland fez uma reflexão sobre os ataques racistas nos Estados Unidos. “Ao longo de nossa história e até hoje, os crimes de ódio têm um impacto singular por causa do terror e do medo que infligem a comunidades inteiras.”

No Brasil não é muito diferente. Por aqui temos os nossos próprios Ahmauds Arberys. São pessoas como Durval Teófilo Filho, um homem negro de 38 anos, que foi morto pelo vizinho, um sargento da Marinha, que o teria confundido com um bandido. Durval estava desarmado, quando chegava em seu condomínio em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Mesmo tendo avisado que era morador, ele recebeu dois tiros, quando já estava caído após receber um primeiro disparo. Luziane, sua mulher, acredita que o crime tenha sido motivado por racismo. Por enquanto, a Justiça só converteu o homicídio, de culposo para doloso, quando há intenção de matar.

As evangélicas pelo direito ao aborto

Na última segunda-feira (21), a Corte Constitucional da Colômbia decretou a descriminalização do aborto, caso seja feito até a 24ª semana de gestação. Até então, o procedimento só era legal em casos de estupro, se a saúde da mãe estivesse em risco ou quando o feto apresentasse uma má-formação que comprometesse sua sobrevivência. Exatamente como na lei brasileira. A partir de agora, as mulheres poderão decidir se querem prosseguir com a gravidez, ou não. Caso escolham interromper, não serão punidas.

O país tornou-se então o quinto da América Latina a flexibilizar o acesso ao aborto. É a “Maré Verde”, movimento de feministas que lutam pelo direito ao aborto legal e seguro. O procedimento já é legalizado na Argentina, Uruguai, Cuba, Guiana e no México, onde é permitido até a 12ª semana, em algumas regiões. É uma decisão histórica em um país de maioria católica.

Talvez soe estranho num país em que o cristianismo é tão forte. Até 80% dos colombianos se declaram católicos mas lá, como cá, há um movimento de mulheres religiosas que se juntaram às feministas — são as Católicas pelo Direito de Decidir. No Brasil, porém, as muitas igrejas evangélicas são tão importantes quanto a Católica. Mas elas não estão de fora. O Meio conversou com Camila Mantovani, de 27 anos, Diretora de campanhas e uma das fundadoras da FEPLA. A Frente Evangélica pela Legalização do Aborto.

Como a FEPLA surgiu?

O movimento teve início durante o processo de protocolar a ADPF 442, no STF. Algumas mulheres evangélicas, que estavam em diferentes coletivos feministas, se depararam com as argumentações fundamentalistas contra a arguição. A partir desse momento, sentimos a necessidade de criar um espaço de mulheres evangélicas para acolhimento de outras mulheres evangélicas, em situação de abortamento. E também para contrapor a narrativa fundamentalista sobre a questão.

Como foi o seu processo de se entender a favor da descriminalização do aborto enquanto cristã?

Eu já fazia parte de uma igreja progressista que foi uma das signatárias, como amicus curiae, da ADPF favorável à descriminalização. Tive a sorte de ter a minha comunidade de fé apoiando.

Qual o papel da Igreja na descriminalização do aborto?

O cristianismo no Brasil mobiliza muita gente. A Igreja precisa decidir de que lado está. O lado dos conservadores, legalistas que não se importam com a vida, ou do lado daquelas e daqueles que querem garantir vida em abundância, para que nenhuma mulher morra por conta de um abortamento inseguro.

Você acha que após a Colômbia o Brasil dá um passo a mais nessa direção?

O Brasil de Bolsonaro não vai dar nenhum passo à frente com esse debate. Mas, com toda certeza, cada país latino que consegue garantir esse direito tão básico à vida e à dignidade das mulheres, representa um sopro a mais de esperança na luta dos tantos movimentos que resistem aqui.

E os mais clicados de uma semana um tanto tensa:

1. Youtube: Jato invade a área da pista com avião da GOL a instantes do pouso.

2. g1: Brasileira que é a primeira imigrante e mulher negra eleita Miss Alemanha.

3. UOL: A curiosa coleção de fotos de apreensão de drogas no Brasil.

4. NY Times: Zelenski diz que sabotadores já estão em Kiev e ele é o alvo principal de Moscou.

5. CNN: Russia ataca a Ucrânia.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A política da vingança
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk
Edição de Sábado: Eu, tu, eles
Edição de Sábado: Condenados a repetir
Edição de Sábado: Nísia na mira

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)