Edição de Sábado: Golpe ou Revolução? A Ucrânia em 2014

Na madrugada de 30 de novembro, um sábado em 2013, a temperatura se aproximava do zero grau na Praça da Independência, centro de Kiev. Desde a tarde anterior, aproximadamente dez mil pessoas se concentravam ali em protestos que pareciam querer se ampliar. O primeiro, ainda miúdo, havia sido no dia 21. No dia 24, 200 mil pessoas chegaram a ocupar a rua com faixas e bandeiras, incentivando a ex-premiê Yulia Tymoshenko, presa acusada de corrupção, a iniciar uma greve de fome em apoio. Mas o governo parecia decidido a não permitir que a manifestação alcançasse seu décimo dia. Eram 4h, havia poucas luzes na rua, quando começaram a desembarcar dos caminhões os homens da Berkut. A tropa de choque da polícia federal, com seus uniformes em camuflagem azul e cinza, coletes negros à prova de balas, balaclavas cobrindo o rosto, capacetes de grau militar, no ombro a insígnia da águia dourada. Escudos. E, nas mãos, cassetetes de ferro. Os quase 300 policiais então avançaram.

Uma investigação parlamentar feita muitos anos depois concluiu que a Berkut tinha ordens do próprio presidente Viktor Yanukovych para agir com violência. Em exílio na Rússia, Yanukovych nega. Acusa o então ministro do Interior, Vitali Zakharchenko, de ter dado a ordem sem que ele soubesse. Mas lá, naquela madrugada fria de sábado, a neve caindo em flocos miúdos que deixavam o chão escorregadio, a polícia alegou ter sido provocada. Um grupo de vinte ou trinta jovens, desconhecidos pelos líderes dos manifestantes, incitou os policiais. Jogou bombinhas contra eles. De acordo com a investigação, eram provavelmente agentes da própria polícia postos lá com a missão de oferecer uma desculpa. Agentes provocadores.

Naquele 29 de novembro, Yanukovych não estava em Kiev. Passou a noite em Vilnius, capital da vizinha Lituânia, onde deveria ter assinado um acordo formalizando a entrada num mercado comum com a União Europeia. Não seria, ainda, a junção em definitivo da Ucrânia com a EU — para isso, ainda faltava. Mas as tarifas alfandegárias seriam derrubadas deixando as fronteiras comerciais abertas. Tudo parecia certo. Aí Yanukovych não assinou o papel. Argumentou que um compromisso particularmente duro feito com o Fundo Monetário Internacional (FMI) nos meses anteriores havia forçado o governo a fazer cortes orçamentários grandes. A atividade industrial estava parada. Uma crise econômica se avizinhava. O acordo comercial, ele argumentou, quebraria a Ucrânia. E um plano melhor existia — era outro acordo comercial, a União Alfandegária que já incluía Belarus, Cazaquistão e Rússia. Um tratado que, uma vez assinado, traria também um vultuoso investimento por parte de Moscou.

A população não rejeitava o acordo alfandegário com os russos. Uma pesquisa encomendada em outubro pela alemã Deutsche Welle indicou que 48% gostavam da ideia e 36% a rejeitavam. Ocorre que os ucranianos não viam os dois tratados como excludentes: 50% queriam abrir suas fronteiras para a Europa, 33% eram contra.

Apenas alguns meses depois, em maio de 2014, a CNN perguntou aos ucranianos a quem se sentiam mais leais: 56% responderam que era à Europa. Apenas 19% à Rússia. Àquela altura, uma revolução já havia deixado sua marca na história do país.

A Anistia Internacional condenou com rispidez a ação da Berkut naquela madrugada. “Ao escolher dispersar a demonstração com violência”, afirmou num comunicado, “as autoridades ucranianas violam os valores aos quais dizem aspirar.” A liberdade de assembleia, essencial em qualquer regime democrático, estava sob ameaça. Pessoas corriam para todos os lados, os policiais atrás descendo os cassetetes de metal, jogando bombas de dispersão, na TV as imagens de rostos encharcados de sangue eram exibidas. Quando o dia amanheceu, a crise não havia acabado. Aproximadamente 50 manifestantes se refugiaram no Mosteiro de São Miguel das Cúpulas Douradas, um conjunto de prédios medievais que remonta aos tempos de Bizâncio, não longe da praça. A polícia os cercou — e a tensão se manteve por horas.

Eles pretendiam voltar à Praça da Independência. À Maidan Nezalezhnosti, o nome ucraniano. Ou, como é conhecida faz séculos em Kiev, à Maidan. A palavra persa para praça, que a língua ucraniana tomou emprestada, na capital do país virou apelido, quase nome próprio. Há muitas praças, mas a Praça, a Maidan, é uma só. Desde o primeiro dia, os encontros eram convocados pelo Twitter com uma hashtag — #euromaidan. Euro, de Europa. E Maidan. O objetivo era pressionar o governo a assinar o acordo.

Quando não foi assinado, quando a polícia desceu com fúria, tudo mudou.

Rumo à Europa

No início, a maior parte daqueles envolvidos no protesto era formada por estudantes universitários. O acordo sobre tarifas alfandegárias não se restringia ao comércio. Exigia também do governo ucraniano uma série de mudanças que levariam à entrada do país na UE e até a adoção do euro como moeda. Para universitários, a perspectiva de fazer parte da União Europeia abria as portas para seu futuro, para um número maior de empregos no continente, talvez a perspectiva de crescimento econômico do país.

Como ocorre com todos os movimentos nascidos das redes sociais entre finais da primeira e início da segunda décadas do século 21, há uma imensa disputa de significado. Quem estava lá, quem não estava, qual o objetivo, quem interferiu — se alguém manipulou. Para algumas destas perguntas há respostas que estão além da propaganda política. A cientista política ucraniana Olga Onuch, da Universidade de Manchester, e sua colega britânica Gwendolyn Sasse, de Oxford, entrevistaram inúmeros participantes dos protestos, dia após dia, entre novembro e janeiro. Ao todo, preencheram questionários mais de 1.200 pessoas. Depois, foram atrás de quem participou para conversas mais extensas em grupos de foco. Deste material saiu um longo estudo.

Tradicionalmente, a ciência política divide o comportamento eleitoral no país entre a banda Ocidental e a Oriental. O primeiro grupo, aproximadamente metade da população, fala principalmente ucraniano e tende a se identificar mais com a Europa. O segundo, que fala russo e se identifica com o país vizinho, tende a ser mais conservador. Mas não foi isso que Onuch e Sasse encontraram na Maidan. Embora, sim, como seria natural em Kiev, 83% disseram ter ucraniano como sua língua materna, a maioria também logo se queixava da pergunta. Intuía nela, as cientistas perceberam, a busca por uma divisão que os manifestantes não reconheciam. Na praça, durante os quatro meses de protestos da Euromaidan, a língua franca, que todos falavam no dia a dia por terem decidido que incluiria mais gente, era o russo. O normal, no país, é que as pessoas sejam bilíngues.

As duas professoras também mapearam as diversas fases dos protestos. Nos primeiros dias, quando ainda eram poucos os manifestantes, a organização coube a coletivos cívicos diversos da sociedade. Quando as ruas encheram mesmo, pela primeira vez, em 24 de novembro de 2013, foi porque os líderes dos partidos políticos de oposição chamaram o povo às ruas. Aquele dia tinha também duplo significado. É quando a Ucrânia lembra o Holodomor, o período de fome imposto pela União Soviética de Josef Stalin entre 1932 e 33, que matou milhões de pessoas. É, naturalmente, um dia de antipatia com a Rússia. Era, também, o nono aniversário do início da Revolução Laranja.

Viktor Yanukovych havia vencido pela primeira vez uma eleição presidencial em novembro de 2004. Uma eleição que, imediatamente, foi acusada de ser fraudada. Seu oponente no segundo turno, Viktor Yushchenko, havia sido envenenado numa tentativa de assassinato que deixou seu rosto deformado durante a campanha eleitoral. Os protestos levaram à anulação do pleito e uma nova urna, em dezembro. Yushchenko foi eleito com mais de 60% dos votos. Nos anos seguintes, os principais líderes da Revolução Laranja se desentenderam e, da divisão, Yanukovych terminou enfim chegando à presidência para um mandato que se iniciou em 2010 e terminaria em 2014.

Até aquele 30 de novembro em que a Berkut desceu o cassetete sobre os manifestantes, a Maidan não estava consolidada. Os grupos convocados pelos movimentos sociais olhavam com desconfiança quem vinha chamado por políticos. Havia disputa pela liderança, com alguns parlamentares tentando se aproveitar da situação. Com a desistência de Yanukovych de assinar o acordo com a União Europeia, o estado na praça era de desânimo. Segundo as pesquisadoras, a tendência era o movimento morrer em um dia ou dois.

O presidente, que em sua carreira jamais escondeu a simpatia por Moscou, era popular. As pesquisas, consistentemente, punham seus índices de aprovação acima da média dos antecessores. Ocorre que, mesmo no flanco Oriental do país, a ideia de se aproximar da União Europeia era igualmente popular. O que os números mostravam é que os ucranianos não queriam ter de escolher entre estarem próximos da Rússia ou da UE. Queriam os dois. A divisão, a disputa por dois lados, vinha mais dos políticos que da sociedade. Vinha, também, da pressão de Moscou. O presidente russo, Vladimir Putin, compreendia que a Ucrânia estava escorregando daquilo que considerava sua esfera de influência. Pressionou politicamente seu aliado, o presidente ucraniano. E ofereceu um pacote de dinheiro que, a Yanukovych, pareceu compensar o atrito político que causaria não assinando com a UE. Com aprovação popular e dinheiro para levantar a economia no último ano de mandato, enfrentaria alguns meses difíceis nas pesquisas mas logo se recuperaria, pavimentando o caminho para a reeleição.

A violência da Berkut na madrugada de 30 de janeiro e o cerco pela polícia de um mosteiro medieval que é uma pequena joia bizantina renderam imagens que chocaram o país. Em primeiro de dezembro, entre 400 e 800 mil pessoas ocuparam a Maidan. Yanukovych devia ter deixado o movimento morrer. Ao invés disso, o inflamou.

A ideologia do movimento

Um dos argumentos de Vladimir Putin para a invasão da Ucrânia, pouco mais de uma semana atrás, foi a ‘denazificação’ do país. Putin se refere, particularmente, ao Batalhão Azov, e muito do debate liga este grupo paramilitar à Euromaidan. Ironicamente, porém, o Azov nasceu por ordem do governo Yanukovych.

Um movimento separatista, financiado pela Rússia, começava já a pressionar o governo em dois estados do país — Kharkiv e Donetsk. Por iniciativa do Ministério do Interior, foi autorizada no início de 2013 a criação de forças paramilitares, que seriam compostas por voluntários equipados e treinados pelo governo e que receberiam um salário. Só quem se propôs a organizar um destes batalhões semiprivados foi um supremacista branco chamado Andri Biletsky, líder do partido nanico Patriotas da Ucrânia. O grupo nega ser neonazista, mas está envolvido em ataques xenófobos, principalmente contra o povo cigano, e usa tanto a suástica quanto a insígnia da SS nazista em seu uniforme. O Azov não tomou parte da Euromaidan, mas um dos líderes da Euromaidan foi por um período membro do Azov.

Como em todos estes grandes movimentos sociais difusos que nascem das redes, é difícil classificar ideologicamente com clareza a Euromaidan. De acordo com a pesquisa de Onuch e Sasse, menos de 30% das pessoas que tomaram parte nos protestos tinham algum tipo de envolvimento político prévio, fosse com movimentos sociais ou com partidos. Elas não conseguiram detectar nenhuma simpatia partidária clara. A divisão que conseguiram fazer com mais propriedade não era ideológica mas sim pelas pautas com que grupos de faixas etárias distintas alegavam se preocupar. A média de idade dos manifestantes era de 36 anos; os homens, uma ligeira maioria — 59% dos entrevistados. Dentre os jovens, os universitários, a principal pauta era a inclusão da Ucrânia na União Europeia. No público entre 30 e 50, o foco mudava — segurança econômica e fim da corrupção. Subornos em troca de serviços públicos são comuns no país e, para os adultos que precisam interagir com o Estado, é exasperante. Os mais velhos, que não eram poucos, falavam de responsabilidade cívica, de estar lá em solidariedade com os estudantes. Que estavam lá pelo futuro.

Na opinião das duas cientistas políticas, o traço comum aos três cortes era de busca por uma democracia mais forte, estável, percebida tanto como desejável como, também, o caminho necessário para a junção com a Europa.

Internacionalmente, a percepção dos protestos, tanto por Moscou quanto pela esquerda institucional, foi diferente. No Kremlin, a desconfiança com mobilizações populares que saem do controle é uma obsessão particular de Putin desde os primeiros anos do século, quando aconteceram na Ucrânia e na Geórgia as duas revoluções das cores. Na Rússia, ele não permite que manifestações ganhem corpo jamais. O caso da Euromaidan, porque surgiu quando a Ucrânia assinou um acordo de cooperação com a Rússia ao invés da Europa, em Moscou é visto como um levante inimigo. E é ligado ao Batalhão Azov, que nasceu no mesmo momento e desde então combate os separatistas pró-Rússia, como parte de um mesmo fenômeno político.

A revista Jacobin dá a linha pela qual a Euromaidan é percebida pela esquerda internacional. A publicação, que nos EUA se coloca à esquerda do Partido Democrata, vê os protestos de 2013 e 14 como um levante de extrema-direita financiado pelos Estados Unidos. “Em resposta à brutal ação policial”, avaliaram os editores, “os manifestantes começaram a lutar com correntes, paus, pedras, coquetéis molotovs e até uma serra elétrica, culminando com armas de fogo na batalha de fevereiro que deixou treze policiais e 50 manifestantes mortos.” Para a revista, houve uma virada entre dezembro e janeiro, na Euromaidan. “O que tornou os protestos mais violentos foi a extrema-direita ucraniana que, embora fosse minoria dentre os manifestantes, serviu como vanguarda revolucionária.”

A partir de janeiro, o governo de Viktor Yanukovych começou a usar mais e mais violência. Os cassetetes de ferro, que já provocavam ferimentos graves, foram substituídos por armas com balas de borracha e, nos últimos dias, balas de verdade. No parlamento, uma aliança se formou entre o Partido das Regiões de Yanukovych, pró-Rússia, e o Partido Comunista Ucraniano, saudosista da União Soviética. No dia 16, num voto por aclamação em que não se permitiu a contagem exata de que deputados eram a favor e quais eram contra, aprovou-se um pacote que terminou apelidado de Leis da Ditadura. Foi dada anistia para crimes da Berkut, permitido o julgamento sumário de manifestantes sem sua presença, ofensas a políticos em redes sociais foram criminalizadas. Proibidos os usos de máscaras e capacetes nas ruas, assim como o de barracas nas praças. A censura à imprensa foi instalada.

Quanto mais violenta era a polícia, quanto maior a opressão imposta pelo governo, mais gente ia para as ruas. Àquela altura, a Maidan havia se tornado um acampamento ao ar livre. Discursos eram feitos dia e noite. E a cada confronto com a Berkut, conforme pessoas começaram a morrer, maior era resolução de quem ficava. Após as Leis da Ditadura serem promulgadas, a Maidan amanheceu com ucranianos vestindo toda sorte de panelas na cabeça e máscaras de carnaval no rosto, ironizando com sarcasmo a proibição de máscaras e capacetes. “A extrema-direita não estava nem aí para a democracia”, escrevem os editores da Jacobin. “Tampouco tinha qualquer interesse pela União Europeia. O que ela viu no levante popular foi uma oportunidade.”

O que a Jacobin não faz, em momento algum, é chamar a Euromaidan de um golpe de Estado. Ali houve uma revolução popular, e este é o consenso de quem a estudou, dos críticos russos, passando pelos críticos de esquerda, como também aos que veem o movimento com bons olhos. Uma revolução: insurreição que nasce espontaneamente da sociedade e culmina com a destituição de um governo. Grupos americanos, principalmente organizações não-governamentais de incentivo à democratização, financiaram ativamente algumas das entidades democráticas que trabalharam pela Euromaidan. Como há comunicação entre estas ONGs e a diplomacia dos EUA, a suspeita de interferência americana é inevitavelmente levantada. E o vazamento de uma ligação telefônica da vice-secretária de Estado Victoria Nuland com quem parece ser o embaixador dos EUA no país, Geoffrey Pyat, reforça a impressão. Os dois discutem quem governaria a Ucrânia após a queda de Yanukovych, que previam iminente.

O vazamento de uma ligação telefônica da vice-secretária de Estado Victoria Nuland com quem parece ser o embaixador dos EUA no país, Geoffrey Pyat, reforça a impressão. Os dois discutem quem governaria a Ucrânia após a queda de Yanukovych, que previam iminente. “Não acho que seria boa ideia”, comenta Nuland a respeito da possibilidade de um dos líderes da oposição, Vitaly Klitschko, assumir o poder. “Mas Yats é um cara que tem a experiência econômica necessária”, ela seguiu, tratando com familiaridade outro líder, Arseni Yatseniuk. Oficialmente, Washington tratou como uma conversa puramente especulativa. Não faltou quem visse, ali, intromissão real, como se americanos estivessem decidindo quem mandaria num país estrangeiro. “Foda-se a UE”, ela diz em outro ponto da conversa, sugerindo que havia cautela excessiva pela diplomacia europeia.

No dia 18 de fevereiro, vinte mil ativistas avançaram da Maidan para a sede do parlamento, e a Berkut respondeu com tiros de verdade. Naquele dia, 36 pessoas morreram, dentre elas dez policiais. Foi o dia mais violento de um levante que se aproximava de completar quatro meses. Ali, a crise chegou a seu ponto máximo. O ministro das Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, aterrissou em Kiev no dia seguinte alegando que vinha ter certeza de que a segurança na embaixada do país estava garantida. O presidente ainda decretou luto oficial pelos mortos, tentando se equilibrar no poder. Mas os parlamentares anunciaram que começariam a votação de abertura dum processo de impeachment. Sua popularidade havia despencado.

Em 22 de fevereiro, durante a madrugada, Viktor Yanukovych entrou num helicóptero e só reapareceu ao chegar ao exílio, em Moscou.

Desde então

Aproveitando-se do caos, sob o argumento de que um movimento nazista derrubara o presidente legítimo, Vladimir Putin ordenou a invasão da Crimeia, um estado do país, para, segundo ele, proteger a população em verdade russa. Os soldados invadiram o território no mesmo 22 de fevereiro e já o haviam conquistado em 23. Foi uma operação rápida. Um referendo foi convocado em março — os eleitores puderam escolher entre ter a região anexada à Rússia ou declarada independente. Quase 97% votaram para ter Putin como presidente. Nenhuma organização independente reconhece a legitimidade do plebiscito.

No dia 25 de maio de 2014, Petro Poroshenko, um bilionário dono de um dos principais canais de televisão do país, foi eleito novo presidente da Ucrânia no primeiro turno, com 54% dos votos. Seu nome sequer aparecia na conversa entre diplomatas americanos — a Ucrânia que imaginavam não se concretizou. E Poroshenko não conseguiu se reeleger. Em 2019, perdeu no segundo turno para o ator popular Volodymyr Zelenski, que levou 73% dos votos.

O bem-estar da não maternidade: a busca da geração NoMo

Baseado no livro de Elena Ferrante, A Filha Perdida (2021) traz um retrato nada romântico da exaustiva função de criar filhos. Porém, as reflexões do filme de Maggie Gyllenhaal, que concorre ao Oscar em três categorias, transbordam a ambivalência da maternidade. É sobre renúncias. É sobre o mito do amor materno. É sobre a indigesta dualidade das escolhas femininas.

A protagonista Leda - uma professora universitária de 48 anos, divorciada e de férias na Grécia - despertou sentimentos antagônicos no público. Em uma das cenas ela responde aos prantos e sorrisos um questionamento sobre a decisão de se afastar das filhas por três anos para se dedicar à carreira acadêmica e a uma aventura amorosa.

Leda: Fui embora por três anos.

Nina: E como você se sentiu?

Leda: Me senti maravilhosa.

Com uma frase, Leda falou por uma legião - agora não tão silenciosa assim, graças às redes sociais - de mulheres que decidiram não procriar, sem ceder a paradigmas.

Para a psicanalista Regina Navarro Lins, é fundamental que as pessoas reflitam sobre as crenças assimiladas para ter condições de fazer escolhas mais livres. “A rejeição aos modelos tradicionais de comportamento permite que se perceba com mais clareza os próprios desejos, apesar do condicionamento cultural tão forte desde cedo. Ter ou não filhos passa a ser uma opção individual, longe da cobrança de corresponder às expectativas criadas para a mulher”, resume.

Isso quer dizer ter liberdade para assumir não querer ter filhos sem ouvir ladainhas como: “Uma mulher só se sente completa depois de ser mãe”, “Quem vai cuidar de você na velhice?”, “Gerar um filho é uma benção”, ou o fatídico “Você não vai me dar netos?”.  Pausa para o emoji de olhos revirados para cima.

Mulheres sem filhos ainda são frequentemente estigmatizadas, e a perpetuação desses preconceitos pode provocar sentimentos de exclusão e anormalidade. “A pressão é tanta que é raro encontrar uma mulher com mais de 35 anos que, não tendo filhos, esteja tranquila quanto à possibilidade de nunca vir a ser mãe”, destaca a psicanalista.

A advogada Patricia Marxs, criadora do perfil no Instagram @laqueadurasemfilhossim, narra momentos em que se sentiu hostilizada: “Já escutei que eu iria morrer sozinha, que filho em um casamento era uma comprovação de amor entre o casal. Colocações como essas me causaram danos emocionais; se eu não tivesse apoio terapêutico, talvez tivesse acreditado nessas frases e engravidado sem que eu realmente quisesse”.

A jornalista Flávia Lima diz ter conseguido tomar a decisão racional de privilegiar a carreira e conta que a parte mais difícil sempre foi conseguir engolir a torta de climão dos domingos em família. “Essas perguntinhas idiotas da família me enervaram em discussões. Eu sempre fui considerada rebelde, mas no meu grupo de amigas não tem essa pressão entre a gente, porque a decisão da outra de não ter filhos é respeitada”, explica.

Ela faz parte de uma estatística crescente, segundo pesquisadores. Dados de 2019 já sinalizavam que, no Brasil, 37% das mulheres em idade fértil não queriam ter filhos. O dado faz parte de um estudo global realizado pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira de Ginecologia e do Think About Needs in Contraception (TANCO).

“Eu tinha a impressão de que a maternidade era um requisito da minha feminilidade, e meu desejo foi pilotado automaticamente com base nisso. Foi preciso muita introspecção para chegar à decisão de não ter filhos e poder vocalizá-la” relatou a ativista e escritora nova iorquina Rachel Cargle na reportagem Child-free by choice: Why many women are intentionally opting out of parenthood (Sem filhos por escolha: Por que muitas mulheres estão abrindo mão intencionalmente da maternidade).

Geração NoMo: quem são, onde vivem e como não se reproduzem

Autora de Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação (Editora Appris), a psicóloga Valeska Zanello diz que, embora o fenômeno de mulheres que optam pela não maternidade seja notoriamente progressivo, há uma lacuna científica e acadêmica no Brasil. A escolha pela não maternidade ainda não é uma discussão coletiva de forma articulada, fica no espectro individual.

A literatura internacional aponta que, em geral, as mulheres que não querem ter filhos são: “mulheres que têm representações menos binárias, maior escolaridade e rendimento, menos apegadas à religião e geralmente envolvidas em projetos de vida que as move emocionalmente, psiquicamente e afetivamente fora da caixinha da maternidade e do casamento'', resume a especialista, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade de Brasília.

Para discutir o fenômeno é preciso desnaturalizar a maternidade e observá-la como uma construção histórica. Mas, afinal, quais os motivos pelos quais mulheres fizeram a opção por não ter filhos? Entre as mudanças culturais, podemos sublinhar a possibilidade de realização em outras esferas da vida social.

“De todos, o que mais se destacou, tanto nas pesquisas anglófonas quanto brasileiras, foi o investimento em uma carreira profissional. Aqui é importante sublinhar ainda que o não desejo de maternidade pode estar questionando sobre certo tipo de ‘maternagem’ e o que ela historicamente impôs às mulheres, como a hiperconcentração de responsabilidades, conclui Daniele Fontoura Leal, autora da tese de mestrado Não tenho e não quero: o não desejo de maternidade em mulheres brasileiras.

A questão não é trocar o filho pela carreira, mas entender que a mulher pode ser legitimada no mundo de outras formas. Movimentos organizados como o Childless by Choice e Gateway Women, este responsável pela popularização do termo NoMo (abreviação de Not Mothers – Não Mães), criam espaços de diálogo e acolhimento a partir da internet.

Geração NoMo apresenta como a reivindicação aparentemente simples, mas que coloca em xeque um dos tabus mais intocáveis da sociedade: a necessidade de ter filhos. O respeito às decisões de uma pessoa e a liberdade de poder tomá-las sem ter de dar explicações. Ser mãe é a expressão de um desejo e é preciso respeitá-lo. É urgente ultrapassar a abordagem estigmatizada da recusa em ter filhos.

Tudo bem não querer ter filhos 

Hiperlink mental: quem me apresentou a nomenclatura NoMo foi Natália Sousa, autora do podcast “Para dar nome às Coisas e colaboradora da revista digital AzMina, que produz conteúdo independente pelos direitos das mulheres.

Joana Suarez, gerente de jornalismo da revista, questionou de forma provocativa na newsletter semanal: “Deixa eu te contar uma coisinha: três em cada dez mulheres brasileiras não querem ser mães. Que achas de normalizarmos a mulher livre para fazer o que ela quiser?” Ué, mas ainda estamos debatendo esse assunto em pleno 2022? Pensei com meus botões, eu que fui mãe no alto dos 38 anos. Sim, ainda é uma pauta.

Do e-mail repassado para amigas fui direto para o programa Gênero em Tudo  intitulado Por que tantas mulheres não querem ser mães? apresentado pela jornalista.

A “rebelião” das mulheres que não contemplam a maternidade

Em 2009, a escritora suíça Corinne Maier lançou Sem Filhos: 40 Razões Para Você Não Ter (Intrínseca) e causou rebuliço apenas por sinalizar que não ter filhos por decisão própria estava se tornando uma opção cada vez mais difundida no Ocidente. Na Europa, destaca-se a Alemanha, com uma das maiores percentagens de não mães do mundo.

A escritora feminista Elizabeth Badinter, autora do controverso “Um amor conquistado – o mito do amor materno” se interessou com o fenômeno no país: “Essas mulheres optam por uma vida sem filhos. No processo, elas estão redefinindo o que significa ser uma mulher – e mostrando que isso também pode deixar as mulheres felizes. Isso é uma revolução”.
Nos anos 1980, a filósofa francesa corajosamente quebrou um tabu que funda a tradição judaico-cristã ao teorizar que o amor materno inato é um mito. Badinter aponta as pressões e o sentimento de culpa que as mulheres sofrem em decorrência da crença generalizada de que o instinto materno faz parte da natureza da mulher.

Leda, a angustiada e culpada protagonista de A filha perdida, sempre amou as filhas, mas nunca amou ser mãe. E está tudo bem também não querer ser mãe.

“- Então você voltou por amor às suas filhas?

- Não, voltei pelo mesmo motivo que me fez ir embora: por amor a mim mesma.”

É sobre isso.

O algoritmo dos corpos inatingíveis

Ao pesquisar “Ana”, no TikTok, o resultado é uma ilustração de um estômago com um coração e um suporte psicológico em caso de transtornos alimentares. Pode parecer estranho, mas o aplicativo chinês bloqueou todos os resultados com essa palavra. “Ana”. Esse é o apelido “carinhoso” de um transtorno alimentar, a anorexia nervosa. E o termo não é novo, não. Veio do Tumblr, lá de 2014. Desde então, vídeos ensinam passo a passo como emagrecer uma quantidade de quilos absurda em poucos dias. Como disfarçar que você não come. Como não passar mal. Como disfarçar o vômito. Tudo vale, menos comer.

O objetivo é o desenvolvimento de um transtorno alimentar em prol da magreza. Anorexia, bulimia, compulsão. Receitas de gelo - que são narradas como deliciosas - para enganar a fome. A glamourização da magreza não é de hoje, e desde o começo da década de 2010 termos como “barriga negativa” começaram a aparecer. Uma youtuber de Cingapura faz vídeos gratuitos no YouTube com bilhões de visualizações sobre como atingir esse corpo inatingível. No TikTok ela publica desafios e ensina a ter um tanquinho em 15 ou 30 dias.

Na verdade, não precisamos ir longe. Aqui mesmo, no Brasil, a “coach nutricional” Maíra Cardi já falou sobre “estupro alimentar” para criminalizar quem se preocupa com sua alimentação e em dietas que gerariam “modulação epigenética”. O termo, usado por Maíra, é a crença de que, seguindo uma dieta rígida, sem pão ou açúcares, seus filhos nasceriam livres dos genes de doenças hereditárias, como câncer. Claro que sem embasamento científico, afinal, uma dieta não “zera a genética de doenças nos filhos”, ao contrário do que disse Cardi à TV Record. Mayana Zatz, geneticista e diretora do Centro de Estudos do Genoma Humano comentou no seu Twitter sobre o “monte de absurdos essa mulher está divulgando”, além de criticar a divulgação dessa desinformação. Comidas sem glúten não são tão milagrosas assim, e carboidratos não são tão demoníacos quanto as dietas cetogênicas assumem. Esta, baseada na substituição dos carboidratos por gorduras e proteínas, promete uma perda de peso considerável em pouco tempo.

Como esses discursos “pela saúde” se disseminam rapidamente pela internet? Tornam-se trending topics no Twitter, desafios no TikTok e áudios que viralizam. Sim, o TikTok baniu a palavra Ana e todo conteúdo que possa ser um gatilho para transtornos alimentares. Mas e os áudios sobre “superação” de perda de peso massiva? As trends que espalham exercícios absurdos para serem feitos diariamente?

Quem já conviveu com alguém que possui um transtorno alimentar sabe: a melhor maneira de esconder é se exercitando. Assim, tem-se a desculpa de estar “comendo saudável” ou de estar “ativo”. O “comer saudável” muitas vezes é composto apenas de alimentos que contém as famosas calorias negativas, como salsão, alface, vagem, maçã. Uma lista completa para uma dieta que, no fim das contas, não te alimenta, uma vez que a quantidade de calorias gasta para digerir esses alimentos é maior que a que eles fornecem. Mas nesse mundo toda perda vale, mesmo que de nutrientes. E a perda de peso, por si só, não é banida pelos algoritmos das redes sociais. Afinal, é um motivo saudável. Tudo pela saúde. E é essa a desculpa que permite que os vídeos, as instruções e as receitas de gelo continuem sendo distribuídas e aclamadas.

Os comentários perguntam “qual treino você segue?” ou "Qual dieta você faz?”. Os vídeos, nos Reels do Instagram e no TikTok, são de garotas mostrando suas barrigas macérrimas depois da academia, ou no banheiro de casa. São mais de milhões de visualizações e curtidas. As hashtags, no TikTok, sobre o assunto são “gymtok” e “fittok”, e além de corpos magros é possível ter acesso a treinos completos repassados por pessoas que não tem formação para isso. É o mundo das dietas restritivas, da dieta cetogênica e de “coachs nutricionais”. E esse mundo contém 4,7% da população brasileira - entre os jovens, chega a 10%. Mas a linha entre desenvolver um transtorno alimentar e endeusar exercícios é muito tênue. Até porque na maior parte das vezes, o exercício só é feito para atingir um corpo inatingível.

E por fim, os mais clicados da semana.

1. Estadão: PT retrata General Villas Bôas em quadrinhos sobre Lula e irrita militares.

2. CNN: Zelenski pede à OTAN para estabelecer uma zona de exclusão aérea sobre a Ucrânia.

3. Meio: Edição Extra – Putin levanta a ameaça nuclear.

4. Washington Post: Negociações de paz começam na fronteira da Ucrânia com Belarus.

5. Meio: Isolado pelo mundo Putin encara baixas elevadas nas tropas.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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