Edição de Sábado: Quatro pensadores, Uma guerra

Aos 60, Aleksandr Gelyevich Dugin ainda mantém a longa barba que cultiva há anos e, mais de uma vez, o fez ser comparado a Rasputin, o místico que tinha plena atenção da última czarina. A influência de seu pensamento, no Kremlin, variou ao longo das últimas três décadas. Mas a leitura de seu Fundações da Geopolítica, um calhamaço lançado com grande sucesso em 1997, é capaz ainda de provocar espanto para qualquer um que chegue nele desavisado. Pois parece um guia que explica no detalhe toda a política externa russa desde que Vladimir Putin alcançou o poder, na virada do século. Com base em sua visão de mundo, uma invasão da Ucrânia sempre foi inevitável.

Ainda assim, Dugin vê guerras como último recurso. Sua tática preferencial, na lida com inimigos da Rússia, são programas de subversão, desestabilização e desinformação. “Devemos provocar toda forma de instabilidade e separatismo dentro dos Estados Unidos”, ele escreveu. “É particularmente importante criar desordem internamente na América, encorajando separatismo étnico, social e conflitos raciais, encorajando movimentos dissidentes como os de extremistas, racistas, grupos sectários. Isto produz instabilidade política. Faz sentido, também, simultaneamente apoiar tendências isolacionistas que existem na política americana.”

Muito da propaganda que hoje o Facebook reconhece ter sido financiada por agentes russos, durante a campanha eleitoral de 2016 nos EUA, insuflava justamente grupos racistas. Donald Trump, com seu slogan Make America Great Again, foi um presidente que promovia abertamente uma política externa isolacionista. As extensas campanhas de desinformação praticadas pelas duas unidades de hackers do Exército Russo, nos EUA e no resto do mundo, costumam ter justamente este foco. Estimular dissenso, divisões, incrementar preconceitos nos países que passam por eleições.

Mas nada disso é gratuito: a tática de ataque parte de uma visão de mundo com um aspecto político e outro místico. Partindo da leitura que faz da História, Dugin vê uma divisão essencial do mundo. De um lado está o Atlanticismo — as forças nacionais baseadas no domínio do mar, principalmente Estados Unidos e Reino Unido. De outro está a Eurásia, uma força baseada no domínio da grande extensão continental que vai de Dublin a Vladivostok. No centro da Eurásia fica o país com vocação para seu controle. A Rússia.

Desde o colapso da União Soviética, Dugin avalia que o Atlanticismo adotou a ‘estratégia da anaconda’. Como a cobra gigante que domina suas vítimas abraçando-as e triturando seus ossos, os Estados Unidos passaram a estimular o avanço de democracias nos países vizinhos à Rússia. O objetivo é isolar Moscou, exercendo pressão continuada. A Democracia Liberal, para Dugin, e todo o pacote de direitos e liberdades que a acompanha, é um regime que enfraquece os países, tirando deles o ímpeto de se impor perante o mundo. Em sua tendência a abraçar múltiplas culturas, democracias rompem tradições, desmantelam comunidades, aniquilam a identidade original de povos inteiros. Dugin faz parte da escola de pensadores reacionários que vêem, na modernidade, um sinal de decadência profunda da humanidade.

A longo prazo, o objetivo da Rússia deve ser consolidar o grande império eurasiático sob seu controle. Mas, para isso, é preciso começar refutando os valores da Modernidade, aqueles nascidos no Iluminismo, nas revoluções francesa e americana. E o jeito de fazer isso é reforçando a tradicional identidade russa. É uma identidade que inclui a fé na Igreja Católica Ortodoxa, passa pela língua, e engloba os povos eslavos. Ou os da antiga Rus — Rússia, Belarus, Ucrânia. “Repudiar a vocação por erguer impérios”, ele escreveu, “significaria o fim do povo russo como realidade histórica, como fenômeno civilizacional. Renunciar ao império é suicídio nacional.”

Com frequência, Vladimir Putin vem se referindo à Ucrânia como Malorossiya, Pequena Rússia, um termo antigo que Dugin recuperou e remete à ideia de que a Ucrânia é um país artificialmente criado. Na visão de Dugin, que define pela etnia, pela religião e pela língua o que é o povo russo, não há como questionar. Desde o princípio do século ele vem defendo a ideia de que a Rússia precisa avançar em sua vocação. Para afastar a anaconda americana, não é preciso tomar o território dos países vizinhos. Mas é necessário garantir que não serão democracias liberais e que terão governos que respondam ao soberano em Moscou.

Timothy Snyder

A Ucrânia foi o lugar do mundo onde mais morreu gente no período em que Adolf Hitler e Josef Stálin estiveram simultaneamente no poder, entre 1933 e 45. A observação é do americano Timothy Snyder, de 52 anos, professor de História em Yale. Seus livros a respeito da formação de tiranias se tornaram literatura essencial neste período de crise democrática. É, hoje, um dos intelectuais mais influentes dos EUA. E, isto é apenas coincidência, sua especialidade é a história da Ucrânia. Foi estudando a Ucrânia em particular, e o leste europeu em geral, que chegou a suas teses sobre como democracias acabam e tiranias se formam.

Há duas histórias habituais da Segunda Guerra. Uma é a contada pelos russos, a Grande Guerra Patriótica. A outra é contada por americanos e britânicos. Mas o problema de quando uma história é narrada pelos vencedores é que seu ponto de vista impera. A história como ela de fato ocorreu tem de ser buscada de outro jeito. Porque lê dez línguas europeias diferentes, o que lhe permitiu consultar toda sorte de arquivos com documentos primários, Snyder concluiu que a guerra não teve seu cenário mais importante na frente Ocidental. Na verdade, avançar sobre a França e pressionar as ilhas britânicas foi, possivelmente, o erro fatal de Hitler. Porque seu objetivo mais importante era conquistar a Ucrânia.

A bandeira ucraniana não tem sua forma à toa — duas listras, azul claro em cima, amarelo embaixo. É um campo de trigo plano com o céu acima. Boa parte de seu território faz parte da Estepe Pôntico-Cáspia, e nenhuma outra área da Europa é tão plana por tal extensão e com terra boa para plantio. A base de um grande império europeu, se deseja ser autossuficiente em alimento, precisa incluir o território ucraniano. O Holodomor, a grande fome dos anos 1930 na Ucrânia, foi provocado por uma decisão do Kremlin de tomar do país todo o alimento que havia produzido. O primeiro assassinato em massa de judeus ocorrido na Guerra foi em Kamianats Podils’kyi, na Ucrânia. O maior fuzilamento de judeus do Holocausto foi o de Babyn Iar, também lá. Hitler perdeu a guerra, na leitura de Snyder, quando não foi capaz de conquistar a Ucrânia dos soviéticos. Ali, seu sonho de um grande Reich alemão se tornou insustentável.

Para o historiador, a tese de Dugin, que parte da ideia de que ucranianos e russos são etnica, social e culturalmente um só povo está errada. “É claro que suas histórias são relacionadas pela União Soviética, pelo Império Russo e pela religião Ortodoxa”, ele escreve. “Mas a Rússia, desde sua expansão inicial e em sua geografia contemporânea, é um país profundamente ligado à Ásia. Isto não é verdade para a Ucrânia. Não é possível contar a história ucraniana sem a presença de poloneses, lituanos e judeus. A Ucrânia viveu a Renascença e a Reforma protestante, partes integrais da cultura europeia.”

De certa forma, Snyder vê a invasão russa da Ucrânia como Dugin: é pura expansão imperial. Mas ele enxerga causas para além de uma leitura reacionária da história. A economia da Rússia é frágil, a desigualdade brutal, equivalente à brasileira, e os espaços de liberdade são cada vez mais tolhidos. Incapaz de resolver os problemas internos do país, Vladimir Putin busca uma guerra patriótica como distração e mobilização do povo russo.

Quando em seu discurso o presidente russo afirma que os ucranianos não existem e que o país é controlado por nazistas, vai além. “Não estamos lidando apenas com uma tensão, estamos lidando com uma tentativa de nos incapacitar intelectualmente”, ele argumenta. “Quando Putin afirma que a invasão ocorre para denazificar um país e este país é governado por um presidente judeu democraticamente eleito, esta não apenas a compreensão equivocada de um problema. É uma tentativa de nos despistar, de nos tornar incapazes de raciocinar do ponto A para o ponto B. É uma tentativa de criar um vácuo que suga todos os fatos. Seu objetivo é criar o tipo de vazio argumentativo em que tiranias conseguem sobreviver.”

Para o historiador de Yale, outro equívoco de compreensão histórica é centrado na União Europeia. Habitualmente, ela é explicada como a integração de nações autônomas que começou por cooperação econômica após a Segunda Guerra. “A integração europeia não foi iniciada por nações cooperando, ela foi iniciada por impérios que estavam decaindo.” No rastro das duas grandes guerras, desmoronaram o Império Austro-Húngaro, o Russo, o Britânico entre outros. Essa busca pela formação de impérios é contínua desde o início da história europeia. Mas quando, com o surgimento de armas nucleares, uma nova guerra continental se tornou inviável, foi preciso encontrar uma nova forma de organizar o continente. Respeitando democracias. A UE substitui, num mundo democrático, a função que os impérios cumpriam antes.

É difícil para nações democráticas lidarem com países como a Rússia, que têm um PIB apenas mediano mas que investem pesadamente em suas forças armadas e em propaganda do Estado. Porque países assim são capazes de criar tensões grandes no mundo quando tentam afirmar seu poder. Uma das dificuldades recentes da União Europeia é que, embora uma solução excepcional, capaz de promover o crescimento conjunto que sozinhos os países membros não conseguiriam atingir, ela é percebida como monótona. Burocrática. Pouco surpreendente. Lenta em sua ação. Enquanto uma autocracia como a russa investe forte em vender para sua população um ideal de grandeza, uma estrutura como a UE tem dificuldades de explicar sua existência. Daí que abandonos, como o Brexit, ocorrem.

Mas, esta é a opinião do professor, perante o conflito com a Rússia, a ideia da União Europeia pode voltar a ganhar popularidade.

John Mearsheimer

Tudo é bem mais simples, argumenta o cientista político John Mearsheimer, da Universidade de Chicago, que desde os anos 1990 vem alertando para o fato de que este conflito estava fadado a ocorrer. De acordo com ele, no momento em que o governo Bill Clinton escolheu ampliar o número de membros da OTAN no Leste Europeu, encomendou ali o risco de guerra.

Mearsheimer é um dos principais intelectuais da escola realista, que na avaliação das relações internacionais parte de um princípio essencial. Há, no mundo, países que são grandes poderes. Estes países garantem sua segurança na forma de esferas de influência. Em geral, é um cinturão de vizinhos. Mas às vezes, como é o caso americano desde os anos 1970, pode ir além — os EUA consideram o Oriente Médio parte de sua esfera de influência. Estes países poderosos jamais abrem mão de ter algum controle sobre as nações que consideram de seu interesse especial.

Mearsheimer não está sozinho. O mais importante diplomata dos Estados Unidos na segunda metade do século 20, o ex-secretário de Estado Henry Kissinger, segue rigorosamente o mesmo raciocínio. Para ambos, a expansão da OTAN foi um erro pois pressionou a Rússia. E o anúncio, durante o governo de George W. Bush, de que Ucrânia e Geórgia entrariam na organização selou a inevitabilidade do conflito.

É uma visão soturna de como funciona o mundo — e um bocado por isso seus proponentes a chamam de ‘realista’. Para o país que calha de estar na esfera de influência de um grande poder, não há escolha que não compreender seu lugar. Compreender que soberania plena não é algo que terá.

“Os EUA ignoraram a linha vermelha traçada por Moscou”, ele escreve, “e forçaram os limites para fazer da Ucrânia um posto ocidental na fronteira da Rússia. A estratégia teve dois ângulos: trazer a Ucrânia para mais próximo da União Europeia e transformá-la numa democracia pró-americana. O confronto que nos trouxe a esta guerra ocorreu em dezembro de 2021, quando a Ucrânia começou a se tornar em essência parte da OTAN. Desde dezembro de 2017, o governo Trump começou a vender ‘armas defensivas’ para Kiev. Bem, estas armas pareciam ofensivas para Moscou. Outros países da OTAN seguiram o exemplo americano. Em julho de 2021, Ucrânia e EUA promoveram um exercício naval no Mar Negro que envolveu as marinhas de 32 países. Um destróier britânico chegou a invadir as águas territoriais russas. Estes laços com a Ucrânia seguiram se ampliando no governo Biden. Não é de surpreender que a situação se mostrou intolerável para Moscou.”

Para pensadores como Mearsheimer, é um erro observar a ação de grandes poderes do ponto de vista ético ou moral. Força será exercida por quem a tem. E o principal responsável pela guerra são os Estados Unidos, ao ignorarem esta regra básica das relações internacionais.

Mearsheimer é muito pessimista.

“Os EUA e seus aliados podem talvez evitar uma vitória russa na Ucrânia, mas o país sofrerá muito e talvez termine desmembrado. Além disso, o risco de o conflito escalar para além da Ucrânia é real. Se o Ocidente não apenas conseguir evitar uma vitória militar de Moscou mas também causar dano grande à economia russa, estará empurrando um grande poder ao seu limite. Putin poderá recorrer a suas armas nucleares.”

Yuval Noah Harari

Não é verdade que guerras são inevitáveis, dirá o historiador israelense Yuval Noah Harari, de 46 anos. “Será que humanos conseguem mudar seu comportamento, ou a história se repete infinitamente?”, ele pergunta. “Uma escola de pensamento nega firmemente a possibilidade de mudança. Argumenta que o mundo é uma selva, que o forte caça o fraco, e que só força militar impede um país de engolir o outro. Outra escola sugere que a tal lei da selva não é uma lei natural. Foi criada por humanos e humanos podem mudá-la.”

Para o pensador, as evidências históricas apontam para o caminho contrário do argumento realista. Não há mostra arqueológica de guerra organizada anterior a 13 mil anos atrás — e a humanidade tem 300 mil anos. Ou seja, em boa parte de nossa existência, não guerreamos. “A ocorrência de guerras, e mesmo sua intensidade, depende de fatores tecnológicos, econômicos e culturais.” Nas últimas gerações, o surgimento de armas nucleares fez com que as mais poderosas nações se tornassem menos violentas. Conflitos armados de grande porte foram frequentes em boa parte da história até que, 70 anos atrás, deixaram de ocorrer. Grandes poderes pararam de guerrear entre si. Estatisticamente, a violência despencou. “O declínio das guerras não é resultado de um milagre ou mudança de alguma lei natural. É o resultado de humanos fazendo escolhas melhores. É, certamente, a maior conquista moral e política da civilização moderna. Infelizmente, o fato de que nasce da escolha humana também faz dela reversível.”

Harari tem por tese que histórias que contamos para nós mesmos formam a base de como nos organizamos socialmente. A ideia de democracia é isso: uma história que contamos a nosso respeito, sobre como funciona nosso país. A ideia de império, idem. É o que Aleksandr Dugin faz, o que faz Timothy Snyder ou John Mearsheimer. Os fatos que escolhemos privilegiar quando analisamos uma situação terminam por levar às conclusões que chegamos.

Para ele, Putin já perdeu esta guerra. “Seu sonho de reerguer o Império Russo sempre se baseou na noção de que os ucranianos não são um povo de verdade e que os habitantes de Kiev, Kharkiv e Lviv anseiam pelo governo de Moscou”, ele argumenta. “Em 2014, as pessoas na Crimeia não resistiram aos invasores russos. Por que seria diferente em 2022? Mas a cada dia que passa, está ficando mais claro que o jogo de Putin desmoronou. O povo ucraniano está resistindo com todo seu coração, ganhando a admiração de todo o mundo — e, assim, vencendo a guerra.”

Mesmo que ocorra uma derrota militar, a resistência continuará. Os ucranianos poderiam ter adotado uma de duas ‘histórias’. A de que são em verdade russos, ou a de que têm uma identidade nacional própria.

Escolheram a segunda.

Seu presidente tem amplo apoio no Parlamento, inclusive dos opositores. Está pedindo entrada acelerada na União Europeia. Não parecem dispostos a abrir mão de ser um país soberano.

Invasão espalha refugiados pela Europa

A escalada do conflito na Ucrânia após a invasão russa fez com que mais de 3,2 milhões de pessoas deixassem o país desde o início da guerra, em 24 de fevereiro. É o maior fluxo de pessoas refugiadas no continente desde a Segunda Guerra Mundial e está se tornando a maior crise de refúgio da Europa neste século. E esse número não para de crescer. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a quantidade de deslocamento forçado de pessoas causado por conflitos em um curto espaço de tempo está entre as características que diferem a crise de refúgio na Ucrânia de outros conflitos, como na Síria e no Afeganistão, por exemplo. Entretanto, a guerra civil na Síria, que começou em 2011, ainda é a maior crise de refúgio do mundo, com mais de 13 milhões de pessoas.

Grande parte dos que saíram da Ucrânia durante a guerra foram para a Polônia (1,9 milhão). Em seguida, Romênia (508.692), Moldávia (355.426), Hungria (291.230), Eslováquia (234.738), Rússia (184.563) e Bielorrússia (2.127) aparecem como os destinos que mais recebem refugiados. Além disso, 12 milhões de pessoas que se deslocaram dentro da Ucrânia também precisam de ajuda.

O Brasil já recebeu 894 ucranianos, que têm permissão para entrar no país como turistas, desde o início da guerra, segundo a Polícia Federal. Destes, 28 pediram visto para permanecer no Brasil. Segundo o Itamaraty, 15 ucranianos solicitaram ainda no exterior o visto humanitário.

Samantha Federici, chefe da unidade de Parcerias com o Setor Privado do ACNUR Brasil, explica que o trabalho na Ucrânia é ampliar a operação humanitária no país e na região para captar recursos. Os escritórios e depósitos em diferentes áreas também armazenam suprimentos humanitários – como cobertores, kits de cozinha, galões de água e outros itens emergenciais. “À medida que a situação se deteriora, o ACNUR segue na linha de frente, atento para ampliar sua capacidade de resposta de acordo”, diz Federici.

O objetivo é também estabelecer pontos de aquecimento na fronteira, fornecendo informações e aconselhamento jurídico e até assistência em dinheiro para deslocados internos em trânsito pelo país ou em regiões específicas atingidas. Nos países vizinhos, a recepção dos refugiados tem sido de forma satisfatória, afirma a porta-voz. Há doação de cestas básicas, oferta de transporte e acomodação. Além disso, a equipe da agência está presente nos países anfitriões, ampliando programas de proteção. Na Moldávia, por exemplo, são distribuídos aos refugiados que chegam ao posto fronteiriço de Palanca cobertores térmicos, barracas, colchonetes, itens de higiene e kits de inverno.

Discriminação e xenofobia

Assim como o número de refugiados durante a guerra na Ucrânia é alarmante, os relatos de discriminação racial e xenofobia também preocupam. Em 28 de fevereiro, a União Africana, que reúne os 55 países do continente, condenou o tratamento aos cidadãos de países africanos que estão na Ucrânia. Segundo relatos, eles estariam enfrentando dificuldade para atravessar a fronteira, sendo inclusive impedidos de embarcar em ônibus e trens que têm saído das cidades ucranianas com os civis que tentam deixar o país. “Relatos de que africanos são selecionados para tratamento dissimilar inaceitável são chocantemente racistas e uma violação da lei internacional”, disse o comunicado.

O governo da Nigéria também se manifestou, afirmando ter evidências em vídeo, relatos de fontes e de pessoas em contato com funcionários da diplomacia nigeriana. “Há infelizes relatos de policiais e oficiais de segurança ucranianos que se recusam a permitir que nigerianos embarquem em ônibus e trens em direção à fronteira Ucrânia-Polônia”, diz, no Twitter, a conta oficial da Presidência da Nigéria. Segundo o governo do país, há 4 mil nigerianos na Ucrânia, a maioria estudantes. Neste mês, a União Europeia aprovou a Diretiva de Proteção Temporária para pessoas que fogem de conflitos armados, criada em 2001, mas sendo aplicada pela primeira vez na guerra da Ucrânia.

“Estamos profundamente preocupados com o aumento de xenofobia, discriminação e exclusão de pessoas refugiadas e solicitantes do reconhecimento da condição de refugiado nos últimos anos, e portanto parabenizamos a recepção e solidariedade que tem sido demonstrada nas últimas semanas”, afirma Federici. “A decisão da União Europeia é particularmente louvável, pois garantirá que os refugiados sejam admitidos rapidamente no território dos Estados-Membros e recebam o status de proteção imediatamente, sem a necessidade de passar por um processo individual de determinação do status de refugiado.” A entidade também ressalta a “necessidade urgente” de os Estados responderem a outras situações que “permanecem sem solução”, incluindo Afeganistão, Síria, Etiópia, entre outros.

Segundo a porta-voz do ACNUR, Filippo Grandi, tem estado em contato com autoridades dos países vizinhos à Ucrânia para “assegurar que a assistência humanitária neste momento seja feita de maneira indisciplinada e sem qualquer restrição, independente da origem, raça e nacionalidade das pessoas que cruzam a fronteira da Ucrânia em direção a outros países." “O ACNUR sempre continuará a defender o acesso ao asilo para todas as pessoas em necessidade de proteção internacional. Esse é um princípio básico da convenção da ONU de 1951, e respeito aos direitos das pessoas refugiadas não deve ser arbitrário ou discricionário.”

Uma noite com sobreviventes

Depoimento a Bruna Buffara

Organismos internacionais como o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e ONGs diversas enfrentam com a invasão da Ucrânia uma crise de refugiados de proporções cataclísmicas. Mas indivíduos também fazem sua parte, acolhendo pessoas que perderam tudo para não perder a vida. Foi assim que o casal brasileiro Felipe e Fernanda Behar*, que vive em Munique, na Alemanha, desde 2016. A invasão russa reavivou as histórias contadas na família da fuga do nazismo na Europa e os levou a acolher uma ucraniana e seu filhinho. Foi apenas uma noite – mãe e filho estavam de passagem para outra cidade –, mas ensinou muito sobre horror e sofrimento, mas também sobre solidariedade e esperança. E isso que Felipe e Fernanda contam ao Meio.

“Sem nem falar com a minha esposa, cadastrei nosso apartamento para ajudarmos refugiados. Me juntei a grupos do Telegram, preenchi formulários sobre espaço, quantos quartos tínhamos e se o ambiente era dividido. Com tantas notícias sobre a guerra, não imaginávamos que alguém chegaria até Munique. Afinal, estamos longe da fronteira e, quando inscrevi nossa casa, a conta estava em 350 mil refugiados.

Um dia, quando estávamos indo juntos para o trabalho, vimos que a Caritas - organização católica mundial - tinha construído um ponto de informação, com bandeiras da Ucrânia e tradutores, preparando para os refugiados. Mas não tinha ninguém. Pouco depois começamos a receber ligações para hospedar refugiados, mas todos tinham animais. E, pela burocracia do aluguel, não podíamos aceitar.

Numa sexta-feira à meia noite, depois de patinarmos com amigos, ponderamos sobre a volta para casa, afinal, estávamos bem longe. Pensamos em voltar de trem ou pegar um carro, mas acabamos pegando o trem que vinha de Salzburg, na Áustria, e ia para a estação central de Munique. Assim que entramos, sentimos um cheiro forte, pesado. Uma mistura de bafo e desamparo. Escutei pessoas falando em russo logo atrás de nós. Nosso ponto chegou. Olhamos para trás e vimos duas mães com crianças e malas. Tínhamos que correr para nosso trem, mas ficamos paralisados. A conversa aconteceu em 30 segundos. “Vamos oferecer ajuda”, para onde vão, não queriam ir para nossa casa, tinham dinheiro para o hotel, falamos que éramos boas pessoas. Saímos do trem e a estação, que há dias estava vazia, estava lotada. Cheia de ucranianos. E muitos tradutores ajudando. Descobrimos que a Helga* e seu filho de seis anos, Davi*, tinham planos. Iriam para outra cidade ficar com a sua avó. Essa noite, porém, conseguimos convencê-la a dormir na nossa casa. No caminho, ela contou há quantos dias viajava. Ela saiu com Davi de Mykolaiv para a Moldávia, então para a Romênia, depois para a Hungria, Áustria e finalmente Munique. Seis dias de viagem, em ônibus e trens.

Em casa e as memórias do bunker

Não estávamos preparados para receber uma família naquela hora. Foi um encontro espontâneo, chegamos em casa à uma da manhã e só conseguimos pensar no cansaço de Davi, que não falava nada, se mantinha choroso e agarrado à mãe. Oferecemos comida enquanto organizamos as camas e Helga perguntou que dia da semana era. Disse que não dormia numa cama há dias.

Antes dos seis dias em trânsito foram oito num bunker de guerra em Mykolaiv com quarenta pessoas e um banheiro. Pelo menos eles estavam num bunker preparado, porque outras famílias estavam em subsolos improvisados. Os bombardeios aconteciam à noite, e ela saía logo no raiar do dia para buscar mantimentos e roupas no seu apartamento. Depois do sexto dia, não conseguia mais sair.

Eles estavam com um cheiro fortíssimo, e a Helga disse que era “cheiro de bomba”. Quando disse isso, entendemos o cheiro. Era um misto de pólvora, diesel e gasolina. Mesmo com seis dias sem banho e o Davi fazendo xixi na calça algumas vezes, o cheiro não era de urina - era “de bomba”. A Helga, desnecessariamente, se desculpou quando pediu para lavarmos as roupas.

Arrumamos a cama com muito amor para os dois. Com fronhas desenhadas com um menininho, que falamos que era o Davi. Demos toalhas de banho e oferecemos nosso pijama a ela. Pedimos desculpa, também, porque não tínhamos roupas para o pequeno. Ao saírem do banho, Helga pediu para conversarmos - porque estava muito ansiosa. Ao nos sentarmos no sofá, nos mostrou as fotos. Bunker, pontes destruídas, casas bombardeadas. E Helga pediu para fazer uma sopa, porque há dias só comiam comidas secas.

O alívio

De manhã, num aplicativo, pedi ajuda aos vizinhos - anunciando que estávamos com uma mãe e uma criança refugiadas e sem brinquedos e roupas. Fomos para farmácia, compramos itens de higiene e uma escovinha de dentes infantil para o Davi, já que ele e a Helga estavam dividindo a mesma. Ao chegarmos em casa, uma hora depois, já eram seis sacolas de doação com roupas e brinquedos. Tivemos que pegar uma mala que não usávamos mais para organizar todas. Também atualizamos o anúncio, avisando que não precisávamos de mais nada. Cuidamos para não deixar tudo perfeito, afinal, nossa casa era só uma pausa na viagem.

A Helga se levantou chorando. Mykolaiv foi bombardeada de madrugada. A janela de seu apartamento foi quebrada, e a unidade da sua vizinha, destruída. O curioso era que ela não se colocava em posição de vulnerabilidade e reiterava que poderia nos ajudar caso a situação estivesse invertida.

De todas as doações, Davi correu para sua escova de dentes e começou a se soltar. Helga negou todo o dinheiro que lhe era doado, pedindo para guardarmos para outras pessoas que tinham menos. Escondidos, vinham bilhetes de “alles gut!” - de que tudo ficaria bem. Ela e Davi são judeus, e Helga acalmava outros nos bunkers, por ser psicóloga. Seu marido não pôde sair do país, ganhou uma arma dos militares e precisava guardar o bunker. Ela também contou que tinha uma filha mais velha, de 18 anos, que estava fugindo para a Lituânia com o namorado. Seus pais não quiseram fugir, pelo caminho ser árduo demais.

Davi pediu por Nesquik e tomou assistindo desenhos dentro do quarto como se estivesse em casa. Depois percebemos que ele pegava várias balas PEZ e chocolates da nossa tigela escondido. Ele chegou a comer todas as balas!

Depois que lavamos os cobertores e travesseiros, Helga os segurava contra o rosto, agradecendo que estavam cheirosos e limpos. Ela também agradeceu a paz e o sonho que era essa pausa nesses dias, e os convidamos para dormirem novamente na nossa casa.

A despedida

À noite, deixamos Helga fazer sua sopa para Davi. Nós cozinhamos juntos e fizemos estrogonofe. Ela contou não ter nada contra os russos, nem contra a Rússia, porque entendia que era um problema político do Putin. Nossa vizinha, de 94 anos, bateu na porta para trazer doações e pediu para entrar. Trouxe lenços de papel e bolachas, dizendo que entendia exatamente o que eles estavam passando, porque ela mesma já tinha dormido em bunkers durante a Segunda Guerra Mundial.

Às 21h, estávamos todos dormindo. No dia seguinte, eles iam embora.

Anotamos nosso endereço, telefone e nome num papel para ela nos contatar como pudesse. Ela nos convidou para uma visita quando tudo passar e abençoou nossa casa. Entramos no trem, mesmo sendo proibido, para ajudá-la com as malas. Nos abraçamos e nos despedimos.”

O relato dos Behar termina aqui, mas a jornada de Helga e Davi continua. Na última mensagem recebida por Felipe, dia 18 de março, Helga conta que sua avó não os acolheu e que agora estavam numa fazenda, de desconhecidos, ainda na Alemanha.

Helga é uma dentre mais de três milhões. Como disse, ela não precisa de dinheiro, mas tantos outros refugiados precisam, porque saem da Ucrânia sem planos, sem contatos e sem perspectivas.

*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos envolvidos.

E a guerra na Ucrânia segue dominando os mais clicados da semana:

1. UOL: Nuvem de poeira do Saara cobre de laranja parte da Espanha.

2. NY Times: Grávida fotografada sendo retirada de hospital bombardeado em Mariupol não resiste e morre.

3. Guardian: Autoridades dos EUA dizem que China já decidiu enviar ajudar econômica à Russia.

4. UOL: Instrutor de tiro brasileiro foge para a Polônia após ataque à base da legião estrangeira.

5. NY Times: Secretário Geral da ONU diz que o impacto da guerra para os civis está atingindo proporções aterrorizantes.

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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