Edicão de sábado: Partidão aos 100

Quando bateu tímido à porta de Machado de Assis, no ano de 1908, Astrojildo Pereira estava a semanas de se tornar maior de idade. Àquela altura, após uma crise íntima que o pusera em conflito com sua educação jesuítica, já era ateu, mas ainda estava na busca de um norte, alguma forma de crença que pudesse movê-lo. E talvez tenha sido este seu traço de personalidade que o trouxera até ali, à casa do velho escritor. Quem abriu a porta foi Euclides da Cunha. “Da parte de quem?”, lhe perguntou. O rapaz explicou que não conhecia ninguém da casa, queria só saber como estava Machado. Se, de repente, não podia vê-lo. Outros se aproximaram de Euclides — a casa estava cheia —, e um burburinho se formou. Deixavam entrar? Foi o velho escritor, de sua cama num quarto do primeiro andar, que mandou chamá-lo. “Não disse uma palavra”, descreveu a cena uns dias depois Euclides. “Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e saiu.” Machado de Assis morreria no dia seguinte. E Astrojildo lembraria daquele momento, daquela visita, por toda sua vida. Não veio sem críticas. Por décadas, companheiros de partido, e principalmente ex-companheiros, o atacariam pelo fascínio que sentia pelo escritor da pequena-burguesia. Mas isso Astrojildo nunca largou. Pelas prisões passou três vezes. Foi do Comitê Central da Internacional Comunista em Moscou, esteve com Stálin bem mais de uma vez, de certa forma criou o mais importante líder comunista que o Brasil teve. Não foi só. O Partidão, o Partido Comunista do Brasil, nasceu na sala de sua casa. E, ainda assim, Astrojildo nunca deixou de reler Machado de Assis, de escrever sobre sua obra pequeno-burguesa. Em vida, foi a heresia a que se permitiu.

Neste fim de semana, o Partidão completa 100 anos de idade. Esta é uma história dele em seis atos.

Ato 1

Eles não haviam lido Marx, aqueles nove homens que em 25 de março, no ano de 1922, se encontraram na sede de uma união operária, na cidade do Rio de Janeiro. O anfitrião, aos 31, era Astrojildo. Um jornalista, um agitador. Os outros eram dois alfaiates, um barbeiro, um professor, um eletricista, um gráfico, um sapateiro e um vassoureiro. Uns eram dali mesmo, do Rio. Os outros do Rio Grande do Sul e de Pernambuco. O que tinham em comum, se não era propriamente a ideologia, era o encanto com a ideia da Revolução que havia ocorrido na Rússia em 1917. Tinham também uma convicção. O que fez fracassar as greves ocorridas no Brasil entre 1917 e 1920 não havia sido apenas a repressão policial. Era também falta de organização. Uma recusa anarquista de botar ordem, de dar estrutura ao movimento operário. O comunismo parecia apontar para uma solução que a esquerda radical brasileira, anarquista, não era capaz de trazer.

Naquele 25 de março, um deles leu as 21 condições estabelecidas pela Terceira Internacional para formação de um partido comunista — um gaúcho havia trazido o documento, em espanhol, da Argentina. Estavam todos de acordo. No dia 26, um domingo, se basearam no estatuto do partido argentino para redigir a versão brasileira. E na segunda, com medo da polícia, os nove se encontraram desta vez em Niterói, numa das muitas casas de seu Ramiro, o pai de Astrojildo. Pois é — muitas casas. Ramiro Pereira Duarte da Silva era um político de Rio Bonito, interior do Rio, foi também delegado de polícia local, e dono de algumas terras. A vida burguesa garantiu a seu filho uma educação sólida que incluía línguas estrangeiras. Por dez anos, Astrojildo se identificou como anarcossindicalista. Escrevia nos jornais, publicava os seus próprios panfletos, e se dedicava a tentar organizar operários. Daqueles nove que assinaram a fundação do PCB na sala da casa de Niterói, entre duas tias idosas que não faziam ideia do que ocorria, apenas dois se manteriam comunistas pelo resto da vida. Um porque morreu cinco anos depois. O outro foi Astrojildo Pereira.

Após nascer, o Partido Comunista do Brasil seguiu legal por quatro meses. Quando, em julho de 1922, uma rebelião militar tentou derrubar o governo Epitácio Pessoa, o estado de sítio foi decretado e o PCB jogado na ilegalidade. O nascimento não foi conturbado apenas localmente. Como se tratava de um movimento global, o partido precisava ser reconhecido pela Internacional Comunista. Mas o rapaz que mandaram para Moscou naquele mesmo 1922, para o quarto Congresso da Internacional, decidiu brigar com todo mundo. Voltou sem as credenciais e, ao chegar no Brasil, foi expulso. Já era tarde. Em 1924, viajou o próprio Astrojildo para a capital soviética, e foi só então que o Partidão foi reconhecido oficialmente como a sessão brasileira da Internacional Comunista.

Ato 2

Mesmo quando os dirigentes do Partido já haviam lido Marx, já haviam se educado no marxismo-leninismo, ainda assim o agrupamento chegou aos cinco anos de idade sem ter crescido para além das algumas centenas — e assim não se faria a revolução. Mas havia, no fim dos anos 1920, um espírito revolucionário no Brasil. Era o daqueles jovens oficiais, os tenentes, que primeiro se levantaram contra a República em 1922 e que por anos atravessaram o país em coluna, tentando formar um exército popular grande o suficiente para derrubar o regime. Estes tinham um líder: Luiz Carlos Prestes.

Para os comunistas, e não sem razão, a revolução que o tenentismo propunha era burguesa. Queriam instaurar uma democracia com maior acesso ao voto e melhor educação pública. Mas, justamente por isso, os jovens militares eram muito populares nas classes médias urbanas. Mesmo entre os conservadores. Havia aquele espírito ‘contra tudo isso que está aí’. Uma aliança com quem tinha experiência revolucionária interessava.

Prestes estava no exílio quando, na condição de jornalista, mas também como líder do PCB, Astrojildo Pereira se apresentou para entrevista-lo, na Bolívia, em 1929. “Recebeu-me numa casa, aliás bem modesta, em companhia de dois oficiais da coluna”, o secretário-geral contou em suas memórias. “Passei quase dois dias, conversamos longamente.” Sua missão não era fácil. Queria convencer o mais respeitado herói da classe média urbana brasileira a fazer uma aliança tática com os comunistas. “Tudo se resumia em coordenar as nossas forças tendo em vista os objetivos comuns.” Quando voltou para o Rio para redigir a entrevista, Astrojildo não sabia, mas havia conseguido seduzir Prestes.

Nos meses seguintes, saindo da Argentina e do Uruguai, os principais líderes tenentistas reentraram no Brasil para tocar uma nova tentativa de revolução. Desta vez, contariam com o apoio de vários políticos importantes, liderados pelo gaúcho Getúlio Vargas. Mas Prestes não os acompanharia. “Estudando as causas políticas e econômicas da atualidade brasileira, estou convencido de que a revolução burguesa, ao invés de um bem, constituiria um mal para o Brasil”, ele afirmou a João Alberto, um de seus parceiros de luta.

A Revolução de 1930, burguesa como diriam os comunistas, encerrou a Primeira República. O PCB estava fora, mas havia ganhado um novo líder.

Ato 3

Os russos entenderam perfeitamente o que havia de ganho com um líder do quilate de Luiz Carlos Prestes. Ele não era um jornalista, era um militar. Tinha experiência revolucionária. Havia cruzado o Brasil e conhecia o país. Se alguém poderia trazer o Brasil para o comunismo, era ele. Da Argentina, Prestes iria para Moscou mergulhar em seu processo de educação marxista-leninista.

Aquele era um mundo de comunicação lenta, com fluxo reduzido de informação, e o Brasil ficava muito longe de tudo. Não é à toa que os fundadores do PCB nunca haviam lido Marx — não havia Marx em português. Eles próprios foram quem providenciaram, em 1924, a primeira tradução do Manifesto Comunista. Mas este grande desconhecimento aparecia em toda parte. O Komintern, Comunismo Internacional, o órgão soviético dedicado a espalhar a revolução pelo mundo, tampouco sabia qualquer coisa do Brasil. Alguma coisa sobre a Europa aqueles homens e mulheres conheciam. Estavam muito próximos, e a URSS fazia parte da geopolítica europeia. Mas, para além do continente, precisavam contar com os PCs locais para construir suas avaliações sobre que lugares priorizar estrategicamente.

E Prestes os convenceu de que a revolução era possível no Brasil.

Em 1934, o tenente voltou ao Brasil clandestino, imposto por Moscou ao PCB como seu novo líder. Vinha casado com uma jovem alemã, Olga Benário, e acompanhado de alguns outros estrangeiros para planejar a conquista do país para a causa. Semanas antes de ele chegar ao Brasil, um jovem jornalista chamado Carlos Lacerda juntou um coro para, por aclamação, sugerir que Luís Carlos Prestes fosse o presidente de honra de um grupo que chamaram Aliança Nacional Libertadora, um movimento amplo de esquerda que estava sendo fundado. Uma tentativa de montar um grupo legal de esquerda radical. Mas não durou muito, foi logo posto na ilegalidade.

O plano de Prestes também ruiu por terra. O partido não estava pronto ainda para fazer um levante quando chegaram as notícias de que no Rio Grande do Norte e em Pernambuco rebeliões populares tomavam o poder dos estados. Os agentes que vieram da URSS tinham nas mãos um rádio capaz de trocar informações com Moscou. Mas contavam com os jornais do dia para saber o que ocorria no Nordeste do Brasil. Acreditando que aquelas notícias eram reais, decidiram pôr em marcha, precocemente, o levante da capital federal. O Rio de Janeiro.

Na madrugada da quarta-feira, 27 de novembro de 1935, um grupo de militares comunistas rendeu oficiais e tomou o terceiro Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. O mesmo era para ter acontecido na Escola de Aviação Militar, na sede da Marinha e em quartéis da Vila Militar. Brigadas de operários sindicalizados deveriam armar escaramuças em diversos pontos da cidade, gerando tantos focos de atenção que pusessem desnorteado o governo. A companhia de luz e estradas de ferro deveriam ter sido atacadas. Mas nada aconteceu. Só o terceiro RI se amotinou.

Os informes de que Natal e Recife haviam caído eram falsos. A rebelião no Rio fracassou. Para a história, aquela tentativa desastrada de revolução entrou como Intentona Comunista. Nunca teve chances.

Prestes e Olga, com os também alemães Arthur Ernest Ewert e sua mulher, Elise Szaborowski, mergulharam na clandestinidade tentando evitar a prisão. Em um pico de paranoia, decidiram pelo assassinato de Elza Fernandes, uma jovem de 16 anos que servia de empregada na casa em que viviam. Foi esganada com uma corda no pescoço por ordem de Prestes e enterrada no quintal. A paranoia de pouco adiantou — os quatro terminaram presos. Olga e Elise foram deportadas para seu país. Eram judias, morreram nos campos nazistas.

Ao longo dos anos de cadeia, Arthur não resistiu às sessões de tortura nos porões do varguismo. Enlouqueceu.

A Intentona Comunista causou, no Exército Brasileiro, um trauma profundo que ainda hoje repercute. Seguem, os militares, vendo ameaças vermelhas por toda parte.

Ato 4

Ao longo dos anos, o Partido Comunista do Brasil foi criando uma cultura de clube fechado e intransigente. Em grande parte, era fruto da clandestinidade, da importância de manter segredos e evitar a prisão de todos. Mas criou-se, também, uma nova forma de intolerância quase religiosa. Quem deixava o comunismo era tratado como apostata.

Um que viveu a experiência foi Carlos Lacerda.

Lacerda, que nos anos 1940 trabalhava como jornalista, havia recebido a missão de escrever um artigo contando a história do partido que tivesse um viés negativo. Embora não fosse membro do PCB, era ligado a todos e buscou o comitê central para receber instruções sobre como agir. Estava aflito, mas foi autorizado a escrever o texto.

“Essa é uma fase muito triste da minha vida”, ele lembraria já velho, numa entrevista que foi publicada no livro Depoimento. “Amigos de infância, amigos de todo dia, amigos de café, amigos de confidência, amigos desde os tempos de namoro, amigos de tomar chope, me voltavam a cara na rua. Havia um famoso artigo 13 dos estatutos do Partido Comunista que proibia conversar com os inimigos do proletariado e traidores. Então os sujeitos voltavam ostensivamente a cara. Você se sente um leproso.” Por meses ele deixou de conseguir emprego nas redações.

“Sei bem o que é romper com uma coisa dessas porque é uma máquina totalitária que se apossa da personalidade do indivíduo, não só intelectualmente, mas até fisicamente. O rompimento importa numa disposição de sacrifício e renúncia, sei lá, quase de estoicismo.”

Inúmeras pessoas viveram a experiência de ter de abandonar todas as relações que tinham em vida para deixar o partido.

Ato 5

Em uma sessão secreta do vigésimo Congresso do Partido Comunista da União Soviética, Nikita Khruschev denunciou o culto à personalidade e os crimes perpetrados por seu antecessor como secretário-geral, Josef Stalin. Fevereiro, 1956. Ao fazer isso, mudou também a diretriz da URSS — ao invés de pregar a revolução no exterior, propunha a transição pacífica do regime democrático para o socialismo. Aquela denúncia e aquela mudança fariam eclodir a maior crise da história do PCB.

Todo o foco com o qual o grupo havia trabalhado nos quase 40 anos anteriores tinha por meta uma deposição do regime. Agora, a orientação era de jogar dentro da democracia. Por alguns anos, o comitê central debateu sobre como agir. Em 1960, convocou o quinto Congresso do PCB. “A revolução no Brasil não é ainda socialista, mas anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática”, escreveram em sua resolução final. “A solução completa dos problemas que ela apresenta deve levar à inteira libertação econômica e política da dependência para com o imperialismo norte-americano.”

Foi quando, sem mudar a sigla, o PCB mudou de nome. Partido Comunista do Brasil, afinal, era a seção brasileira do Partido Comunista único, mundial. Agora, passava a se chamar Partido Comunista Brasileiro.

Prestes continuava secretário-geral, e sua característica de rígida obediência militar, hierárquica, comunista, o mantinha seguindo como sempre a orientação de Moscou. Se agora deveria buscar agir conquistando espaços de poder dentro da democracia brasileira, é o que faria. Mas não foi sem trauma: uma boa parte dos membros do comitê central era stalinista e não estava disposta a abandonar a luta pela qual dedicara sua vida.

Dois dos principais líderes históricos da legenda, João Amazonas e Maurício Grabois, refundaram o Partido Comunista do Brasil. Agora, com a sigla PCdoB. Conforme a nova ditadura veio, em 1964, mantiveram-se fiéis aos princípios antigos e mergulharam na luta armada, coisa que o PCB não fez. O novo partido, ou o partido renascido, se ligou à China de Mao Zedong. E, com afeto, quem permaneceu no PCB começou a se referir a ele como Partidão. Como quem sutilmente diz que aquele é o original.

Desde então ambos disputam a descendência.

Ato 6

O último secretário-geral do Partidão foi seu candidato a presidente em 1989, o pernambucano Roberto Freire. Junto ao comando do PCB, seguiu a tradição de acompanhar as mudanças do PCUS. Quando a Perestroika de Mikhail Gorbachev veio, o PCB a seguiu. E quando a União Soviética acabou, o PCB virou Partido Popular Socialista (PPS). Hoje é o Cidadania, uma legenda que tem entre os afiliados inúmeros liberais. Freire segue no comando.

O PCdoB passou os últimos anos debatendo, internamente, se não deveria mudar de nome. Se a palavra ‘comunista’ não evoca um passado ditatorial que mais atrapalha do que ajuda na compreensão do que a sigla considera representar. Terminou por não mudar — e, ao não mudar, perdeu seu principal líder, o governador maranhense Flávio Dino, que se transferiu para o PSB.

E, ora, há um novo PCB, refundado em 1994. Que, evidentemente, se diz o único e real herdeiro daquele partido fundado em 1922. É um nanico — em 2020, não elegeu nenhum vereador em todo o país. Mas vem ganhando espaço nas redes sociais, puxado por jovens militantes como o youtubber Jones Manoel. Ainda defendem Stálin.

Neste fim de semana, os três garantem serem os únicos celebrando o centenário.

PowerPoint, uma ameaça à honra

Por Bruna Buffara e Giullia Chechia

Setas vermelhas. Letras garrafais. Palavras vagas e “culpado” escrito em vermelho em cima da foto de um acusado. Mesmo com design questionável, várias pessoas foram condenadas em júris norte-americanos por apresentações em PowerPoint argumentativas. O uso da semiótica é comum. Afinal, pela Justiça dos Estados Unidos, o uso de powerpoints é costumeiro, mas regulamentado pelo uso justo. Ou seja, não há espaço para sentimentalismos, para não contaminar o júri. Mas os slides contam outra história.

Podem parecer visualmente “pobres”, mas a escolha dos elementos é minuciosa — não à toa alguns advogados dos EUA chamam esses slides de “ferramenta de persuasão”. A letra em vermelho segue a teoria da cor mais básica - e humana - que temos. Vermelho nos remete sangue, violência, impacto. Logo, na mente do júri, o acusado se torna culpado.

O uso dessa ferramenta para promotores persuadirem o júri é, inclusive, ensinada em faculdades de direito americanas. E seu uso, apesar de sempre ter de ser pautado no “uso justo”, é amplamente debatido. Afinal, o que é um uso com justiça? No caso de Jay Earl McKague, sua sentença, em 2009, após o uso do powerpoint, foi de prisão perpétua sem direito à liberdade condicional. A má conduta do promotor em vista da linguagem visual usada nos slides fez com que, em 2014, McKague tivesse um novo julgamento. Nessa segunda chance e sem slides inflamatórios, Jay foi condenado a cinco anos na prisão, dos quais já tinha cumprido três. Ele é apenas um dos casos nos quais o promotor usou mais da parte da persuasão do que da ferramenta. Mas dentro ou fora dos tribunais da Justiça, a lei é clara: não se pode cometer crimes contra a honra.

Nesta terça-feira, 22, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o ex-procurador Deltan Dallagnol deve indenizar em R$ 75 mil o ex-presidente Lula (PT) por danos morais. Por “ataques à honra”, a apresentação de slides à imprensa que o então coordenador da Lava-Jato fez em setembro de 2016 desencadeou a indenização. A similaridade com o slide de Jay Earl McKague é visível, palavras vagas, sentimentalismo e o uso da semiótica como estratégia. A Corte compreendeu que, ao passo em que usou o PowerPoint para explicar à imprensa a denúncia da Operação Lava-Jato contra o petista envolvendo o tríplex no Guarujá, Dallagnol explorou expressões que não constavam na denúncia com o objetivo de ferir a imagem do ex-presidente. Mais tarde, Lula foi condenado e preso neste caso. Corrigido desde a data da entrevista, o valor que o ex-procurador terá de pagar a Lula ultrapassa R$ 100 mil.

Na ocasião em questão, o então coordenador da Lava Jato se encontrava em um hotel, numa coletiva de imprensa que ocorria dentro de uma sala lotada de jornalistas. Vestindo um terno bem ajustado com camisa e gravatas azuis, ele se posicionava de pé, frente à projeção de um PowerPoint – também azul, que centralizava o nome “Lula” em meio a diversas acusações, apontando o ex-presidente como figura central de um esquema de corrupção. Antes de iniciar a apresentação, Dallagnol alertou os presentes. “Hoje o Ministério Público Federal acusa o senhor Luiz Inácio Lula da Silva como comandante máximo do esquema de corrupção identificado na Lava Jato. (...). Passaremos a apresentar o conjunto de evidências e de contexto que nos fazem concluir, para além de qualquer dúvida razoável, que Lula foi comandante do esquema criminoso descoberto pela Lava-Jato. (...) Essas provas demonstram que Lula era o grande general”, disse.

Em entrevista ao Meio, o professor da pós-graduação em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marcos Florêncio explicou que o STJ entendeu que o ex-procurador extrapolou os limites de suas funções ao utilizar qualificações desabonadoras da honra e da imagem do ex-presidente Lula. “A Corte também compreendeu que Dallagnol empregou uma linguagem não técnica ao participar da coletiva de imprensa, projetando e verbalizando termos como ‘Petrolão’, ‘propinocracia’, ‘esquema do mensalão’ e ‘governabilidade corrompida’. Imputando ainda a Lula fatos que não constavam da denúncia explicada na coletiva, como quando usou termos como ‘comandante máximo do esquema de corrupção’ e ‘maestro da organização criminosa’. Em síntese, a acusação deve ser regida pela precisão, certeza, densidade e coerência, assim como sua exposição ao público, quando isto se realizar”, analisou. O professor ainda pontuou que, com o objetivo de se promover o devido processo legal, “a denúncia deve ser o espelho fiel das investigações” – o que não teria ocorrido no PowerPoint de Dallagnol. “Ao afastar-se de tais premissas, a conduta do ex-procurador caracterizou um evidente abuso de exposição acusatório”.

PowerPoint e a Justiça no Brasil

Como explicou Florêncio, o PowerPoint nada mais é do que um recurso de apresentação. Portanto, não existem leis que regulam seu uso em processos ou denúncias, assim como não existem leis que regulam o uso da lousa, de quadros brancos ou quaisquer ferramentas de exposição. De acordo com ele, “o que se regula são condutas, que podem caracterizar ilícitos civis ou penais, com suas respectivas sanções”. Desta forma, a ferramenta pode ser usada pela acusação, como quase fez Dallagnol, se não fosse o conteúdo apresentado.

“A atividade acusatória é um pilar das democracias modernas, desde que bem manejadas. O ex-procurador, no entanto, extrapolou os limites do exercício de sua função, excedeu-se na acusação, transformando-a num ato midiático de grandes proporções, além de desrespeitar a regra de tratamento de presunção de inocência – não basta presumir alguém inocente, é preciso tratá-lo como inocente, até a condenação em julgado. A Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, trata no artigo 43 sobre os deveres dos membros do Ministério Público, trazendo no inciso IX o seguinte comando: ‘tratar com urbanidade as partes, testemunhas, funcionários e auxiliares da Justiça’. O que se viu, porém, no episódio em discussão, foi um tratamento desarrazoado e incompatível com o Estado Democrático de Direito, o qual pressupõe o princípio da presunção de inocência”, explicou.

Matemática, para que te quero?

Você deve ter utilizado nesta semana algum aplicativo baseado em GPS, seja para pedir um Uber ou 99 ou localizar um restaurante próximo de onde estava. Ou fez uma compra online com cartão de crédito. Talvez você já saiba que quando fez a última busca no Google, os resultados apresentados na tela não eram exatamente os mesmos que outra pessoa no mesmo bairro recebeu quando fez a mesma pesquisa, porque eles são personalizados. Talvez você não tenha notado, mas tudo isso só foi possível graças à matemática.

Porque está escondida nas aplicações, a matemática passa despercebida aos seus usuários no dia a dia, mas ela está presente, desde uma ligação pelo celular até ao assistir uma partida de futebol pela televisão. Os jogos são filmados com câmeras de alta resolução, muitas vezes em 4K. Se todos os objetos nas imagens recebessem o mesmo tratamento, os sistemas de transmissão não dariam conta de entregar todos os dados gerados. Por isso, é feito uma filtragem das imagens para que apenas o essencial chegue nas telas em alta resolução. “A grama não precisa ter muito detalhe na imagem, mas a cara do Cristiano Ronaldo precisa vir em full HD”, brinca o diretor-geral do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA), Marcelo Viana. Esse filtro é feito em tempo real utilizando matemática.

Mesmo sendo tão importante, o ensino de matemática no Brasil segue o ritmo dos mesmos problemas encontrados nas demais disciplinas ensinadas nas escolas regulares. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) de 2018 revelou que 68,1% dos estudantes brasileiros de 15 anos de idade não possuem o nível básico da matéria, considerado o mínimo necessário para exercer a cidadania. Pisa é o maior estudo sobre educação do mundo e acontece a cada três anos. Em razão da pandemia de covid-19, não foram realizados os testes previstos para a avaliação no ano passado.

Problemas e desafios

Apesar do esforço em investimentos, o Brasil se preocupou muito mais com o aspecto quantitativo no ensino, em detrimento da qualidade. Isso explica o porquê de termos uma defasagem no aprendizado da disciplina nas escolas, mesmo tendo um número de aulas muito significativo na grade curricular. “Não tivemos tanta preocupação com o aspecto qualitativo, com a avaliação de desempenho dos professores, com incentivos para que eles ensinem melhor”, explica Marcelo Viana. “O professor no Brasil não tem nenhum incentivo a ser um bom profissional, embora muitos sejam por vocação.”

Para Viana, os instrumentos de avaliação, como o Saeb e a Prova Brasil, são mais voltados para avaliar as escolas, quando o foco deveria ser nos profissionais. “A meu ver, o calcanhar de Aquiles está no professor, na formação, no reconhecimento do desempenho do professor. É aí que nós perdemos a batalha. E a maneira de ganhar é criando instrumentos para que bons professores sejam distinguidos como tal e tenham acesso também a recursos, tanto de dinheiro quanto de formação.”

Para o pesquisador do Centro de Matemática da Universidade de Coimbra Edgard Pimentel, o problema na qualidade do ensino da matemática passa pela clareza nos objetivos educacionais. “Será que a gente está preocupado com a forma como o ensino equipa as pessoas para a dignidade? Será que a gente está, de fato, preocupado como o ensino, hoje, afeta o progresso tecnológico daqui a cem anos? Será que estamos preocupados com a autonomia que o ensino de qualidade oferece às pessoas?”

Autonomia é uma palavra importante quando buscamos entender a necessidade de aprender matemática. “É aquela história. Vai todo mundo para o bar, aí chega a conta, e o sujeito diz ‘ah, tomei três chopes e já não sei mais fazer a conta. Divida a conta aí para mim’, todo mundo dá risada e acha bonito”, exemplifica o pesquisador. “Mas se o cara falasse ‘depois de três chopes eu não sei ler a conta’, ele teria vergonha. A autonomia com o uso da matemática é dominar essa estrutura. Eu acho que um ensino de qualidade passa por isso.”

Para que investir

Países como Estados Unidos, Austrália, Reino Unido, Holanda e Canadá têm investido em formação nessa área do conhecimento, que contribui para o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de suas economias, tanto em setores indiretos como o de serviços, que inclui bares e hotéis, quanto diretamente em tecnologia, informação e segurança.

Estudos nesses países mostraram que o uso de matemática avançada pelas empresas de engenharia, tecnologia da informação, aeronáutica e fármacos fez o PIB de suas nações crescer em torno de 15%. Trazendo para nossa realidade, considerando o PIB brasileiro do ano passado, o investimento em matemática poderia ter trazido R$ 1,3 trilhão em riquezas. Isso a cada ano.

Para Edgard Pimentel, investir no desenvolvimento da matemática é importante “porque ela é barata, gera uma riqueza profunda e o investimento hoje se multiplica pelo futuro”.

Fuga de cérebros

Com o desmantelamento da ciência nos últimos anos, associado à situação política e econômica do Brasil, boa parte da massa crítica nacional foi buscar estabilidade no exterior, incluindo profissionais matemáticos. “Se você olhasse uma mesa de boteco no Rio de Janeiro em 2018, essa mesma mesa hoje poderia se reunir na Europa, se a União Europeia fosse um grande boteco”, brinca Pimentel, que viu uma saída em massa de mão de obra qualificada para seguir carreira fora do país.

“O mais trágico de tudo é que evidentemente são os melhores que estão indo embora. São os que têm mais acesso a ofertas de posições muito prestigiosas de empregos e de recursos no exterior”, comenta o diretor-geral do IMPA, Marcelo Viana. “A pesquisa científica é um processo contínuo, transmitido do cientista mais sênior para o mais jovem e se nós quebramos esse processo, vamos passar por um período de decadência da nossa pesquisa científica. É urgente voltar a apoiar a ciência brasileira.”

E para fechar essa edição, os assuntos em que nossos leitores mais clicaram essa semana:

1. Twitter: O ex-presidente Lula respondeu à condenação de Deltan Delagnol com outro slide.

2. Money Times: Telegram reconhece sua negligência e pede desculpas ao STF.

3. Núcleo: Ponto a ponto das respostas do Telegram ao STF.

4. g1: Telegram cumpre decisões e Moraes revoga ordem de bloqueio do aplicativo.

5. g1: Alexandre de Moraes determina suspensão do Telegram em todo o Brasil.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk
Edição de Sábado: Eu, tu, eles
Edição de Sábado: Condenados a repetir
Edição de Sábado: Nísia na mira
Edição de Sábado: A mão forte de Lula

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)