O aborto nos EUA e o indulto no Brasil

Possível reversão da Roe vs Wade mostra como as regras feitas para proteger minorias, no passado, hoje ajudam a retirar seus direitos

Ao que tudo indica, a Suprema Corte dos Estados Unidos reverterá a decisão Roe vs Wade, tomada em janeiro de 1973, que havia declarado inconstitucional proibir o aborto no país. Na noite da segunda-feira, o site Politico vazou o rascunho do que aparenta ser o voto da maioria, com o apoio de cinco dos nove juízes. Alguns estados já têm prontas leis proibindo a prática de forma bastante rígida assim que o veto constitucional cair. De longe, parece uma questão interna americana. Pode ser lida, num contexto global, como um perigoso retrocesso nos direitos das mulheres. Mas a história de como a Corte chegou a esta decisão vai muito além. Ela narra o processo de como um pequeno grupo no poder pode sequestrar uma democracia, corromper seus pilares, atropelar os direitos daqueles em posição mais frágil numa sociedade e impor sobre todos a visão de uma minoria radicalizada. Compreender este processo não ensina apenas sobre a política americana mas também sobre a brasileira.

Esta é uma história que passa por duas novidades. Uma é que dispositivos que nasceram junto com as democracias para impedir que as maiorias formadas pelo voto oprimissem minorias deixaram de funcionar. Outra é que havia na política, apesar de todos os conflitos, uma compreensão de que era bom para todos que as regras não escritas fossem seguidas. Isso acabou.

Hoje, a Suprema Corte americana é composta por três ministros de inclinação progressista, um moderado e cinco conservadores. Como no Brasil, os juízes são nomeados pelo presidente e aprovados pelo Senado. Nas seis eleições presidenciais que ocorreram de 2000 para cá, candidatos progressistas, aqueles do Partido Democrata, receberam mais de metade dos votos em cinco delas. Em todos os anos nos quais houve eleições para senador, democratas receberam, nacionalmente, mais votos do que republicanos. Em 2018, por exemplo, quase 56% dos votos foram para candidatos progressistas e 43% para conservadores. Esta proporção nas eleições, tanto para a presidência quanto para o Senado, é refletida pelas pesquisas a respeito do direito ao aborto. Uma delas, divulgada nesta terça-feira e realizada a pedido de ABC News e Washington Post, indica que 58% dos americanos defendem que o aborto deveria ser legal em todo o país. 54% acreditam que a Corte não deveria mexer em Roe vs Wade.

Se o voto para presidente e Senado é para candidatos progressistas, o que corrobora a opinião pública nas pautas ligadas aos direitos civis, como pode a Suprema Corte ter se tornado tão profundamente conservadora, descolada do americano médio?

Dois problemas

Começa por aquelas regras inicialmente criadas para proteger minorias.

Embora os democratas tenham ganhado cinco de seis eleições no número total de votos, elegeram três presidentes. Al Gore e Hillary Clinton tiveram mais votos do que George W. Bush e Donald Trump, porém as regras do Colégio Eleitoral terminam por fazer com que o voto em alguns estados tenha mais peso do que o em outros. Este tipo de evento — o candidato que vence no voto popular perde no Colégio — só havia acontecido uma vez na história, mas tornou-se comum neste século. E a composição do Senado é contramajoritária. Todo estado, grande ou pequeno, elege sempre dois senadores. Com seus menos de 700 mil habitantes, o Wyoming tem a mesma representação do que a Califórnia, com 40 milhões. É assim propositalmente, para impedir que democracias se tornem ditaduras da maioria. Ocorre que as distorções eram pequenas no mundo rural e de baixa densidade populacional dos séculos 18, 19 e mesmo por boa parte do 20. Mudou. Estados mais populosos e urbanos, cosmopolitas, tendem a ser progressistas. Os mais rurais e menos habitados, conservadores. É um fenômeno não apenas americano, mas global.

Pois é: a intenção tanto do Colégio Eleitoral quanto do número fixo de senadores por estado era incentivar representação daqueles grupos com mais dificuldade de ter suas vozes ouvidas. Nas últimas quatro ou cinco décadas, em todas as democracias houve um processo de expansão dos direitos para aquelas parcelas da população com menos voz. Direitos para mulheres, para negros, populações nativas, para a comunidade LGBTQIA+. E esse processo ocorreu ao mesmo tempo em que vinham as mudanças demográficas que tornaram os países mais urbanos, com grandes cidades mais diversas. O interior se tornou menos populoso e, culturalmente, mais homogêneo.

Se antes as fórmulas contramajoritárias aumentavam a representação de quem não tinha voz, hoje fazem o contrário. Aumentam a representação de quem deseja negar direitos aos grupos com menos poder.

E, aí, entra o jogo sujo. Em 2002, o jurista Mark Tushnet, de Harvard, cunhou a expressão Constitutional Hardball. É habitualmente traduzida para o português como jogo duro constitucional. O professor Rubens Glezer, da Escola de Direito da FGV, defende adotar uma versão mais abrasileirada. Catimba constitucional.

Nenhum artigo constitucional, como nenhuma lei, tem como prever no texto todas as circunstâncias em que pode ser aplicado. Não bastasse, muito de como a política funciona se baseia em tradições mais do que regras escritas. A trapaça, a catimba, ocorre quando, sem quebrar a lei, a barra é forçada por quem tem maioria.

As regras são manipuladas, as tradições rompidas, tudo pela conveniência do grupo com poder momentâneo. No esporte, seria jogo desleal.

As consequências

A maioria dos senadores, nos EUA, representa uma minoria que deseja cercear direitos daqueles com menos poder na sociedade. Por isso mesmo, estes eleitores vêm elegendo políticos cada vez mais radicalizados. Em 2016, este Senado se recusou por quase um ano a avaliar um candidato à Suprema Corte proposto pelo então presidente Barack Obama. A lei não estabelece um prazo para avaliação — apenas diz que o presidente indica um nome, senadores fazem a sabatina, aí aprovam ou não. Em 2016, rompendo a tradição, a praxe nunca escrita, simplesmente se recusaram a fazer qualquer avaliação e assim, na prática, tiraram do presidente seu poder constitucional. Aí, um ano depois, Donald Trump eleito indicou um candidato ultraconservador. Em 2020 ocorreu o contrário. Uma ministra da Corte morreu um mês antes da eleição presidencial — aí, correram para aprovar. A praxe estabelecida por uma tradição com mais de século, dado que a eleição ocorreria logo ali, era esperar que os eleitores se manifestassem a respeito de quem gostariam e ver na Casa Branca.

O comportamento de políticos que trocaram o jogo cordial pela catimba constante levou a uma maioria na Suprema Corte que não mais representa a visão do americano médio. Ao que tudo indica, os EUA serão um dos raros países do mundo a reverter a legalização do aborto. No mesmo rascunho de decisão, a Suprema Corte acena que tem planos de reverter também a possibilidade do casamento homoafetivo.

É o mesmo jogo duro constitucional que levou o presidente Jair Bolsonaro a desmontar a estrutura de combate à corrupção que o Estado brasileiro teve. Ou a entrar em choque com o Supremo Tribunal Federal perdoando um deputado que havia incitado a militância a partir com violência física contra os ministros da Corte. Também no Brasil, por conta da maneira como funcionam as eleições proporcionais, cidades pequenas e médias elegem mais parlamentares — na Câmara dos Deputados e no Senado — do que as cidades grandes, onde a maioria da população está concentrada. O Orçamento Secreto nas mãos do Centrão, ora, é outro exemplo de jogo duro constitucional. A lei não foi escrita para ser aplicada deste modo, mas como não proíbe de forma clara, torna-se possível.

Nunca um presidente da Nova República havia manipulado tantas regras, criando leituras heterodoxas, para o benefício de seu grupo e apenas. Jogo duro constitucional, sugere o cientista político Steven Levitsky, é um dos processos que levam democracias à morte.


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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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