Edicão de sábado: O político camuflado

Por Maiá Menezes e Flávia Tavares

Na manhã do dia 10 de agosto de 2021, o céu de Brasília estava aquele deslumbre de sempre. Um proverbial céu de brigadeiro, condizente com a parada militar que aconteceria na praça dos Três Poderes. Uma centena, se tanto, de camisas verde-amarelas vibravam a cada um dos 40 tanques e caminhões que atravessavam a larga avenida. Na rampa do Planalto, os chefes das Forças Armadas, fardados, assistiam ao desfile, ladeados por outros dois militares, esses trajados de ternos. Um, o presidente da República, o capitão reformado Jair Bolsonaro. O outro, o então ministro da Defesa, idealizador da parada, o general da reserva Walter Souza Braga Netto.

Os sorrisos contidos de Braga Netto reprimiam seu fascínio por tanques de guerra. No figurino civil ou no militar, a discrição marca a atuação do general, na reserva desde fevereiro de 2020. Mas sua desafetação não é sinônimo de comedimento. O desfile aconteceu no dia em que a Câmara dos Deputados votava a PEC do voto impresso, que foi derrotada. E foi tido como um gesto claro de intimidação, enfraquecido pelas más condições do equipamento exibido.

Braga Netto defendeu, em depoimento na Câmara, que a parada estava planejada havia coisa de um ano e que, por deferência, consultou Arthur Lira, presidente da Casa, e Ciro Nogueira, ministro da Casa Civil. O general revelava ali dois traços fundamentais de sua atribuição no governo Bolsonaro: o total alinhamento ao chefe e a habilidade de dialogar com o Centrão — e agradá-lo. O episódio é a síntese dessa nociva mistura entre política e quartel, normalizada pelo atual governo e base da tentativa de sua reeleição. Braga Netto é o mais que provável vice na chapa de Bolsonaro.

Voto em xeque

Entender a ação de Braga Netto como um dos mais importantes interlocutores de Bolsonaro é uma forma de ler os acontecimentos das últimas semanas, em que o presidente voltou às trincheiras contra o processo eleitoral brasileiro e seu guardião, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Braga Netto é do grupo de militares que faz coro e até estimula o presidente a atacar a Corte, apesar de, oficialmente, o Exército negar qualquer tipo de interferência. Tem também livre acesso a Bolsonaro, que o atende sempre que ele solicita.

Há dissidências na Força sobre a estratégia de levantar dúvidas sobre o sistema eletrônico. Em janeiro último, quando Braga Netto ainda ocupava a pasta da Defesa, o ministério apresentou ao TSE documento sigiloso com dúvidas a respeito de 55 pontos das eleições. Em abril, o então presidente do tribunal, ministro Luís Roberto Barroso, chegou a apelar contra a atuação política de militares. “Assistimos repetidos movimentos para jogar as Forças Armadas no varejo da política. Isso seria uma tragédia para a democracia e as Forças Armadas, que levaram três décadas para se recuperarem do desprestígio do regime militar”, disse Barroso, causando mal-estar na caserna.

O atual ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, divulgou, então, uma nota agressiva, submetida antes a Bolsonaro, classificando as falas de Barroso como irresponsáveis e uma ofensa grave. Oliveira ainda pediu ao ministro Edson Fachin, sucessor de Barroso na presidência da corte, que o TSE divulgue as “propostas de aperfeiçoamento e segurança do processo eleitoral” feitas pela Defesa.

É nesse ambiente que Braga Netto vem desempenhando sua missão de figura anfíbia. Nos bastidores, é atribuída a ele a ideia de sugerir a apuração paralela de votos pelas Forças Armadas, aventada por Bolsonaro em sua live semanal, no dia 28 de abril. Um mês e meio antes, no dia 16 de março, ainda como ministro da Defesa, foi recebido por Fachin para discutir eleições. Metade militar, metade político.

A conduta de Braga Netto é o que integrantes do governo e pesquisadores chamam de “contaminação política da Força”. A literatura voltada ao estudo do trabalho dos militares destaca prós e contras do flerte dos fardados com a política.

O cientista político norte-americano Samuel Huntington, por exemplo, analisa em O Soldado e o Estado, livro clássico, o papel dos homens da caserna nos Estados Unidos depois da Segunda Guerra. Em sua teoria, os militares teriam papel similar ao clero ou aos advogados. Mais técnicos e próximos da burocracia, não teriam no DNA a tendência a se politizarem. A realidade, tanto nos EUA como no Brasil, indica que essa mistura já se deu.

A carreira militar

De 16 de fevereiro a 31 de dezembro de 2018, Braga Netto comandou a intervenção federal na Segurança Pública no Rio de Janeiro, indicado por Raul Jungmann, que foi ministro da Defesa e da Segurança Pública do governo tampão de Michel Temer, responsável por voltar a prestigiar politicamente os militares.

Em seu livro de memórias A Escolha, Temer relata os diversos encontros que manteve com o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, e o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Estado-Maior da Força, entre 2015 e 2016, antes do impeachment de Dilma Rousseff. Etchegoyen, inclusive, seria depois nomeado ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), recriado por Temer.

Na intervenção, Braga Netto era avesso a entrevistas e irredutível quanto a uma eventual exposição de sua família. Morava em área militar na Urca, Zona Sul do Rio, e comandava a operação decisiva para o momento de crise que o estado vivia naquele 2018 diretamente do Comando Militar do Leste.

Braga Netto é mineiro, mas fez sua carreira principalmente no Rio. Ele se formou na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), onde estudou de 1975 a 1978 — assim como o ex-ministro Fernando Azevedo e Silva e o presidente Bolsonaro, todos contemporâneos, mas em diferentes turmas. É parte de uma geração de militares que não se conforma com a coxia da política.

O general tem no currículo, entre outros, o título de doutor em Aplicações, Planejamento e Estudos Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, em 1994. Ele é pós-graduado em Gestão da Informação pela FGV, em 1999, e também no Curso de Política, Estratégia e Alta Administração do Exército, em 2006.

A diplomacia também é parte consistente da carreira de Braga Netto. Foi adido militar na Polônia, entre 2005 e 2006. Era coronel. Foi promovido a general em novembro de 2009 (governo Lula). Três anos depois se tornou adido militar nos Estados Unidos e no Canadá. Em outro governo petista, da presidente Dilma Rousseff, recebeu condecoração de alto valor em seu meio: se tornou Grande-Oficial da Ordem do Mérito Militar.

Em 2013, foi nomeado coordenador geral da assessoria especial dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos do Rio. Em 2015, assumiu o comando da 1a Região Militar. No ano seguinte, foi promovido a general de exército, ou general de quatro estrelas, e comandante Militar do Leste, onde permaneceu até 2019. Dali, foi designado a chefe do Estado-Maior do Exército, seu último cargo puramente militar.

Currículo de general graduado, com alguma expertise em política. Algumas pistas já se viam na atuação do general na intervenção no Rio. Para além da inteligência e da estratégia, o general encontrava-se com alguma frequência com o juiz responsável pela Lava-Jato no estado, Marcelo Bretas. Sem exposições, sem holofotes.

Entre os militares no governo, é notória a percepção de que Braga Netto ajudou a articular a saída do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, em março de 2021. Azevedo e Silva tinha um perfil mais moderado, era favorável aos lockdowns pandêmicos. No dia seguinte à demissão de Azevedo e Silva, os comandantes do Exército, Edson Pujol; da Marinha, Ilques Barbosa; e da Aeronáutica, Antônio Carlos Moretti Bermudez, pediram renúncia coletiva de seus postos. Quem assumiu a Defesa e reestruturou as chefias militares, mais alinhadas ao capitão Bolsonaro, foi Braga Netto.

Na primeira nota que soltou no cargo, na véspera do aniversário do golpe militar, ele dizia que “o movimento de 1964 é parte da trajetória histórica brasileira” e assim deviam ser “compreendidos e celebrados” os acontecimentos de 31 de março daquele ano. Na mesma data, mas já em 2022, foi além e disse que o golpe foi “um marco histórico da evolução política brasileira”.

Por essas e muitas outras, Braga Netto é quadro respeitado nas corporações. Diferentemente do também general Hamilton Mourão, atual vice, que diversas vezes deu declarações em colisão com o mandatário-chefe, Braga Netto mantém fidelidade canina — atributo admirado entre os militares.

A carreira política

Braga Netto foi para a reserva em fevereiro de 2020, quando convidado por Jair Bolsonaro a assumir a secretaria da Casa Civil. Não que precisasse estar na reserva para ocupar cargo no governo — isso já era permitido por até dois anos e, em 2021, em decreto de Bolsonaro assinado por Braga Netto, passou a ser permitido por tempo indeterminado.

O general foi o primeiro militar a ocupar o cargo desde 1981. Sua chegada se deu na esteira da desastrosa articulação política de Onyx Lorenzoni, transferido para o ministério da Cidadania. E consolidou a presença dos militares no Palácio do Planalto. Os outros três postos com salas na sede do governo eram, então, ocupadas pelo general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional); general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo); e major da Polícia Militar Jorge Oliveira (Secretaria-Geral).

O contrassenso democrático de se instalar um militar na Casa Civil, para fazer articulação política e coordenar as ações de um governo, faz total sentido no universo de Bolsonaro. Na famigerada reunião de 22 de abril de 2020, aquela do “passar a boiada”, era o general que comandava o encontro. Braga Netto foi, na função de ministro da Casa Civil, coordenador do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19. E um dos episódios em que a atuação de Braga Netto mais o aproximou do presidente foi, já como ministro da Defesa, durante a CPI da Covid.

Omar Aziz, senador que presidia a comissão, fez uma declaração forte no dia em que decretou a prisão em flagrante, por falso testemunho, do ex-diretor de Logística do Ministério da Saúde Roberto Ferreira Dias, que foi controlador de voo da Força Aérea Brasileira (FAB). “As Forças Armadas, os bons das Forças Armadas devem estar muito envergonhados com algumas pessoas que hoje estão na mídia, porque fazia muito tempo, fazia muitos anos que o Brasil não via membros do lado podre das Forças Armadas envolvidos com falcatrua dentro do governo. Fazia muitos anos. Aliás, eu não tenho nem notícia disso na época da exceção que houve no Brasil, porque o Figueiredo morreu pobre, porque o Geisel morreu pobre, porque a gente conhecia... ”

Em resposta, Braga Netto, então ministro da Defesa, emitiu uma nota, assinada também pelos comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier Santos; da Aeronáutica, brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior; e do Exército, general Paulo Sergio Nogueira de Oliveira. “As Forças Armadas não aceitarão qualquer ataque leviano às instituições que defendem a democracia e a liberdade do povo brasileiro”, dizia parte do texto. O relatório final da CPI, com 1.299 páginas, sugeria o indiciamento de 78 pessoas, incluindo Bolsonaro e Braga Netto. Até agora, ninguém foi oficialmente indiciado.

Essa batalha com a CPI da Covid foi travada em julho de 2021. Um mês antes do desfile de tanques sucateados e no mesmo mês em que o Estadão noticiou que Braga Netto fez chegar a Arthur Lira uma ameaça explícita, por um intermediário político. Segundo o jornal, o general pediu para avisar, a quem interessasse, que, sem voto impresso e auditável, não haveria eleições em 2022. Lira e Braga Netto negaram. A Procuradoria-Geral da República abriu uma “investigação preliminar” para apurar a ameaça. Não se tem notícia de conclusão.

Hoje, Braga Netto está como assessor da Presidência da República. Deixou a Defesa para se filiar, em cerimônia secreta, ao PL e viabilizar sua candidatura a vice. É mais político que militar, oficialmente. Mas segue no posto de general-mór do governo Bolsonaro.

Pandemia e precarização do trabalho, uma visão

A pandemia no Brasil chegou ao fim por decreto. Não é mais uma emergência para o governo brasileiro. Perdas que chegaram a 4.211 pessoas por dia aparentemente pararam de assustar. Agora, o país lida com a realidade de 11,9 milhões de brasileiros desempregados; custos básicos em altas históricas; e um botijão de gás comprometendo 9,4% do salário mínimo.

O Meio abre hoje um debate sobre mercado de trabalho brasileiro e vai ouvir especialistas de diferentes correntes. Nesta semana, fala o professor Vitor Araújo Filgueiras, pós-doutor em Economia pela Unicamp e professor visitante da Universidad Complutense de Madrid — ele traz a visão nacional-desenvolvimentista do assunto. Filgueiras é vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho (Abet) e foi auditor fiscal do Ministério do Trabalho entre 2007 e 2017. Na semana que vem, ouviremos um pesquisador do campo liberal.

Podemos falar que a pandemia foi a principal culpada pela precarização do mercado de trabalho brasileiro?

Não é simples assim. A associação direta entre pandemia e precarização parte de um pressuposto que não existe. A pandemia traz um risco de contaminação e implicações sérias sobre atividades em geral, sim. Mas podem se adotar políticas públicas para enfrentar o desemprego, que é gravíssimo, mas não inexorável. A pandemia se associou à continuidade de políticas públicas que pressupõem que o nível de emprego está relacionado ao custo de trabalho. Temos políticas que tentam atenuar esses custos, o que não resolve o desemprego e ainda precariza mais o mercado de trabalho.

Qual seria o caminho?

Um exemplo é a Coreia do Sul, que, durante o auge da pandemia, conseguiu manter a taxa de desemprego em até 3%, mesmo com todos os cuidados sanitários. Lá, as políticas de Estado são focadas na manutenção do nível de atividade e do emprego, que é oposta à política da austeridade brasileira. Presume-se que, ao se cortar gastos públicos, resolve-se a economia. Mas essa política contracionista agrava o desemprego. Na pandemia, não houve aumento de gastos para manter atividades econômicas. Assim, além de agravar o desemprego, temos a precarização dos empregos que subsistiram.

Qual o paralelo entre os empregos que subsistiram e a precarização? 

Temos dois grandes problemas. Um é o crescimento dos aplicativos de entrega. Há um consenso global de que os entregadores são empregados e têm direitos, mas o governo brasileiro optou por deixar um trator passar por cima, permitindo a contratação como autônomos, em vez de efetivar uma legislação que dificultasse a precarização desses trabalhadores. Essa atividade foi uma das que mais tiveram destaque na mídia durante a pandemia e não proteger esse entregador foi uma escolha deliberada. O segundo problema é o do trabalho remoto. Houve uma expansão imensa desse regime com a pandemia e aqui foi adotada uma lei trabalhista que era recente e não garantia proteções básicas ao trabalhador.

Você poderia dar um exemplo de uma medida protetiva?

A reforma trabalhista da Espanha, por exemplo, foi bem protetiva na regulação do trabalho remoto. Ela dá mais poder ao trabalhador, obrigando o empregador a arcar com os custos operacionais das atividades, controle de jornada e normas de segurança. A consequência imediata dessa reforma foi o crescimento do emprego, tanto precário como de qualidade. Mas a pegada é que, investindo em criação de emprego de qualidade, você gera um ciclo virtuoso com mais poder de compra e mais retorno à economia interna.

Considerando a retomada do nível de ocupação de 2021 em relação a 2020, quais grupos foram responsáveis por isso?

A recuperação está muito associada ao crescimento do trabalho por conta própria e sem carteira assinada, aos autônomos. São dois grandes grupos: os entregadores dos aplicativos e ambulantes, eletricistas, etc. Pessoas que se inserem no mercado de trabalho sem patrão e de forma precária, por sobrevivência. Esses trabalhadores vão para as periferias das atividades econômicas mais estruturadas e não têm seguridade social. Com as novas tecnologias, seria fácil a inserção dessas pessoas na previdência pública, mas, de novo, não há interesse. Tudo isso é uma relação política.

Se é uma relação política, como agir coletivamente contra a precarização? Como a Grande Resignação dos EUA, por exemplo?

Os sindicatos estão muito fragilizados, principalmente após a reforma trabalhista. Nos EUA, a própria legislação é anti-sindical e a Grande Resignação (movimento de demissão em massa em que os trabalhadores questionam as condições precárias do trabalho) é a prova empírica de que políticas públicas incentivam a organização dos trabalhadores. A saída maciça dos trabalhadores de seus empregos só foi possível mediante políticas que garantiram seguridade social, que dão alguma estabilidade para que se sobreviva. Assim, as pessoas não estão desesperadas por trabalhos que paguem mal.

Se a redução dos custos de empregar um trabalhador não é solução, que políticas podem ajudar o empreendedor pequeno e médio? 

É preciso quebrar esse ciclo vicioso em que o empresariado crê que é possível ter protagonismo no desenvolvimento econômico às custas do rebaixamento das condições de trabalho. Se você mantém salários baixos, a tendência histórica comprovada é a satisfação com a alta lucratividade às custas da precarização da mão de obra. Essa satisfação não incentiva o desenvolvimento técnico. Se os salários são mais altos, você precisa buscar alternativas para aumentar o seu lucro. Normalmente, inovações técnicas são soluções para expandir a produtividade do seu trabalhador, que precisa ser visto como algo positivo.

Como seria esse crescimento sustentável com a ajuda de políticas públicas?

Existe uma maneira de se criar um ciclo mais positivo, que é gerar emprego de qualidade e com investimentos. A partir disso, pode-se usar a política cambial para evitar, em alguns setores, os tradables - a concorrência desleal. A política de transferência de tecnologia melhoraria a produtividade desses empresários que não têm capacidade isolada de fazer grandes investimentos em melhorias técnicas do seu processo produtivo. Aumento do crédito e facilitação dos juros também são necessários para os empreendedores médios. Agora, a questão essencial é a demanda pelo produto. Mas o desenvolvimento econômico brasileiro também depende que o empresariado nacional mude um pouco a sua postura e como enxerga o trabalhador.

Nova chance para um capitão esquecido

Foram necessários quase 60 anos para ser reparada uma injustiça histórica, mas finalmente o capitão Christopher Pike sentou-se na cadeira de comando da U.S.S. Enterprise sem servir de escada para ninguém. Estreou ontem na Paramount+ Star Trek: Strange New Worlds (Jornada nas Estrelas: Estranhos Novos Mundos, embora não haja título oficial em português), que é, ao mesmo tempo, mais uma série derivada do universo criado pelo roteirista e produtor Gene Roddenberry (1921-1991) e um retorno a sua concepção original. Vivido agora pelo ator Anson Mount, Pike pode ter conseguido o comando, mas será que conseguirá obter algo mais importante que lhe foi negado, o impacto cultural?

Em 1964, Roddenberry, já um roteirista respeitado, tinha uma ideia: uma série de ficção científica inspirada, entre outras fontes, nas aventuras de Horatio Hornblower, um heroico capitão da marinha inglesa na virada dos séculos 18 e 19, escritas por C.S. Forester (1899-1966). Queria fazer entretenimento para adultos. Conseguiu vende-la para a Desilu, produtora independente do casal de astros Lucille Ball e Dezi Arnaz, que financiou um piloto, A Jaula (os links remetem à Netflix) e o apresentou primeiro à CBS e depois à NBC.

‘Cerebral demais’

Na história, Christopher Pike (Jeffrey Hunter, um astro consagrado de Hollywood) comandava a Enterprise tendo como primeira-oficial a impassível Número Um (Majel Barrett) e como oficial de ciências o meio alienígena Sr. Spock (Leonard Nimoy). O roteiro, sobre um planeta cujos habitantes mantinham um zoológico de outras raças inteligentes, lidava com questões como realidade x percepção e o desejo por liberdade. E a NBC detestou.

Os motivos da rejeição foram vários. Para começar, a história era, na avaliação dos executivos, “cerebral demais” para o público americano. Também era inadmissível que uma mulher, a Número Um, fosse superior hierárquica a virtualmente todos os homens da tripulação. Ainda no campo do machismo, os uniformes de homens e mulheres eram iguais, sem realçar a formas femininas. Por fim, aquele sujeito de franjinha e orelhas pontudas parecia demais o diabo.

Entretanto, a NBC viu potencial no conceito e, num movimento raro, bancou um segundo piloto, e Roddenberry os obedeceu em quase tudo. O novo roteiro, Onde Nenhum Homem Jamais Esteve, era recheado de ação, a Número Um desapareceu e as mulheres a bordo foram embaladas em microssaias e botas de salto alto. Só do Sr. Spock ele não abriu mão. Mas eis que Jeffrey Hunter decidiu investir na carreira cinematográfica e recusou voltar ao papel de Pike. Em vez de simplesmente escalar outro ator, Roddenberry criou um novo capitão, James T. Kirk, vivido pelo canadense William Shatner. Ele, e não Pike, faria história.

Muitas raças, uma só espécie

Jornada nas Estrelas estreou em 8 de setembro de 1966 trazendo elementos incomuns para a TV americana, e não estamos falando da temática de ficção científica. A tripulação era multiétnica e com homens e mulheres trabalhando como iguais, premissa estabelecida como crucial por Roddenberry no guia da série. O ator George Takei, americano de ascendência japonesa, dizia que o piloto Sr. Sulu foi seu único personagem naquela década que não era um vilão.

A atriz e cantora negra Nichelle Nichols, que interpretava a tenente Uhura (adaptação da palavra uhuru, “liberdade” em swahili), a oficial de comunicação, estava insatisfeita com seu papel. No início de 1967, num encontro de militantes dos Direitos Civis, comentou com o reverendo Martin Luther King Jr. que pensava em pedir demissão. Levou uma bronca, no estilo Luther King, claro. Ela não podia desistir, disse o pastor, pois toda semana meninas negras viam na TV uma mulher negra que não era empregada, que trabalhava de igual para igual com homens e mulheres brancos. King, ela descobriu, era um grande fã da série.

Assassinado em 4 de abril de 1968, Luther King não viu a série romper uma barreira até então impensável. Em novembro daquele ano, no episódio Os Herdeiros de Platão, Kirk e Uhura protagonizaram o primeiro beijo entre uma pessoa negra e uma branca na TV americana, embora, no roteiro, os personagens estivessem sendo forçados. A NBC temia que a cena provocasse reação nos estados racistas do Sul, mas Nichelle Nichols recordaria que o episódio motivou o maior volume de correspondência elogiosa na série.

Uma ONU no espaço

Racismo não era o único tema em que a série ousava. Num momento em que os EUA travavam uma Guerra Fria com a União Soviética e uma bem quente no Vietnã, Roddenberry levava à telinha um futuro no qual a Terra estava unificada após conflitos que quase a destruíram. “Sempre achei, e continuo achando, que, se a Humanidade não aprender a viver junta, morrerá junta”, disse ele a Stephen Whitfield, autor, em 1968, da primeira “biografia” da série. Mais que pacificada, a Terra era integrante da Federação Unida dos Planetas, uma espécie de ONU galáctica, cujo braço de desbravamento, a Frota Estelar, era regida pela Primeira Diretriz, uma regra que proibia a interferência no desenvolvimento de outros povos.

Claro, era TV americana. Em 1967, o roteirista estreante David Gerrold apresentou sua proposta para o episódio Problemas aos Pingos: uma grande empresa sabota o fornecimento de sementes para uma colônia humana a fim de tomar o mercado de uma concorrente. A resposta da produção foi curta e grossa: “Big Business nunca são vilões na TV americana. Arranje alienígenas.” Os Klingons, a raça hostil de plantão, assumiram a sabotagem.

Glória depois do fim

A despeito da ousadia, ou talvez por causa dela, Jornada nas Estrelas não era um megassucesso. Além disso, sua produção era cara, e a NBC só não a cancelou na primeira temporada porque pesquisas mostravam que ela era vista por um público qualificado, gente como Luther King e o escritor Isaac Asimov. Ainda assim, a terceira e última temporada só aconteceu após uma mobilização pesada de fãs.

O fim da série, em junho de 1969 a transformou, paradoxalmente, num fenômeno. Num sistema chamado syndication, os episódios passaram a ser reexibidos por centenas de pequenas emissoras locais, atingindo um público muito maior que o da rede. Seus fãs formaram um grupo tão fiel que ganharam um nome próprio, os trekkies, com uma fação militante, os trekkers, capaz de passar dias discutindo o sistema de propulsão da Enterprise, nunca explicado nos episódios.

Uma série de desenhos animados, livros e merchandising pôs em movimento uma máquina de fazer dinheiro. Fãs organizavam convenções onde se comprava e vendia de tudo e aspectos técnicos da Enterprise eram motivos para brigas acaloradas. Uma segunda série começou a ser planejada sem Leonard Nimoy, que havia pegado ranço de Spock, mas a ideia foi trocada por longas para os cinemas após o sucesso de Guerra nas Estrelas (link no Disney+), em 1977.

Alguma coisa ficou para trás

Em 1987, diante dos lucros que a marca produzia, a Paramount encomendou de Roddenberry uma nova série. Ambientada quase cem anos após a original, Jornada nas Estrelas: A Nova Geração estreou em setembro daquele ano e foi um sucesso estrondoso. Muitos dos argumentos e personagens concebidos para a série abortada nos anos 1970 foram reaproveitados. O respeitado ator inglês Patrick Stewart emprestou seu vozeirão ao sisudo capitão francês Jean-Luc Picard, que comandou a Enterprise D por sete bem-sucedidas temporadas.

Mas, a despeito do sucesso e da qualidade da produção – um episódio chegava a custar mais que o orçamento de toda a série original –, o aspecto de desbravamento, de testar os limites do que se podia fazer em termos de conteúdo na TV aberta, não estava mais lá. Em parte, porque, nos quase 20 anos entre as duas séries, a sociedade e a mídia americana haviam mudado, os tabus eram outros. Também porque alguns princípios foram deixados de lado.

No oitavo episódio, Justiça, Picard viola abertamente a Primeira Diretriz para salvar o filho da médica de bordo, condenado à morte por um crime trivial aos olhos terráqueos, mas cujo princípio mantinha a paz e a ordem naquela sociedade. Uma superioridade moral ausente da série clássica. Não por acaso, é considerado um dos piores episódios da Nova Geração, pau a pau com o racista Código de Honra e o machista A Ordem Estabelecida, também da primeira temporada.

Muito do otimismo e da visão até um tanto ingênua de Roddenberry também desapareceu da série. Em filmes como Insurreição, de 1998, e diversos episódios das séries subsequentes, a Frota Estelar e a Federação aparecem como instituições amorais, prontas a se aliar ao mais forte contra o mais fraco e abandonar seus cidadãos em nome de interesses maiores. O que não impediu o sucesso das séries derivadas Deep Space 9, de 1993 a 1999, com o primeiro capitão negro, e Voyager, de 1995 a 2001, com a primeira mulher no comando. Enterprise, de 2001, não agradou tanto e durou apenas quatro temporadas.

Streaming, a fronteira final

Para fins de mercado brasileiro, Jornada nas Estrelas virou Star Trek em 2009, quando J.J.Abrams, turbinado pelo sucesso da série Lost, dirigiu um reboot cinematográfico da série original, criando uma linha do tempo alternativa para não ficar preso aos fatos da franquia.

Mas a fronteira final a ser desbravada era o streaming, e o universo de Roddenberry debutou ali em 2017 com Star Trek: Discovery (link no PrimeVideo). Atualmente em sua quarta temporada, é a primeira série da franquia protagonizada por uma mulher negra, a agora capitã Michael Burnham (Sonequa Martin-Green), tem o primeiro casal abertamente gay e o primeiro personagem não-binário. E talvez aí esteja a questão. São todos os primeiros em Jornada nas Estrelas, mas não desbravam caminhos. É ousado tê-los? Certamente. Fazem história? Improvável.

E como o novo capitão Pike – que apareceu na segunda temporada de Discovery – vai se sair? É difícil dizer por apenas um episódio, mas o começo foi promissor, sem spoilers. A Número Um e os uniformes iguais para homens e mulheres estão lá. A ideia de usar o nosso conturbado momento político como origem dos conflitos que arrasaram a Terra na cronologia da série mostra um destemor em desagradar que de alguma forma nos remete à série dos anos 1960. Que se danem os esquecidos executivos da NBC, Christopher Pike merecia aquela cadeira.

Para fechar a edição, os assuntos em que nossos leitores mais clicaram nessa semana pesada:

1. O Globo: Corpos carbonizados de possíveis soldados russos indicam barbárie em vilarejo da Ucrânia.

2. Meio: Ao falar da possível reversão de Roe vs. Wade nos EUA, abrimos nosso conteúdo exclusivo premium sobre como o aborto virou arma política.

3. TechCrunch: Quer sumir do Google? Aqui está o passo a passo.

4. YouTube: Ponto de Partida - Pedro Doria alerta para o golpe que Bolsonaro tentará dar.

5. Folha: Exposição sobre arte erótica do Império Romano realmente expõe tudo.

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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