Coalizão, para que te quero?

Qualquer que seja o presidente eleito em outubro, um Congresso fragmentado e com demandas próprias o aguardará para governar. E existe método, que muitos erraram, na hora de negociar esta relação

O cientista político Carlos Pereira, professor da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV EBAPE), não está disposto a simplesmente desqualificar o Centrão e seu papel moderador no presidencialismo de coalizão que vigora no Brasil. Acredita que, por incontornáveis no multipartidarismo, as coalizões devem ser eficientes. Presidentes eleitos precisam encontrar a fórmula paradoxal de agradar seu eleitor e um Congresso nem sempre alinhado com o programa que o elegeu.

Não satisfeito, Pereira, doutor em Ciência Política pela New School University, de Nova York, criou essa fórmula. Ela consiste em: equilibrar um número não tão grande de aliados; escolher partidos que sejam em alguma medida homogêneos; que não estejam tão distantes do pensamento mediano do Congresso; e distribuir entre eles ministérios e recursos proporcionais a sua relevância política. Tudo isso sem alienar seu eleitor. É um cálculo repleto de pragmatismo, com menos espaço para a arte da negociação, mas que não prescinde dela.

Mas, em conversa com o Meio Político, Pereira mostrou pessimismo. Em sua visão, tanto Luiz Inácio Lula da Silva (PT) quanto Jair Bolsonaro (PL) erraram nessas relações — de forma diametralmente oposta. Um por coligar demais, por assim dizer. Outro, de menos. O desafio está posto para 2023.

O Brasil pode prescindir do presidencialismo de coalizão que adotou desde o fim da ditadura?
O presidencialismo brasileiro é multipartidário. A coalizão é um desdobramento quase natural desse presidencialismo com multipartidarismo. Nesse ambiente institucional, muito raramente o partido do presidente eleito sai com maioria de cadeiras no Parlamento. E governar numa condição de minoria é muito desvantajoso, porque ele necessariamente vai enfrentar uma arena adversarial, um Congresso de oposição. Por mais que esse presidente seja constitucionalmente muito forte — e o presidente brasileiro é constitucionalmente muito forte —, nem sempre os poderes que tem são suficientes para que navegue de forma bem sucedida no Legislativo sem maioria por lá. Então, ele tem que construir uma coalizão pós-eleitoral ou mesmo durante o processo eleitoral. Essa coalizão deve dar sustentação e condições de governabilidade, para que ele consiga realizar a agenda que prometeu. Suas prioridades terão mais chances de serem aprovadas se o presidente desfrutar de uma maioria coesa, disciplinada e que esteja ao seu lado tanto nos momentos de bonança como nos momentos de dificuldade. O presidente eleito tem de fazer algumas escolhas.

Quais são essas escolhas?
A gerência dessa coalizão não é fácil, porque normalmente você tem de chamar partidos que não são necessariamente alinhados com seu pensamento. O primeiro critério é quantos parceiros, quantos partidos vão fazer parte da coalizão. O segundo é se esses partidos comungam de uma agenda, de uma visão de mundo ao menos similar. O presidente também tem de decidir como premiar esses parceiros, se vai levar em consideração o peso político de cada um no Congresso ao fazer a alocação de ministérios e recursos — afinal, muitos desses parceiros só terão incentivo para fazer parte da coalizão se tiverem acesso a recursos que contrabalancem seus custos. E tem uma outra escolha que diz respeito ao quão próxima essa coalizão vai estar da média do que pensa aquele Congresso. A coalizão é um subconjunto e pode representar a preferência mediana de todo o Congresso ou pode estar distante dessa preferência. É muito mais fácil de o presidente governar uma coalizão que esteja próxima da mediana do Congresso. E a minha teoria é bem clara: quanto menor o número de parceiros, quanto mais homogêneos eles forem, quanto mais proporcional for a distribuição de recursos entre eles, levando em consideração o peso político de cada um, e quanto mais a coalizão representar a média daquele Congresso, maiores as chances de o presidente ser bem-sucedido no Legislativo.

A parte de distribuição de recursos soa bastante pragmática, uma conta simples.
Sim, vou dar um exemplo. Se um partido da coalizão tem 15% das cadeiras do Parlamento, ele deve ter acesso a 15% dos ministérios, dos recursos financeiros. Esse foi um erro que Lula cometeu em seu primeiro mandato. Ele tinha 35 ministérios e deu 21 pastas para o próprio PT. O PMDB ficou com dois, mas tinha o mesmo peso político do PT no Congresso. Quando a alocação é proporcional entre os atores, eles tendem a criar menos obstáculos para as iniciativas do governo e mais para as que existam para investigar o presidente. No fim, com menos fogo amigo, o presidente tem menos custos. Com relação ao número de parceiros, a coalizão de FHC tinha quatro partidos; Lula tinha treze. É mais difícil coordenar. E Lula chamou para sua coalizão tanto partidos da extrema esquerda, como o PCdoB, quanto partidos de extrema direita, como o PP era na época. Como resultado, a coalizão do PT foi muito distante da mediana do Congresso, que era conservadora. A gerência de coalizão do governo Lula gerou um custo de governabilidade muito alto, que resultou em escândalos de corrupção.

E Bolsonaro?
Bolsonaro fez opções equivocadas, mas na direção oposta. Inicialmente, ele foi eleito com uma agenda antipolítica, anti-Congresso. Com a noção de que a política é suja. Assim, não construiu uma coalizão. Tentou governar sozinho, se comunicando diretamente com os eleitores. Essa estratégia fracassou quando começou a pandemia e começaram os problemas de popularidade, os escândalos de corrupção, os filhos envolvidos em em rachadinha e tudo mais. Ao ver ameaças concretas de impeachment, vulnerável, Bolsonaro procurou o Centrão. Mas aí é o Centrão que estabelece os termos da negociação, o presidente perde o poder de barganha, fica muito frágil e começa a gastar muito com a moeda de troca, que são as emendas de relator, o orçamento secreto. São duas versões de gerência de coalizão muito ineficientes.

Existe algum exemplo de eficiência?
Sim, o governo Temer. Quando ele assumiu, fruto do impeachment, montou uma coalizão, embora com um número grande de atores (eram dez), de partidos homogêneos entre si. Além disso, recompensou cada parceiro de maneira bastante igual e deixou o seu próprio partido sub-recompensado. A coalizão de Temer era muito próxima do que o Congresso desejava e, assim, o presidente conseguiu aprovar muita coisa num curto intervalo de tempo gastando pouco. E, por fim, o Congresso parou processos de impeachment ou investigação contra ele.

Essa lógica de “eficiência” na coalizão não beneficia mais os partidos fisiológicos? E, num país conservador, não inviabiliza um governo de esquerda?
O sistema político brasileiro não pode prescindir de partidos ideologicamente amorfos. Dada a condição de multipartidarismo, os partidos que não têm uma ideologia muito forte são fundamentais para dar governabilidade a qualquer presidente. Imagine se tivéssemos um sistema partidário ideologicamente muito demarcado. E um presidente da direita ou da esquerda fosse eleito. Fatalmente, ele iria governar com a minoria, porque os outros partidos não iriam coligar. Para que o jogo funcione é necessária a existência de partidos como os do Centrão. São as legendas que não necessariamente lançam candidatos à Presidência, privilegiam a trajetória eminentemente legislativa e estão dispostos a apoiar qualquer presidente vitorioso. Isso independe do meu gosto, do seu gosto. É uma condição, ou uma restrição do nosso presidencialismo multipartidário. Mas a sua questão nos coloca um paradoxo: se o presidente foi eleito por 50% mais um dos votos da população, pela maioria, que chancelou aquele mandato, mas seu programa é distante da mediana do Congresso, como ele vai aplicar suas promessas? E isso vale tanto para um da direita quanto da esquerda.

Como resolver isso?
Esse paradoxo, por um lado, é negativo, porque, ao se alinhar com a mediana do Congresso, o presidente se afasta da preferência majoritária da população que o elegeu. Isso lhe custaria popularidade. Mas, por outro lado, esse modelo funciona para evitar no Brasil saídas extremas. Os partidos da “meiuca” funcionam, na realidade, como nossa salvaguarda. Sem eles, qualquer vencedor extremo vai realizar a sua agenda. Ao negociar com os partidos do centro, o presidente não vai poder aplicar na totalidade a agenda que prometeu. Ao buscar governabilidade, ele modera sua agenda, e, consequentemente, as saídas para os conflitos raramente serão saídas extremas. Agora, a maioria do Congresso não representa a maioria dos eleitores. Enquanto o presidente é eleito por uma maioria absoluta, um deputado é eleito por várias minorias. O que dá ao deputado federal essa condição é uma proporção de eleitores que atingiu determinado quociente eleitoral no distrito em que ele foi eleito. Ao agregar todas as preferências dessas subpreferências, você não vai ter a maioria do eleitor brasileiro. Vai ter um vetor qualquer, definido por uma série de subpreferências. Esse é o paradoxo do presidencialismo multipartidário. Nem sempre a preferência agregada do legislador mediano é a mesma preferência agregada do eleitor mediano. Assim, o presidente deve governar mirando a preferência que o elegeu ou as preferências que elegeram o parlamento?

Quais as vantagens de cada escolha?
Se o presidente governa maximizando a preferência do legislador mediano, vai ter muita governabilidade, não vai perder o pescoço, não vai ter risco de impeachment, não vai gastar muito pra governar. Os legisladores vão estar felizes. Mas provavelmente será um presidente com baixíssima popularidade. Exatamente o caso do Temer. Ele era adorado pelos legisladores e detestado pelos eleitores. Por outro lado, se o presidente maximiza os interesses do eleitor e desconsidera os interesses do legislador mediano, ele pode ser muito popular, mas tem baixíssimas condições de governabilidade.

É nessa contradição que o presidencialismo brasileiro joga o presidente eleito. Ele vai ter de calcular o que concede ao eleitor e o que concede ao legislador.

A saída não passa mais pela negociação, a arte de fazer política, do que pelo cálculo de recursos distribuídos? Não foi assim, por exemplo, que Lula conseguiu se reeleger e ter um segundo mandato depois do mensalão?
Lula é um um político muito carismático, sedutor, capaz de convencer as pessoas, além de ter uma conexão direta com os eleitores. É um líder nato. Isso com certeza ajuda. O governo Lula também foi beneficiado por uma conjuntura internacional, e ele foi hábil ao capitalizar isso politicamente. Mas considero Lula e Bolsonaro underachievers, conquistaram menos do que poderiam se tivessem feito as escolhas corretas na coalizão. Agora, governar consiste em outras frentes não necessariamente relacionadas à gerência da coalizão. Ela é importante, mas não é tudo. Governos podem ser assertivos em várias áreas de políticas públicas mesmo tendo uma gerência de coalizão ruim, gastando muito.

Tudo indica que qualquer dos candidatos que se eleja o fará com uma vantagem pequena de votos. O quanto os partidos de uma coalizão podem aproveitar esse cenário em benefício próprio?
O presidente, independentemente de quem for, propõe a agenda. Ele vai necessariamente ser eleito pela maioria, tem um mandato, legitimidade. Se não for Bolsonaro reeleito, qualquer outro vai ter um período de lua de mel bastante considerável. É possível que esse presidente consiga montar coalizões em situações favoráveis, e que o poder de barganha esteja nas mãos do Executivo, não do Legislativo. O presidencialismo multipartidário, em que pese ter os paradoxos de que tratamos, gera condições de equilíbrio virtuoso, desde que o presidente eleito saiba como ele opera e tome as decisões no sentido de acomodar esses interesses dentro do seu governo.

Que Congresso o presidente eleito em outubro vai encontrar?
A taxa histórica de reeleição para o Legislativo brasileiro, com exceção das eleições de 2018, é relativamente alta comparativamente ao resto da América Latina. Fica em torno de 68 a 70% dos deputados se reelegendo. Em 2018, a taxa ficou em 54%. Não creio que isso seja reeditado agora. É bem possível que cerca de 70% dos atuais deputados se reelejam e haja 30% de renovação. Se acontecer isso, o que veremos é um Congresso também fragmentado, em que o partido do presidente eleito não terá maioria sozinho e, consequentemente, a necessidade de se montar uma coalizão. Mas observe que nenhum dos candidatos deixou claro como pretende lidar com essa condição de minoria e como vai montar essa maioria, com quais critérios. É um assunto meio proibido entre os candidatos. O problema estará presente. Como eleito vai lidar com esse problema ainda não está claro.


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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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