Edicão de sábado: A Rússia no atoleiro

Em pouco mais de dois meses de guerra na Ucrânia, a Rússia perdeu pelo menos 650 tanques de guerra — metade não por terem sido destruídos, mas porque foram abandonados. É o número confirmado. Os ucranianos dizem que foram 1.200. Os russos perderam também três navios de grande porte, abatidos por mísseis. Um deles, o cruzador Moskva (vídeo), era o mais importante da frota do Mar Negro. Até o último dia 6, o Kremlin admitia a morte de 1.351 soldados, mas não incluía na planilha oficial os outros 2.100 milicianos que lutavam ao seu lado e também foram reconhecidamente mortos. A estimativa do governo americano é de que as perdas passam dos dez mil homens. Para os britânicos vai além dos 15 mil. (Em quase vinte anos de presença no Iraque, morreram 4.431 soldados americanos.) Pelas contas da imprensa, e esta talvez seja a lista de obituários mais surpreendente, 12 generais morreram desde o início da invasão. Só dois tiveram enterros públicos como heróis, Moscou se abstém de confirmar qualquer coisa sobre os outros. Mesmo que seja metade, desde a Segunda Guerra um exército profissional não perdia num só conflito tantos generais. Não há critério militar contemporâneo que considere qualquer um destes números normais. A operação é um desastre. Mas por quê? Em que a Rússia errou?

“Uma guerra é a luta pelo controle da comunicação”, explica Phillips O’Brien, historiador militar, professor da Universidade de St Andrews, na Escócia, e que está acompanhando de perto o conflito. “É a comunicação que liga tudo, da produção dos bens necessários para a luta até sua entrega no campo de batalha. O foco em coragem e covardia, destruição e tragédia, pode até produzir histórias que mexem conosco, mas nada disso explica como guerras são vencidas ou perdidas.”

Da fábrica até o campo de batalha, a logística é imensamente complexa. Fazer com que a matéria-prima chegue, a manufatura ocorra em tempo hábil, a distribuição por caminhões ou trens seja eficiente e que cada pequeno pelotão receba a comida, os remédios, a munição, o armamento, as peças de reposição e tudo o mais que é necessário: isso é o que move uma guerra. O fornecimento é, naturalmente, contínuo. E essa logística é, em essência, um problema de comunicação. De informar no momento certo sobre as necessidades, de montar a distribuição, de cumprir prazos. “Uma guerra exige pessoal muito profissionalizado e com a moral sempre alta”, continua O’Brien. “Ela trata da operação de sistemas complexos. O que vimos até agora é a inabilidade russa de operar os sistemas que ela precisa para ter sucesso e a habilidade ucraniana de controlar os sistemas necessários para deter o inimigo.”

Para interpretar o que está acontecendo, analistas militares independentes precisam montar um quebra-cabeças de muitas peças espalhadas. Entram, nelas, o que informam correspondentes de guerra da imprensa no local. Também o conteúdo publicado nas redes sociais é aproveitável — metadados nas fotos e vídeos podem confirmar data e localização geográfica, o que indica veracidade. Há fotos de satélite divulgadas por ONGs, governos e outras entidades. Muitos têm informantes no Exército ucraniano — de 2014 para cá, especialistas americanos e europeus diversos estiveram engajados em cursos de treinamento por lá. As relações pessoais ajudam a driblar as camadas de propaganda. Para além disso, há os relatórios e números divulgados pelos governos de Rússia, Ucrânia e seus países aliados. Mas, neste caso, é preciso sempre aplicar um filtro porque há exageros. Todos têm interesse em passar a melhor imagem de um lado e a pior, do outro.

É nestas análises que se baseia este artigo.

Três frentes

Quando a Rússia começou a posicionar tropas e máquinas na região de fronteira, ainda em dezembro, quem entende de guerra e geopolítica se pôs a fazer contas. Aos poucos, um consenso se formou — o relatório datado de 27 de janeiro do Instituto de Estudos da Guerra, um think tank americano que reúne acadêmicos e ex-generais, dá o tom. A invasão seria feita por terra, usando forças mecanizadas, para ocupar a região de Donbas. Tanques. O nome do lugar é uma aglutinação, em russo, das vogais iniciais de Bacia do Donets, uma grande área no Sudeste ucraniano onde viviam pouco mais de 4 milhões de pessoas em 52 cidades. Quase 40% da população se identificava, nos censos, como etnicamente russa. A classificação é principalmente identitária, política, pois eslavos são todos. A língua russa, ali, era a preferencial num país em que todos falam ambas, russo e ucraniano.

Desde 2014, Donbas está em guerra civil. No início daquele ano, a Rússia tomou da Ucrânia a península da Crimeia e passou a armar e incitar pequenos grupos separatistas em Donbas que, antes, não representavam um movimento político relevante. Os dois pedaços, Crimeia e Donbas, não são conectados — entre ambos está uma província chamada Zaporizhzhia. A Crimeia tem de um lado o Mar de Azov e, do outro, o Mar Negro. Então havia a possibilidade, imaginavam os analistas, de que um objetivo secundário do Kremlin fosse conquistar um pedaço de Zaporizhzhia, possivelmente toda o litoral do Mar de Azov, para ligar Crimeia e Donbas.

Aqueles estudos, portanto, imaginavam uma estratégia em duas frentes. Em uma, atravessando a fronteira, para assumir o controle de Donbas, que o presidente russo Vladimir Putin já havia declarado independentes. A outra, vinda do Sul ao Norte, invadindo pela Crimeia para garantir a ponte conectando os dois territórios. Não era um objetivo modesto — a geografia e a época do ano dificultavam.

O Seversky Donets é um dos principais afluentes do rio Don, este o quinto maior da Europa. Mas, na Ucrânia, ninguém o chama pelo nome completo — é só Donets. Ele nasce na Rússia, na pequena cidade renascentista de Belgorod, a 40 quilômetros da fronteira. Ao todo, forma uma bacia de 100 mil quilômetros quadrados, quase toda em território ucraniano — Donbas —, que o rio percorre indo e vindo em longas curvas, sinuoso, passando pelas províncias de Kharkiv e Donetsk, até enfim retornar à Rússia, por onde deságua no Mar Azov. O nome é antiquíssimo, remete ao proto-indo-europeu, aquela língua que não conhecemos mas da qual nasceram quase todos os idiomas da Ásia Central à Europa. Danu é também rio é persa arcaico, os gauleses usavam a palavra Deuona, os hititas Diuinus e Danúbio é, não por acidente, o nome de outro rio no coração do continente. Don e Donets, as palavras, lembram que aquela terra foi batizada há tanto tempo que está no centro da história ocidental faz muito. Ambos os rios estão presentes no primeiro mapa-múndi que Ptolomeu desenhou.

Diferentemente do Danúbio, porém, Donets, o rio, é feio. Suas águas são barrentas pelas muitas décadas de mineração. E, nessa época do ano, quando a neve já derreteu, as margens ficam carregadas de lodo, formam nela uma série de pequenos pântanos onde o chão não dá firmeza. Esta semana agora, tentando atravessá-lo mais uma vez, o Exército russo perdeu outros tantos inúmeros tanques, não se sabe quantos. Eram, estes, tanques novos, modernos, possivelmente perdidos às dezenas em pontes erguidas às pressas que não se sustentaram. Houve resistência ucraniana, claro. Disparos anti-tanques foram feitos. Mas as condições de travessia já eram, pela natureza da região, temerárias. Um incidente, observam boa parte dos analistas militares, estúpido. Só ansiedade para avançar rápido pode explicar. Ansiedade do tipo que faz perder guerras.

Tem sido assim, em Donbas, desde o momento da invasão, em 24 de fevereiro.

Além disso, os analistas estrangeiros estavam errados a respeito da estratégia russa. Eles não abriram duas e sim três frentes. Também com forças mecanizadas — tanques — a Rússia invadiu a Ucrânia pela vizinha Belarus, descendo na direção do centro do país para tomar a capital, Kiev. O movimento que ninguém foi capaz de imaginar que seria feito.

Ao que parece, a intenção nos três avanços era a de promover um blietzkrieg como aquele sofisticado pelos nazistas no momento inicial da Segunda Guerra. Naquele momento da história, os alemães haviam conseguido pela primeira vez integrar por rádio todas suas operações militares. Comunicação, a palavra-chave. O avanço sobre a Polônia, por exemplo, foi simultaneamente com tanques, veículos de artilharia leve e aviões. De cima, os aviões eram capazes de identificar aglutinações militares que pudessem atacar os tanques. O que os caças não resolviam, os veículos leves encaravam. Um ataque que era rápido e capaz de imobilizar defesas.

Os russos avançaram nas três frentes com tanques, sem o apoio de artilharia leve e a força aérea não foi capaz de dominar o espaço aéreo ucraniano. “Tanques são vulneráveis se não forem acompanhados por um combinado de outras armas”, escreve Rob Lee, do King’s College de Londres. “A Rússia não tem infantaria o suficiente para proteger seus tanques dos times armados com mísseis antitanques.” Pequenos grupos de soldados ucranianos são capazes de se posicionar nos arredores das regiões sob ataque, com lança-mísseis adequados. “A Rússia tomou a decisão de reduzir seus batalhões que acompanham os tanques a regimentos de 75 homens e, depois, distribuíram mal suas forças pela Ucrânia. Todos sabemos que tanques sem apoio eram vulneráveis.”

Na frente em direção à capital, Kiev, o problema era ainda mais grave. Para entrega de suprimentos, os russos contam com assumir o controle das estradas de ferro. A comida e a munição vem por trem — mas não havia linha de trem da Belarus até Kiev. Controlar outra estrada de ferro exigiria, naturalmente, conquistar um quarto pedaço da Ucrânia. E o caminho pelas estradas era uma lama só, encarado por caminhões com pneus carecas. A corrupção das Forças Armadas produziu este tipo de efeito.

Não é à toa que analistas internacionais imaginaram um cerco a Donbas com, no máximo, uma segunda frente para ligar a bacia do Donets à Crimeia. Quem entende de guerra conhecia as dificuldades. Mas isso vale, também, para os generais russos. Não são amadores. O Exército Vermelho tomou a Berlim nazista. Vitórias recentes incluem a Síria e a Chechênia.

Sem informação a respeito do tipo de diálogo que se travou no interior do Kremlin, tudo é chute. Mas uma hipótese é mais forte do que todas as outras. É possível que tanto Putin, quanto os generais, acreditassem no discurso que estavam fazendo. Há indícios o suficiente de que a explicação passe por aí. Eles defendiam que o governo ucraniano era fraco e que, seu presidente, apenas um ator. Falavam, igualmente, que era desejo da população de Donbas deixar a Ucrânia para se aproximar da Rússia.

Se apostavam num colapso do governo, não precisavam de tantas forças assim para tomar a capital. Ocorre que o governo não arredou pé, foi hábil o bastante para garantir que a Europa mantivesse o fluxo de equipamento militar para resistência a tanques, caças e navios, e ainda se enrolou na bandeira nacional, promovendo uma campanha emocionalmente contagiosa de resistência nacional. Não é outro o papel de um chefe de Estado de país invadido.

Enquanto a frente contra Kiev colapsava, o Exército russo avançou por Donbas mas não se deu ao trabalho de assumir o controle das pequenas cidades pelas quais passavam as linhas de trem. Possivelmente acreditavam que aquelas pessoas, que se diziam etnicamente russas e falavam russo, estariam a favor dos invasores. Não estavam. Ali, onde havia linhas ferroviárias para garantir mantimentos, o fluxo ficou sendo constantemente interrompido. Porque houve resistência civil em pequenas cidades que os russos não se deram ao trabalho de conquistar.

O futuro

Nesta semana, enquanto os tanques caíam enlameados nas margens do Donets, a diretora nacional de inteligência americana, Avril Haines, informou ao Congresso que ordenou uma revisão dos protocolos que as agências sob seu comando seguem em sua avaliação do poder militar de nações estrangeiras. Em Washington, a percepção é de que super dimensionaram a capacidade russa.

Na Síria como na Chechênia, a Rússia assumiu uma tática de arrasar cidades para só depois toma-las, já em ruínas. Estão fazendo isso na Ucrânia. Mas há uma diferença. Quando invadiu a Crimeia, em 2014, e incitou a guerra civil em Donbas, Moscou não encontrou resistência. O exército ucraniano estava sucateado. Foi há oito anos. Desde então, oficiais experientes que estavam no setor privado retornaram à ativa, jovens foram recrutados enquanto Estados Unidos e Europa armaram o país com equipamento de ponta. Não é um exército inexperiente. Enfrenta, afinal, os russos numa guerra que se finge de insurreição espontânea desde então. O equipamento usado pelos separatistas e seus padrões táticos são os mesmos que Moscou adota. Claro. É Moscou que está naquela guerra.

A Ucrânia se prepara para esta guerra faz oito anos.

A Rússia é indiscutivelmente mais forte, sua tradição militar é uma das mais antigas da Europa e a vocação imperial é secular. Mas não custa lembrar: a Rússia não conseguiu se impor ao Afeganistão, os EUA fracassaram no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque. A Ucrânia, enquanto isso, é o primeiro país que os nazistas não conseguiram dominar. Uma terra, diga-se, fundada por vikings.

Pandemia e precarização do trabalho, uma outra visão

Nesta edição, Meio segue o debate sobre o mercado de trabalho brasileiro. Na semana passada, trouxemos o professor Vitor Filgueiras, da Unicamp, de um campo desenvolvimentista de estudo. Quem fala agora é Fernando de Holanda Barbosa Filho, doutor em Economia pela New York University e pesquisador no Instituto Brasileiro de Economia, da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE).

O economista, de visão liberal, não acredita que tenha havido uma precarização do trabalho no Brasil, mas uma adaptação à nova realidade pandêmica, com muitos trabalhadores optando por vínculo de pessoa jurídica, abrindo mão de alguns direitos em troca de flexibilidade. Acompanhe os principais trechos da conversa de Barbosa com o Meio.

A pandemia foi um fator da precarização do mercado de trabalho?

Primeiro, não há precarização no mercado de trabalho. Existe o contrato CLT e a “pejotização”. O formato CLT é custoso para muitas empresas. Por exemplo, na Petrobras, o termo precarização é usado sempre que você sai do melhor contrato possível. Em geral, o termo é usado quando existem trabalhadores que não têm tantos benefícios quanto alguns outros. Já na pejotização você tem a saída de um trabalhador de um regime CLT para o formato de conta própria. O que aconteceu com a pandemia foi a opção de muitos trabalhadores de carteira assinada por sair desse vínculo para ter mais tempo com a família, trabalhar de longe, menos horas ou sem ponto.

Então, a pandemia ajudou na atualização das relações de trabalho?

A pandemia nos mostrou a possibilidade de outros contratos, com algumas vantagens para o trabalhador, como a flexibilidade da jornada. Em geral, isso era associado a profissionais liberais, de áreas específicas, que tinham o “luxo” de trabalhar de casa. Por outro lado, a pandemia evidenciou a desigualdade. Claramente, em algumas posições, isso não poderia ser feito. Alguns trabalhos deixaram de existir e essa é a história de famílias que perderam renda. Essa transição é mais complexa, porque se trata da reposição dentro do mercado de trabalho, uma vez que a posição que ela ocupava não existe mais. Mas você também tem pessoas que puderam ir para o trabalho remoto, sem o trajeto de ida e volta até a firma. Ou seja, há um aumento da desigualdade, porque outro trabalhador acaba por perder seis horas só nesse trajeto, em tempo não remunerado, tendo uma jornada de 14 horas.

Que exemplo você pode dar de um país que teve sucesso em reverter o desemprego?

O caso alemão da Hartz Reforms. O desemprego no país chegou a diminuir três pontos após essa reforma. Foram diversas medidas que buscavam incluir trabalhadores que estavam excluídos do mercado há muitos anos. É dificílimo reintegrar uma pessoa no mercado, o conhecimento é defasado, ela perde a maneira de trabalhar. Essa reforma foi feita em 2003 num ambiente complicado, com cenário de desemprego alto. É um exemplo de redução de custos cortando na própria carne, mas que permitiu que hoje a Alemanha seja exemplo na Europa.

O professor Vitor Filgueiras, de visão desenvolvimentista, defende que as políticas públicas, quando focadas na redução do custo do trabalho, resultam em precarização, uma vez que as empresas achatam os salários para obter mais lucro. Qual a sua visão sobre isso?

Um dos conceitos econômicos é a elasticidade da demanda por trabalho — na prática, o número de vagas de emprego que uma empresa tem a oferecer. Uma empresa com oferta inelástica tem sempre a mesma demanda por mão de obra, porque não pode expandir a produção. Nesse caso, a empresa arca com mais custos burocráticos com o contrato de trabalho formal e uma das saídas extremas é o achatamento salarial. Os direitos trabalhistas na CLT saem, também, da produtividade do trabalhador. Mas a queda na remuneração tem um limite, porque a competição entre empresas pelos trabalhadores o estabelece. Agora, se os trabalhadores trocam de regime e optam pelo contrato PJ, eles podem começar a ganhar mais, assim como a empresa gasta menos no total. Logo, não é verdade que o trabalhador vai sempre ganhar menos.

A redução do custo do trabalho para o empregador seria uma solução, então?

Olha, para reduzir os custos, você precisa reduzir alguns direitos do trabalhador. Para isso, é necessária uma reforma trabalhista que ainda não fizemos, mas que melhoraria o funcionamento do mercado. O Estado precisa melhorar a qualificação da mão de obra, o estudo está intrinsecamente ligado à produtividade. Além disso, o governo pode ajudar explorando o Sistema Nacional de Emprego (Sine), estimulando empresas a publicar vagas e ensinando pessoas a achar a vaga correta. Também é preciso não sobre-regular. Levando em conta que 50% dos trabalhadores não estão no regime CLT, como essa legislação pode ser generalizada? Ou a culpa é do empresário ou da legislação brasileira que burocratiza a ponto de gerar empregos irregulares. Uma das saídas hoje em dia é o trabalhador por conta própria, que escolhe ganhar mais em troca de uma perda de direitos. Nesse caso, a empresa também tem menos custos burocráticos com o trabalhador. A informalidade é um sintoma da doença. A doença é o excesso de custo e regulamentação, que leva parte significativa da força de trabalho às sombras da legalidade.

Como estimular o pequeno e o médio empreendedor?

Produtividade é chave. As empresas morrem com facilidade, então, os bancos cobram altas taxas de juros. Programas de crédito facilitam, mas você precisa de empresas mais produtivas e de cursos de empreendedorismo. Um plano de negócio é o suficiente para uma empresa sobreviver e muitos empresários nem sabem o que é isso. E o Simples Nacional é um enorme incentivo governamental, mas ele tem um limite de faturamento generoso — de R$ 4,8 milhões por ano. O problema é que tentamos salvar essas empresas de morrerem, com legislações que permitam que firmas pouco produtivas sigam no mercado.

Para ler com calma

No dia 13 de maio de 2022, o Ministério do Trabalho e da Previdência informou o resgate de uma idosa de 84 anos, negra, que vivia em condição análoga à escravidão há 72 anos. O caso é considerado o mais longo de exploração em situação de escravidão desde 1995, quando se passou a fiscalizar o crime. Em 27 anos de atuação, foram 58 mil os resgatados dessa condição pelos auditores.

Na mesma data, completaram-se 134 anos da Lei Áurea. Os movimentos negros, no entanto, rejeitam a celebração da data, que veem como uma mera glorificação da monarquia na figura da Princesa Isabel e uma tentativa de apagar da luta pelo fim da escravidão o papel crucial dos próprios negros — incluindo de mulheres negras do movimento abolicionista. Muitos também consideram inadequado comemorar o fim de algo que não sentem que acabou. Afinal, o racismo e a exclusão do negro se dá ainda de forma dolorosamente ostensiva no Brasil.

Bandeira branca

Sentada em uma cadeira no palco, a presidente do Partido dos Trabalhadores, a deputada Gleisi Hoffmann (PR), não abriu mão da tradicional cor da sigla, vestindo saia e terninho completamente vermelhos. À frente dela, durante um evento em São Paulo no último dia 7, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) discursava no lançamento de sua pré-candidatura à Presidência da República. Com terno bem cortado, o petista falava – e atrás dele, uma enorme bandeira do Brasil balançava.

Reunindo cerca de quatro mil pessoas, as tonalidades da celebração destoavam de Gleisi e dos tradicionais encontros do partido. Estavam mais verde e amarelo que de costume. Em 2022, o PT retoma o movimento iniciado já em 2018 de ostentar o duo canarinho com mais destaque do que seu usual vermelho. Esta é somente uma das disputas entre os campos ideológicos que veremos neste ano. Mas talvez seja das mais carregadas de significados.

Alguns sábados antes, no dia 16 de abril, o presidente Jair Bolsonaro (PL) usou seu perfil no Twitter para rebater uma declaração dada pela cantora Anitta a respeito da bandeira brasileira. Nos Estados Unidos, ela subiu ao palco do festival Coachella vestida com roupas verde, amarelo e azul, e disparou: “Ninguém pode se apropriar do significado das cores da bandeira do nosso país”. Em resposta, o chefe do Executivo evocou a velha máxima que marcou a campanha de Fernando Collor e que, atualmente, é música para os ouvidos de seu eleitorado: “Nossa bandeira jamais será vermelha”.

É antiga a disputa pela simbologia da bandeira nacional e de suas cores. Para o cientista político e sociólogo Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é preciso ter em vista que “bandeiras representam identidade. É evidente que essa identidade é disputada”. Ele destaca que, desde a Proclamação da República, o estandarte nacional já foi alvo de litígio em diversos períodos. “Nós tivemos o uso da bandeira brasileira como símbolo de poder, de nacionalidade e opressão durante a Era Vargas, de 1934 a 1945. Então, houve o resgate de seu significado a partir dos anos 1950, com o governo de Juscelino Kubitschek”.

Emblemática, na cerimônia conhecida como “queima das bandeiras estaduais”, em 1937, foram cremadas as que representavam os estados do Brasil, sendo todas elas substituídas por uma só, a nacional. Depois, o símbolo voltou a ser apropriado pelos militares, a partir de 1964. Na época, a bandeira encarnava a luta contra os comunistas, e campanhas como “Brasil, ame-o ou deixe-o”, nos anos Médici, ajudaram a firmar no país um movimento ultranacionalista à brasileira, inspirado em governos fascistas.

“É interessante porque, ao término da ditadura militar, no movimento de redemocratização, o símbolo nacional voltou a ser alvo de disputa pelas forças oposicionistas ao regime. As Diretas Já carregam o amarelo. Mas o símbolo da Anistia era verde e amarelo. O grande momento que marcou a retomada da bandeira e do hino nacional pelo movimento de redemocratização: após a morte de Tancredo Neves, Fafá de Belém canta o hino em rede aberta de televisão. Com esse episódio, as pessoas passaram a ter a sensação de que a bandeira representava todos os brasileiros, não apenas os apoiadores da ditadura”, diz Baía.

De acordo com o professor, a partir de 2016 ocorre mais uma vez o movimento de apropriação. Em 2013, as manifestações são pintadas por bandeiras negras, dos anarquistas; coloridas, relacionadas às pautas de gênero; e as vermelhas, associadas à esquerda. Três anos depois, em resposta, a bandeira nacional é resgatada pelos que desejavam o impeachment de Dilma Rousseff (PT). “Em parte, as oposições ao atual governo têm culpa neste movimento, já que deixaram, com certa facilidade, o grupo que elegeu Bolsonaro se apropriar da bandeira”, analisa Baía.

Porta-bandeiras

Meio ouviu Tomé Abduch, fundador e coordenador do Movimento Nas Ruas, que surgiu em 2014 e ajudou a organizar as manifestações pelo impeachment da petista; e Marco Martins, líder do Movimento Acredito e da campanha Fora Bolsonaro em São Paulo. Ambos dizem querer que a bandeira nacional e suas cores sejam de todos os brasileiros, como símbolo de patriotismo. Suas versões de patriotismo é que mudam.

Abduch argumenta que “as cores do Brasil são e sempre vão ser verde e amarelo. Isso ficou muito apagado nos governos do PT, que enfatizavam as cores da CUT e do MST. O vermelho não representa a democracia, a liberdade de expressão, o nosso país. Para nós, é um motivo de muito orgulho o Brasil ter voltado a ser verde e amarelo. Reunimos pessoas de todas as cores, raças e direcionamentos sexuais em torno do patriotismo”.

Martins, por sua vez, defende que “a bandeira, as cores, representam quem somos como brasileiros. O nacionalismo não é ruim por essência, ter orgulho do nosso país é ter orgulho da diversidade, do Brasil que tem muitos brasis. Mas neste momento, com Bolsonaro, se tornou negativo. Usar o nacionalismo como amplificador de pautas ruins é comum, nós vemos em outros países e outras épocas, e isso se aprofundou demais no atual governo. Ele soube utilizar essa tática, colando à bandeira pautas contra os direitos humanos, contra a vida. Por isso, nossa luta tem sido mostrar que o Brasil não é o Bolsonaro”.

Desde o ano passado, segundo Baía, movimentos sociais, populares e sindicais querem retomar o uso do lábaro nacional. “Agora, a disputa ganha amplitude, sobretudo com o lançamento da campanha de Lula, cujo logo é verde amarelo, branco e vermelho. Mais uma vez, há a divisão entre ‘nós’ e ‘eles’. E esse é o jogo que teremos com as duas principais candidaturas neste cenário polarizado. Para além da política partidária, veremos a disputa pelo símbolo em outros espaços da sociedade, como nos movimentos sociais, nas artes e até no futebol — lembrando que este ano temos Copa do Mundo e eleições”.

Para Abduch, a estratégia do PT é eleitoral. “Eles compreenderam que o Brasil é verde e amarelo e, para atrair o maior número de eleitores possível, estão usando essas cores. Fazem isso da mesma forma como se dizem católicos, cristãos... nós sabemos que não é verdade”, ressaltou o líder do Nas Ruas. Apesar de criticar o uso da bandeira pelo PT, na avaliação dele “não podemos mais separar o Brasil”. “A bandeira pertence a todos os brasileiros, somos uma só nação – não importa se você é de esquerda ou de direita. E quem não usa as cores da nação ou tem qualquer tipo de preconceito com elas, deveria mudar de país.”

Mas Martins explica que, durante as manifestações contra o governo, por meio de um financiamento coletivo com os apoiadores foram distribuídas bandeiras do Brasil, “uma vez que a apropriação de Bolsonaro da bandeira acabou afastando os brasileiros dela. Com isso, tentamos trazer de volta para a oposição a necessidade de mostrar que nós somos os brasileiros, a maioria não é o bolsonarismo, não é a extrema-direita. A disputa pelo Brasil se dá também nessa imagética”.

Entrevero coerente com o que analisa o professor da UFRJ, que coloca que a disputa pelo significado da bandeira sempre vai existir. “Para a oposição, é importante não apenas resgatar a bandeira ou o hino nacional, mas sim reverter seus significados, uma vez que esses símbolos nacionais estão codificados e identificados por cada segmento da população a partir de suas visões políticas de mundo. Aliás, não se trata de reverter significados, mas de uma disputa constante para reafirmá-los”, concluiu.

O Supremo Tribunal Federal (STF) e as relações do Judiciário com os outros Poderes foram os assuntos mais clicado da semana:

1. YouTube: Conversas com o Meio - Pedro Doria e Christian Lynch discutem o embate entre Judiciário e Forças Armadas.

2. BBC Brasil: Um dos principais responsáveis pela venda do WhatsApp ao Facebook diz se arrepender do negócio.

3. CNN Brasil: Alexandre de Moraes une investigações de ataques de Bolsonaro às eleições e de milícias digitais.

4. O Globo: O que está por trás de silêncio de Fux e Gilmar Mendes diante de ataques de Bolsonaro.

5. G1: Senado aprova aumento para 70 anos idade limite para nomeação no STF e em tribunais superiores.

Encontrou algum problema no site? Entre em contato.

Se você já é assinante faça o login aqui.

Fake news são um problema

O Meio é a solução.

R$15

Mensal

R$150

Anual(economize dois meses)

Mas espere, tem mais!

Edições exclusivas para assinantes

Todo sábado você recebe uma newsletter com artigos apurados cuidadosamente durante a semana. Política, tecnologia, cultura, comportamento, entre outros temas importantes do momento.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)
Edição de Sábado: A política da vingança
Edição de Sábado: A ideologia de Elon Musk
Edição de Sábado: Eu, tu, eles
Edição de Sábado: Condenados a repetir
Edição de Sábado: Nísia na mira

Meio Político

Toda quarta, um artigo que tenta explicar o inexplicável: a política brasileira e mundial.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

Sala secreta do #MesaDoMeio

Participe via chat dos nossos debates ao vivo.


R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)

Outras vantagens!

  • Entrega prioritária – sua newsletter chega nos primeiros minutos da manhã.
  • Descontos nos cursos e na Loja do Meio

R$15

Mensal

R$150

Anual
(economize 2 meses)