Edição de Sábado: Perigo de Extinção

Por Flávia Tavares e Marina Pagno

Numa fusão ambígua de pragmatismo com nostalgia, Aécio Neves descrevia o que acreditava ser a atual situação do PSDB, sigla que presidiu entre 2013 e 2017. “Nosso problema foi criado por nós e nós é que temos que resolvê-lo”, falou o Aécio pragmático. O “problema” é o PSDB decidir se terá um candidato à Presidência da República próprio em 2022 e se ele será o ex-governador de São Paulo João Doria, escolhido em prévias no mínimo confusas. A forma dolorosamente pública com que o partido tem lidado com o “problema” contribui para a ideia de esfacelamento tucano. Aécio nostálgico, então, tomou a palavra. “Ele [Doria] teria de fazer um gesto de coragem, de desprendimento, como o que Franco Montoro fez em 1984. Eu era secretário do meu avô, Tancredo, viajamos tarde numa noite para São Paulo. E Tancredo foi dizer ao Montoro que era ele o candidato ao colégio eleitoral. Fui testemunha viva disso. Montoro disse que não. Em dois dias, convocou uma reunião com os 12 governadores do PMDB no país, e anunciou o apoio à eleição de Tancredo Neves. Ali começou a mudar a história do Brasil.” A fala de Aécio foi numa entrevista à CNN, na segunda-feira véspera de mais uma reunião de tucanos em que ficaria tudo certo, nada resolvido.

O que vai nas entrelinhas do que diz Aécio sobre a cizânia atual — a cutucada em Doria, a permanente autorreferência — é circunstancial. Enxergar nessa disputa uma divergência interna maior que a de costume no ninho também seria ingenuidade. Mas Aécio é político mais que experimentado. E sabe que a verdadeira encruzilhada diante da qual se prostra o tucanato é a de encontrar um caminho, uma voz no novo eixo de polarização que dita o debate eleitoral no Brasil. Ou enfrentar o perigo da extinção.

A tarefa já seria hercúlea para qualquer corrente política não afeita a extremos. Para aqueles cuja marca essencial é o em-cima-do-murismo, mais ainda. E essa marca não está colada ao PSDB por acidente. Faz parte da falta de uma identificação clara com o eleitor e de hesitações em alguns momentos fundamentais de sua história. O partido foi fundado em junho de 1988 de uma dissidência do PMDB dominado pelo quercismo. A social-democracia brasileira nasce no ano da Constituição de 1988 e bebe nela para suas duas principais agendas: a da estabilidade econômica e da inclusão social. São os mesmos paradigmas que norteiam o Partido dos Trabalhadores, criado oito anos antes. Tanto assim que, sem qualquer titubeio, o PSDB do então candidato Mario Covas apoiou Luiz Inácio Lula da Silva no segundo turno da corrida presidencial de 1989.

A ênfase que cada legenda coloca em cada fração do binômio é o que os separa na origem. A do PT está evidentemente assentada na inclusão social — se for preciso sacrificar uma ponta, sabe-se claramente qual será quando o governo é petista, cuja existência está umbilicalmente ligada aos movimentos sociais. Com essa diferença, o PSDB chegou ao Planalto com Fernando Henrique Cardoso, em 1994. O Plano Real e a proposta reformista foram a plataforma do PSDB ao longo dos dois mandatos de FHC. “Havia divergências, mas tinha um compromisso dos quadros. As ideias não eram só de palanque. Eu mesmo fiquei encarregado de falar com o Covas, por exemplo, sobre o projeto de reeleição. Ele era contra. Mas perguntou se havia algo no nosso programa sobre sermos contra. Não havia. E ele disse ‘então, vota’”, conta o senador José Aníbal, que coordenou o processo de prévias do ano passado e é do time que se opõe a Doria.

Ao fim dos anos FHC, no entanto, o partido não encontrou um manifesto que empolgasse ou identificasse parte do eleitorado. “Estive numa palestra em que o próprio Fernando Henrique disse que ser tucano era um estado de espírito. O eleitor votava, compartilhava dos pensamentos, mas não se identificava como tucano, porque o PSDB não exercia um papel de fidelização de seu eleitor”, explica Fernando Bizarro, cientista político especialista em partidos políticos e pesquisador do Centro Weatherhead da Universidade de Harvard. “Em vez de construir a marca do partido, o PSDB encontrou no acesso ao Estado um substituto. A figura do presidente FHC e os recursos que ele tinha como presidente foram usados para converter votos”, acrescenta Bizarro. Além disso, a eleição de FHC expandiu o partido, que ficou bem mais heterogêneo. E consolidou o PSDB na centro-direita a partir da aliança com o então PFL.

O PSDB então se aconchegou na posição de acolher o voto do antipetismo, que cientistas políticos e parte dos próprios tucanos entendem como verdadeira segunda força política do país. Nas eleições presidenciais que se sucederam, o partido foi se conformando em chegar em segundo, em estar no segundo turno. Nesse caminho, o PSDB passou de 63 deputados em 1994 para 22 agora. José Álvaro Moisés, cientista político e professor da Universidade de São Paulo (USP), também demarca a crise identitária tucana nessa era. “O PSDB foi progressivamente perdendo conteúdo, incapaz de apresentar quais eram suas propostas alternativas, em que sentido divergia do PT, não apenas nas questões de princípio, mas também nas questões políticas, que afetam a vida das pessoas. No fim, é isso que interessa aos eleitores.”

Plumagem nobre

Ouvir tucanos de qualquer geração é um exercício obrigatório de revisita aos fundadores. Uma das mais recorrentes é a de Mario Covas, primeiro presidente da sigla. Cesar Gontijo, hoje tesoureiro do partido e um dos últimos aliados de Doria, vai também nele para falar da crise atual e da possibilidade de futuro. “Em 1998, estávamos em quarto na pesquisa com Covas, com ele no cargo [de governador], e ele não abria mão de ser honesto e falar de suas convicções. Dez dias antes do primeiro turno ele estava em terceiro lugar. Ele havia feito uma reforma em São Paulo que ninguém entendeu e o PT deitou e rolou na campanha. Mas fomos coerentes e ele se reelegeu”, defende Gontijo.

Em 2002, acontece o que o tesoureiro considera o maior erro histórico do partido. Em uma reunião na Rua Colômbia, em São Paulo, para definir a estratégia da campanha presidencial de José Serra, o marqueteiro Nizan Guanaes sugeriu que o PSDB “escondesse” os feitos dos anos FHC no embate com Lula. “Marqueteiro fala com 30 milhões de eleitores em nome do partido, ainda que com sua aquiescência. Mas essa decisão do Nizan, das campanhas presidenciais, ditou o comportamento até o Aécio, em 2014. Partido não tem que ganhar eleição. Mas pode preparar a bola para encaçapar na próxima. O PSDB caiu nessa armadilha eleitoral. E Covas dizia que mais vale um não convicto, do que um sim que não vai se realizar”, Gontijo acrescenta. O Meio procurou o publicitário, mas não obteve resposta.

O cientista político Fernando Bizarro discorda que tenha sido esse o equívoco do PSDB. Ele aponta que, no fim do governo FHC, o partido tentou se tornar independente da coalizão que o havia eleito. Buscou reformular sua posição progressista nos costumes, de centro-esquerda. Mas o momento fundador de um partido define regras e uma cultura muito difíceis de serem alteradas. E a era FHC representa esse momento fundador. Quando a reformulação fracassa, diz Bizarro, e o PSDB se realinha ao PFL/DEM, passa a jogar sempre esperando a próxima eleição. “O partido não pede o impeachment de Lula em 2005 e fica nessa espera até 2014. Mais importante do que Aécio contestar o resultado daquela eleição, a grande mudança de estratégia tucana foi no impeachment de Dilma, que o PSDB defendeu. Isso consolida sua mudança para a direita.”

O que motivou esse movimento talvez tenha sido o “pito” que os tucanos levaram dos antipetistas nas manifestações entre 2013 e 2016, que queriam que o PSDB fosse mais contundente na oposição. Mas o eixo da disputa política no Brasil já havia mudado — e o núcleo da direita também. O embate não se dá mais entre teto de gastos versus programas assistenciais, por exemplo. A nova e extrema-direita, personificada em Jair Bolsonaro, não opera nessa lógica. A dicotomia agora é entre democracia e ditadura; direitos individuais e coletivos; valores. “Nisso, o PSDB não tem um papel claro. Se isso se consolidar como estrutura da disputa eleitoral, o PSDB não está preparado para ser líder de um desses polos”, ressalta Bizarro. A fluidez entre a centro-esquerda original e a direita pós-Dilma cobra seu preço.

Café com leite

Além dessa inconsistência ideológica, o PSDB se viu fragilizado por uma rivalidade entre São Paulo, seu berço, e Minas Gerais, capitaneada por Aécio Neves. Embora tenha se filiado ainda em 1989, para crescer na legenda ele encontrou proeminência no papel de conciliador das elites que embarcaram no PSDB com a eleição de FHC. “Aécio cumpre um papel intermediário em 2014, entre o PSDB antigo, dos quadros históricos, e esse novo PSDB dos cabeças pretas e de João Doria”, explica Bizarro. “Depois que São Paulo perde seguidamente para o PT, o partido precisa entregar o poder para o grupo de Aécio.”

Com as gravações em que supostamente negociava propina com Joesley Batista, em 2017, e a devastação da política tradicional promovida pela Lava Jato, o poder volta para as mãos dos paulistas, no fenômeno BolsoDoria. O PSDB fica ainda mais à direita. “Ficamos atordoados com o tsunami de 2018, tanto que depois teve até gente apoiando o Bolsonaro. E isso aconteceu justamente quando nossos quadros sêniores estavam saindo do centro de decisão. O que está acontecendo no PSDB é fruto do vácuo de liderança. Não temos mais o FH, não temos mais o Serra, o Tasso está se aposentando”, diz Marcus Pestana, fundador do PSDB, próximo de Aécio e pré-candidato ao governo de Minas.

Mas Doria rompe com o bolsonarismo e, por um lance ainda a ser explicado pela ciência política, não se viabiliza eleitoralmente, apesar de uma gestão com méritos, entre eles especialmente a vacinação em massa. Doria simplesmente não empolga o eleitor, sequer o paulista. Ao menos até aqui.

O PSDB de São Paulo sempre cumpriu um papel no sistema político brasileiro de ser articulador do empresariado paulista. A relação desse setor com Bolsonaro é ambígua — alguns têm repugnância; outros, simpatia, principalmente na figura do ministro Paulo Guedes. O primeiro grupo está sem representante para outubro. Agora, parte do PSDB entende que conquistar o governo de São Paulo é a última esperança de sobrevivência do tucanato. Outra parte enxerga que a única forma de fazer isso é tendo candidato à presidência e não cedendo a apoiar Simone Tebet, do MDB, candidatura rodeada de incertezas. E as duas coisas parecem irreconciliáveis, já que a rejeição a Doria “contamina” a candidatura de Rodrigo Garcia no Estado.

À deriva

O que restaria, então, ao PSDB? Pestana não tucaneia. “Nós precisamos sobreviver a 2022, e isso só com candidato próprio. Sempre fomos um partido de quadros, não de massas. Nosso relacionamento com a sociedade acontece nas eleições e, para isso, dependemos de ter uma cara. Se não tivermos, o 45 vai diminuir muito. Sou otimista para 2026, porque aí há muitos nomes novos chegando. A Raquel Lyra (PE), o Rodrigo Garcia (SP), o Eduardo Leite (RS), o Alessandro Vieira (SE). Mas é preciso sobreviver a 2022.”

Já Yeda Crusius, ex-governadora do Rio Grande do Sul, presidente do PSDB Mulher, integrante da executiva e que acompanha a legenda desde a sua criação, diz que o PSDB precisa de mudança, ao mesmo tempo em que afirma querer a “política do PSDB raiz, do PSDB fundador”. Alega ainda que o futuro do partido depende do presente — e o presente está deixando os eleitores entontecidos. “É o Armagedon? Não é. O PSDB tem que mudar, como todos os partidos têm que se adaptar ao verdadeiramente novo. Não estou dizendo jovem, estou dizendo o novo.”

Ela defende a candidatura Doria. “Os guris passaram do limite”, diz sobre a tentativa de tirar o ex-governador paulista da disputa. Alinhada a FHC e usando várias vezes a palavra “democracia” para defender seu posicionamento, Yeda acredita que os tucanos terão um candidato à presidência em 2022. “É uma coisa que beira ao ridículo pedir que o vencedor tenha grandeza de não exercer a vitória. Os outros que tenham a grandeza de aceitar o resultado dos 30 mil votantes do PSDB. Que aceitem a democracia como regra, e não o interesse do momento como regra”, reforça.

Aníbal, defensor de Eduardo Leite, ex-governador do Rio Grande do Sul que saiu derrotado das prévias, também não foge ao caráter tucano em sua visão do futuro. “Está faltando uma liderança que recupere a identidade do partido, progressista, com posições sobre diversidade, economia, reformas”. Mas Leite não tem um viés conservador? “Sim, ele busca sempre um denominador comum que nem sempre é progressista. Ele consegue falar com o bolsonarismo, mas fala também com o petismo.”

O próprio Leite tem buscado se preservar desde que seu nome voltou a circular, principalmente na insistência de Aécio, como potencial candidato tucano. Leite renunciou ao cargo de governador do estado gaúcho em abril e decidiu ficar entre os tucanos, apesar das investidas do PSD de Gilberto Kassab. “O PSDB tem mais feitos do que defeitos”, diz ao Meio. “Acredito na capacidade de superação dessas discussões internas para que o partido continue forte e se apresente com papel de protagonismo no cenário nacional como acredito que é positivo para o Brasil”.

Publicamente, Eduardo Leite tem adotado uma postura de respeito ao resultado das prévias e está evitando dar entrevistas sobre o imbróglio. Nas últimas semanas, tem concentrado as agendas apenas no Rio Grande do Sul e, segundo pessoas próximas, não esteve em Brasília durante as reuniões que aconteceram na última semana entre os membros da executiva do PSDB e também com outros partidos aliados, como Cidadania e MDB, para discutir quem será o nome da terceira via.

Mas ele admite que o cenário político atual colocou o PSDB “em um momento de crise aos olhos do eleitor” e que o racha entre tucanos pode colocar o partido em uma posição política frágil. “A característica do PSDB é não ter dono, o que gera muitas discussões internas e que acabam se apresentando publicamente. […] Essas discussões eventualmente são vistas como fragilidade. De fato, às vezes acabam até desbordando do razoável, do processo de discussão politica, e acabam de alguma forma atingindo o próprio partido”, ressalta.

Para José Álvaro Moisés, o PSDB, ao concentrar suas energias nas disputas internas, acaba perdendo o sentido da existência e, ainda, a confiança dos eleitores. E entra, automaticamente, no caminho da extinção. “Para um partido que já foi tão importante, que levantou uma bandeira da social democracia, capaz de olhar para o social e para o desenvolvimento da economia, se ele se diminuir estritamente às disputas internas, é um caminho para levar ao seu desaparecimento.”

Perante um fracasso completo, em 2022, pode restar ao PSDB apenas tornar ao berço. Uma fusão com o MDB.

"É uma ferida aberta na nossa história", diz coautor de livro sobre caso Marielle

Em seu último discurso antes de ser assassinada, em março de 2018, Marielle Franco, quinta vereadora mais votada do Rio nas eleições de 2016, disse que não admitiria ser interrompida por ninguém. Os esforços para que seu legado subsista ganharam uma contribuição com o livro Quem Matou Marielle? - Os bastidores do caso que abalou o Brasil e o mundo relevados pelo delegado que comandou a investigação (Matrix - 2022), escrito pelo delegado Giniton Lages, responsável pelo primeiro ano de investigações, e pelo cientista político Carlos Ramos. Já se passaram quatro anos desde que a vereadora do PSOL e seu motorista, Anderson Gomes, foram alvejados por 13 tiros à queima roupa. O caso segue com o mandante do crime desconhecido.

Ao todo, cinco delegados passaram pela investigação. O primeiro deles foi Lages, que se surpreendeu ao ser afastado do caso. O último a chegar, Alexandre Herdy, assumiu há dois meses. E uma nova janela se abriu para as investigações quando a polícia e o Ministério Público apontaram que um dos possíveis mandantes é Rogério de Andrade, um dos principais nomes do jogo do bicho carioca. Dois suspeitos de terem cometido o crime estão presos, mas ainda não foram julgados. “Mergulhamos no primeiro ano da história. O livro foi escrito para honrar a democracia e a memória de Marielle”, diz Ramos, que também é filósofo e jornalista e conversou com o Meio sobre a produção da obra.

Ramos foi a escuta atenta de seu amigo delegado, que decidiu compartilhar suas memórias a partir de um ângulo privilegiado do caso. O livro traz uma narrativa apartidária, didática, que detalha protocolos da investigação, incluindo inovações como a que resultou no Google contribuindo com a quebra de sigilo de operadoras de celular, levantando o histórico de navegação dos suspeitos. Acompanhe trechos da entrevista.

Como sua história se encontrou com a de seu coautor, o delegado Giniton Lages?
Temos uma relação pessoal. Durante o caso Marielle, eu acompanhei como amigo a angústia dele. Depois de um tempo, ele foi afastado do caso e tinha vontade de contar essa história. Eu, pessoalmente, tinha muito interesse no assunto, não conhecia a trajetória da Marielle. Foram dois anos nesse trabalho.

Como foi a produção do livro?
Giniton tinha a história de um ponto de vista inédito e único de quem estava dentro do caso, no furacão. E eu tinha interesse como pesquisador. Juntamos as memórias dele com a minha pesquisa. Eu pesquisava e fazia perguntas pontuais, já que a memória muitas vezes é seletiva. O meu trabalho era de ouvi-lo, passamos semanas gravando entrevistas e eu ia montando um cronograma pelos fatos. Fizemos entrevistas e contatos com outros policiais e pessoas da equipe. Visitamos locais que tinham importância para a história.

Quais foram suas descobertas nesse processo?
Nós quisemos trazer consistência para o livro e isso vem com contexto e evidências. É impossível pensar no caso Marielle sem entender o contexto político e cultural daquele momento. Minha primeira descoberta foi a própria Marielle, eu não a conhecia. Era uma pessoa ética e com propósito. A segunda foi descobrir o Rio de Janeiro. E, mais do que isso, a proposta é discutir o Brasil — o crime acontece no Brasil e a dificuldade de desvendá-lo é porque estamos no Brasil. As pessoas acreditam que um crime de grande repercussão vai ser investigado de forma diferenciada, e isso não acontece. Ele é olhado com os mesmos recursos humanos, materiais e dificuldades de lidar com essas instituições. Continua sendo investigado na mesma realidade.

E qual era esse contexto?
Começa pela intervenção [federal na segurança pública do Estado]. Era um contexto muito atípico, porque foi a primeira intervenção na história depois da Constituição. Houve operações temporárias de garantia da ordem, mas uma intervenção tirando poderes do governador e passando ao presidente da República era o único. Tudo indica que isso foi feito sem o planejamento adequado. O [então governador] Pezão viaja para Brasília num final de tarde e fica até 23h com o [então presidente Michel] Temer para resolver. No dia seguinte, anunciam a intervenção. Era um momento sensível do ponto de vista eleitoral, o presidente ensaiava uma possibilidade de reeleição. Será que a segurança pública foi tratada realmente em termos técnicos? Ou ela foi vista como um momento oportuno pelo governo federal? Esse é um ponto.

O que a investigação revelou da operação das milícias?
Na medida em que vão se checando as linhas de investigação, mesmo que essas linhas acabem não levando à solução do caso, elas vão demonstrando o problema complexo de segurança no Rio. Minha preocupação é tratar milícia como se fosse um fenômeno único, e não é. Não existe uma categoria que possa ser classificada como milícia, são muitas situações diferentes tratadas do mesmo jeito. Há grupos militares que andam armados, dominam determinados territórios e exploram as atividades econômicas, mantendo um certo controle por meio da violência. Só que esses grupos são muito variados. Há aqueles liderados por ex-agentes ou agentes de segurança pública; tem outros que são liderados por civis; uns combatem o tráfico nos seus territórios; outros estão envolvidos com o tráfico. Então, a primeira coisa é não simplificar uma situação complexa. O caso desse grupo é muito complexo e tem ramificações em outras áreas. O livro mostra que existe uma rede de relações, e que essa rede perpassa o tecido social no Rio de Janeiro.

Com o que se sabe hoje, é possível responder à pergunta-título do livro?
Nós mergulhamos no primeiro ano da investigação. Muita coisa aconteceu três anos depois. Então, 75% do caso eu desconheço. O livro coloca essas dúvidas e acaba quando os suspeitos são presos e Giniton é afastado do caso. O caso foi precursor em várias técnicas de investigação. Quando o Giniton participou em 2011 da investigação da morte da juíza Patrícia Acioli, a tecnologia era de ligações telefônicas.

Dos bastidores da investigação, houve algo que ficou escondido do público que valha destacar?
O caso só foi resolvido pela disposição do delegado e da equipe. Tinha tudo para não ser: um cenário complexo, um crime planejado em detalhes, o esforço de não deixar rastros. Os bastidores acabam revelando essa vontade. Por exemplo, a tentativa deles de conseguir as imagens de câmeras [de segurança da rua], que falavam ser impossível por conta do contrato [suspenso, que acabou desligando as câmeras]. Mas a equipe insistiu. No caso do Google, eles não se negam mais a oferecer os dados, isso foi uma contribuição da investigação da Marielle. Hoje é possível quebrar o sigilo, fazer esse acordo para obter o histórico de navegação de internet.

Você ficou com medo de fazer o livro?
A gente sempre tem medo, claro! Seria irresponsável não ter. Mas essa preocupação acaba guiando o livro num caminho positivo. Decidimos desde cedo que não faríamos julgamento de valores. Queríamos contar o que aconteceu, mas com um certo distanciamento. O caso Marielle é uma ferida aberta na história do Brasil, na democracia e que não pode ser esquecido. Precisa ser resolvido. Para isso, entendemos que a melhor maneira era contar os fatos sem politizá-los, para que as pessoas reconhecessem a grandiosidade da Marielle e não só o que aconteceu depois.

Mas escolher contar essa história é um ato político.
Todo ato é político. A polarização acaba tirando a oportunidade de o país seguir caminhos consistentes. Nossa preocupação era fazer um trabalho que tivesse conteúdo aprofundado, que as pessoas tivessem acesso a elementos para entender os fatos. A ideia é tentar trazer lucidez e mostrar que não adianta ficar nessa guerra vazia se não conseguimos enfrentar problemas como esse. A morte da Marielle é um problema, por tudo que envolveu, pela violência, por tudo que ela representava, pelo que aconteceu depois. Tudo isso precisa ser revisto. O objetivo do livro é pensar o Brasil a partir dessa ferida aberta da nossa história.

Memórias do exílio

Um porão pode não ser o melhor lugar para gravar um disco, mas entre julho e novembro de 1971, as paredes de um subsolo “realmente feio” — como descreveu seu próprio dono à época, o guitarrista Keith Richards — foram o cenário de gravação de um dos álbuns mais emblemáticos da história do rock e da carreira dos Rolling Stones. Foi na residência de Richards, a mansão Villa Nellcote, construída em 1890 em Côte D'Azur, litoral do Sul da França, que a banda gravou parte do 'Exile on Main Steet', álbum lançado em maio de 1972 e que completa 50 anos.

Mais do que falar do disco em si, é importante explicar porque os Stones foram parar no interior da França nos anos 1970. Com o lançamento do Sticky Fingers em abril de 1971, primeiro álbum pela gravadora própria da banda, os Stones finalmente assumiram o controle criativo de seus empreendimentos artísticos. Parecia o fim de um período conturbado que começou no final dos anos 1960. Primeiro, com a morte do fundador e guitarrista da banda, Brian Jones, em 1969. Depois, com o desastroso show ao ar livre Altamont Speedway, no norte da Califórnia, que resultou em morte na plateia e contou com a “segurança” - ou a falta dela - do clube de motociclistas Hell’s Angels. Um verdadeiro pandemônio que em nada lembrava os dias de paz e amor do Woodstock.

Mas nem tudo foi mil maravilhas quando os Stones tornaram-se “self employed”. Quando a banda finalmente resolveu dar uma olhada na conta bancária, depois de anos de 'sexo, drogas e rock'n'roll' sem olhar a fatura do cartão de crédito, a coisa ficou punk: além de já terem perdido os direitos autorais do catálogo de músicas produzidas por eles durante a década anterior para o antigo empresário, os impostos pesaram sobre a banda e eles passaram a dever até as guitarras de Richards para o primeiro-ministro britânico Harold Wilson, que impôs leis sobre os super-ricos. A saída? Pagar ou sair. Então a banda se exilou e levou esposas e filhos para a França - a contragosto do baixista Bill Wyman e do baterista Charlie Watts, que deixaram o conforto do estilo de vida inglês. O novo guitarrista, Mick Taylor, por outro lado, ficou encantado ao voar para a França no jato particular da banda. Já Mick Jagger foi para Paris com a esposa Bianca Jagger.

Sem um grande estúdio de gravação nas proximidades, os Stones decidiram montar um improvisado na mansão de Keith Richards e trouxeram um estúdio móvel. Agora, o novo estilo de vida da banda era mais despreocupado e descontraído. Mas era quase impossível colocar todos os membros da banda no mesmo lugar ao mesmo tempo para gravar, e o vício de Richards em heroína também não ajudava na produtividade. Sem contar as condições do próprio porão. O lugar era quente e úmido e as guitarras estavam quase sempre desafinadas. A eletricidade também desligava às vezes. E, como não havia uma grande sala para juntar todo mundo, os membros da banda ficavam espalhados em diferentes cantos da casa, com a fiação atravessando corredores e janelas. Havia dias em que só dois Stones estavam gravando; em outros, sobrava até para o produtor Jimmy Miller tocar bateria e percussão. A Villa Nellcote era uma casa tão aberta que, num dia de setembro, ladrões saíram pelo portão da frente com nove guitarras de Richards, o saxofone de Bobby Keys e o baixo de Bill Wyman em plena luz do dia enquanto o pessoal assistia televisão na sala.

De alguma forma, em meio a todo aquele caos — festas, encontros com celebridades, músicos, namoradas, esposas, filhos e até traficantes —, o álbum começou a acontecer. Depois de alguns meses, porém, a festa acabou e a banda decidiu terminar as gravações em Los Angeles, nos Estados Unidos. A certa altura, a polícia francesa já estava atenta ao que acontecia na mansão e, principalmente, com Richards. Mais tarde, em 1973, a autoridades invadiram a Villa Nellcote e Keith Richards e sua esposa, Anita Pallenberg, foram acusados de posse de heroína. A sentença de culpado fez com que o guitarrista fosse proibido de entrar na França por dois anos, e, por consequência, os Stones.

Então, foi a vez de a banda se exilar na América. Na verdade, o álbum de 18 músicas soa até mais como um exílio nos EUA, por conta das influências do blues, country e gospel com o rock'n'roll dos anos 1950 de Buddy Holly e Chuck Berry. É assim em “Sweet Virginia”, “Ventilator Blues” e “Torn and Frayed". No documentário ‘Stones in Exile’, de 2010, Jagger revela que algumas das letras foram escritas de última hora, incluindo o primeiro single do álbum, “Tumbling Dice”, que foi composto “depois de me sentar com a governanta e conversar sobre jogos de azar”.

Nos Estados Unidos, os Stones finalmente conseguiram a produtividade que faltava e finalizaram o álbum em março de 1972. As gravações contaram também com o lendário tecladista e cantor Billy Preston em algumas faixas, que tocou com os Beatles na gravação do ‘Let It Be’ e no concerto do rooftop. Quando ‘Exile’ finalmente veio ao mundo, os críticos torceram o nariz, dizendo que o disco era “expansivo” demais. Mas, no final da década, foi considerado um dos melhores álbuns dos Rolling Stones, se não o melhor. “Os Stones realmente pareciam exilados”, disse Keith Richards. “Era nós contra o mundo agora. Então, foda-se! Essa foi a atitude.”

De imagens do casório à receita de cocotte, passando por um emoji, hmmm, provocador, eis os mais clicados por nossos leitores nessa semana:

1. G1: As imagens do casamento de Lula e Janja.
2. YouTube: Ponto de Partida - Zero um explica o golpe.
3. Twitter: Elon Musk reage à explicação de Parag Agrawal sobre spam na rede.
4. YouTube: Ponto de Partida - A guerra nas redes só tem um vencedor.
5. Panelinha: Você já comeu cocotte?

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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