Populismo a diesel

Bolsonaro está dividido entre dilapidar a Petrobras para reduzir preços e conquistar votos ou atender o mercado liberal que o ajudou a se eleger. Na dúvida, vai demitindo presidentes e minando a credibilidade da empresa

Por Luciana Taddeo

Foram apenas 40 os dias de José Mauro Coelho à frente da Petrobras antes do anúncio de sua demissão. No último dia 23, o presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), por meio do Ministério de Minas e Energia (MME), dispensou o terceiro ocupante do cargo em seu governo, agradecendo, em nota, “pelos resultados alcançados em sua gestão”. Talvez tenha sido ironia. Em entrevista ao apresentador-aliado Sikêra Jr. no sábado, Bolsonaro justificou-se: “O que nós estamos tentando fazer agora, via MME, que foi trocado o ministro, é trocar o presidente da Petrobras para colocar uma nova diretoria, para que os números da Petrobras sejam expostos para a opinião pública, e não ser praticamente uma caixa-preta como é hoje em dia”. “Opinião pública” é, para Bolsonaro (especialmente em 2022), sinônimo de eleitor. O que o presidente vem fazendo com a Petrobras, desde a demissão de Roberto Castello Branco, em 2021, é uma tentativa de uso político da estatal para fins populistas, eleitoreiros. Bolsonaro não inventou o uso político da Petrobras — ou quase nenhum outro disparate de seu governo. A originalidade está no despudor.

A troca de ministro a que Bolsonaro se referiu foi a chegada de Adolfo Sachsida ao MME, no lugar de Bento Albuquerque, também demitido em maio. Sachsida é do time de Paulo Guedes, ministro da Economia, e indicou Caio Paes de Andrade para a presidência da Petrobras. Andrade é formado em Comunicação Social, tem experiência com empresas de internet que cresceram nos anos 2000, e presidiu o Serviço de Processamento de Dados (Serpro), responsável, entre outras coisas, pela triagem de cadastros do Auxílio Emergencial. A análise de seu nome para assumir o cargo pode levar até dois meses — Coelho ocupa a cadeira até lá.

Bolsonaro atua sob esse pêndulo: agradar o mercado guedista, com a promessa de liberalização econômica; e eleitores pressionados por uma inflação corrosiva, gasolina e diesel à frente. No meio do caminho, ainda acenou às Forças Armadas, com a indicação do general Joaquim Silva e Luna, que sucedeu Castello Branco. Acontece que Guedes e companhia parecem ter cedido aos encantos populistas e guardaram suas cartilhas liberais para um momento menos sensível eleitoralmente.

Interferir em preços de mercado é contrassenso básico com liberalismo. Mas a pressão é a seguinte: inflação nos últimos 12 meses de 12,13%; preço médio do botijão de gás de 13kg passou de R$ 63,95 em abril do ano passado para R$ 85,12 em abril de 2022, aumento de 33%; preço médio da gasolina comum foi de R$ 4,98 por litro para R$ 6,53, aumento de 31,12% no mesmo período; o litro de diesel comum aumentou de R$ 3,78 para R$ 6,04 entre abril de 2021 e de 2022, salto de 59,7%. O Brasil roda a diesel. Não há um cidadão brasileiro que não esteja diretamente afetado pela alta nos preços dos combustíveis e consequente inflação geral.

Chamar de intervenção o que Bolsonaro vem tentando fazer é um exagero. E há, inclusive, divergências entre especialistas sobre sua real intenção de interferir nos preços dos combustíveis. As demissões são concretas o suficiente para caracterizar, no mínimo, uma manobra eleitoreira. O troca-troca pode ser, na realidade, para terceirizar responsabilidades, sem ter de agir de fato na política de preços. É o que diz Creomar de Souza, cientista político e CEO da consultoria Dharma Political Risk and Strategy, para quem Bolsonaro sabe que, ao manter o lucro da estatal, ele não somente auxilia o Tesouro, que recebe dividendos da empresa, como preserva seu eleitorado alinhado ao liberalismo econômico de Guedes. “Os 30% residuais de apoio a Bolsonaro são compostos daquele indivíduo reacionário, conservador, evangélico, mas também daquele pessoal que está no sistema financeiro, que ainda compra o Guedes. O presidente tem duas opções: ou ele mexe na política de preços ou mantém as coisas como estão e sai com uma tergiversação. A deste momento é dizer que a Petrobras tem de ser privatizada“. Ou que é uma caixa-preta.

Fazer o discurso de que é vítima do sistema e que “não deixam” ele mudar o que está errado é estratégia manjada de Bolsonaro.

“É uma escolha. Ele destitui Bento Albuquerque e coloca Sachsida, que como Guedes tem a visão muito concreta de que não se mexe na política de preço, porque seria mandar ao acionista um recado de que o governo é intervencionista. E aí coloca Andrade, outro homem de confiança de Guedes. Andrade não tem experiência em energia, mas em comunicação. O insight que estamos tendo é que o governo acredita que o problema com a Petrobras é de imagem, ele quer mudar o discurso, a narrativa e a simbologia”, acrescenta Souza. O analista aponta ainda que Bolsonaro pode temer punições severas caso mexa de fato nos preços da Petrobras. “Talvez seja medo de, no dia seguinte, ser processado por crime de responsabilidade, de ir para a cadeia. Não se pode descartar do cálculo que um dos interesses do presidente é ter algum tipo de imunidade política no próximo ano.” Ainda assim, ao indicar um presidente sem experiência no setor, Bolsonaro descumpre o artigo 17 da Lei das Estatais.

O sociólogo Felippe Ramos, pesquisador de populismos e crises constitucionais pela The New School de Nova York e que atuou na missão do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) na Venezuela, tem outro nome para esse movimento pendular de Bolsonaro na Petrobras, entre o liberalismo teórico de Guedes e as tentativas de intervenção: “mistura esquizofrênica de nacionalismo e liberalismo”. “É uma contradição, são termos mutuamente excludentes, o que torna o governo pior do que um governo puramente nacionalista. Os agentes do mercado não conseguem entender o que está acontecendo, e os riscos aumentam. Quando o governo é coerente, presidente e ministro falam a mesma coisa. Há uma esquizofrenia política e uma incapacidade política do presidente de intervir, e prevalece a vontade do Guedes”.

Ramos acredita que “Bolsonaro é um nacional populista à extrema-direita, que apoiou os caminhoneiros [nos protestos no governo de Michel Temer] e prefere que o preço dos combustíveis baixe. Só que ele terceirizou a economia para o Guedes. Na queda de braço entre eles, o que sobra para Bolsonaro é demitir o presidente da Petrobras”. Ele complementa que o presidente ainda faz “populismo com o bolso alheio” ao trabalhar pelo teto do ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias) para baixar os preços nas bombas, mexendo na arrecadação dos estados brasileiros. E defende que intervir na Petrobras e em suas políticas teria uma justificativa bem mais razoável que a eleitoreira: o custo humano da alta nos preços. “As pessoas estão morrendo ao cozinhar com lenha e álcool, tem criança morrendo em casa. O Estado pode decidir fazer uma política de emergência, de redução do preço do botijão de gás, por exemplo. Seria uma política de contenção das pressões inflacionárias via intervenção do governo na empresa que ele controla.”

No centro da política

Fundada em 1953, sob a presidência de Getúlio Vargas, a Petrobras, estatal de capital aberto que tem o governo como acionista controlador, desempenhou variados papéis na retórica política, a depender da ideologia e da corrente econômica do governo da vez. Foi símbolo da promessa de um Brasil autossuficiente na produção de petróleo, foi estratégica no controle de preços, no desenvolvimento da indústria nacional e na governabilidade de coalizão.

No governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, foi editada a nova Lei do Petróleo, que quebrou o monopólio da Petrobras, mas ele mesmo chegou a vetar um aumento na gasolina anunciado pela petroleira em 2002, ano eleitoral. Dilma Rousseff, com seu ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, optou pela contenção dos preços dos combustíveis no mercado interno e investimentos na indústria local às custas do lucro da companhia. No período, a empresa acumulou a maior dívida corporativa do mundo. Michel Temer, por sua vez, deu início à privatização de ativos da empresa e à política de paridade dos preços do combustível no mercado interno com valores do mercado internacional. Bolsonaro privatizou a BR Distribuidora e a refinaria de Mataripe na Bahia, estado onde houve recorde do preço do combustível.

A visão desenvolvimentista, de uma Petrobras a serviço exclusivo e quiçá monopolista da economia brasileira, dos governos do PT foram dando lugar à visão liberal e privatista do governo Temer e de Paulo Guedes.

Por isso, ver uma pressão “escancarada” pelo controle de preços no governo bolsonarista pode causar espanto a especialistas como David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da ANP e ex-presidente do Conselho de Administração da Petrobras. “As tentativas de Bolsonaro são escancaradas. No governo Dilma, isso era mais dissimulado, nunca formalizaram proposta desse tipo.”

Zylbersztajn aponta que Bolsonaro é populista no discurso que faz sobre os preços do combustível, mas não consegue levá-lo a cabo por conta dos mecanismos de autodefesa que a Petrobras implementou pós-petrolão. “Com a mudança de estatuto, há um comitê de compliance e responsabilização mais séria dos conselheiros. A Petrobras se tornou muito mais autônoma, tanto em termos públicos como enquanto corporação. As nomeações têm critérios mais rígidos, foi feita a Lei das Estatais, a gestão através do conselho de administração é bem mais importante, e isso faz diferença.” Ele lembra, como efeito das mudanças, que com a destituição do ex-presidente da estatal Roberto Castello Branco, no ano passado, parte dos conselheiros pediram para deixar o cargo achando que haveria mudança na política de preços da companhia.

“Eu diria que até agora não houve intervenção do governo Bolsonaro porque diretoria e Conselhos de Administração estão alinhados a uma política própria. Atrasar reajustes pode ser muito ruim para o país, porque se tiver aumento administrativo do preço do petróleo ou defasagem do câmbio, o importador tem dificuldade para cobrir a diferença e a Petrobras tem que comprar e vender mais barato do que no mercado internacional, repetindo o [prejuízo do] governo Dilma”, acredita o ex-diretor.

Caso venezuelano

No epicentro da disputa, Paulo Guedes recorreu a um dos truques favoritos do bolsonarismo para justificar qualquer ação: a comparação com a Venezuela. "Nós já sabemos esse caminho, nós não queremos que a Petrobras vire a PDVSA um dia, vire uma ferramenta de politização, como virou no passado”, disse Guedes em abril. Mas os pontos de semelhança com o caso venezuelano são justamente por conta das ações de seu chefe.

Em que pese a essencial diferença de que a Venezuela é um petro-Estado, o uso indiscriminado da estatal para políticas públicas sem um planejamento fez com que a PDVSA (Petróleos da Venezuela S.A.), criada em 1975, visse minguar sua produção, que passou de mais de 3,2 milhões de barris diários no final da década de 1990, para cerca de 500 mil no final de 2020, sob a presidência de Nicolás Maduro. “Em paralelo, na segunda metade da década de 2000, há um processo de desconstrução da institucionalidade republicana e democrática do país que acaba com mecanismos de controle e prestação de contas da empresa”, explica o venezuelano William Clavijo Vitto, doutor em políticas públicas, estratégias e desenvolvimento, pela universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Segundo ele, a decadência aconteceu numa sequência. Com a politização da empresa, cerca de 20 mil trabalhadores foram demitidos após protestos contra Hugo Chávez, quando o então presidente começou a promover mudanças na ascensão da hierarquia empresarial, que antes acontecia por métodos meritocráticos. Houve também o fim de uma política salarial atrativa e uma opção por investimentos em atividades não centrais da empresa, como política social; subsídios a exportações para países alinhados ideologicamente; mudança a força de termos contratuais com multinacionais, em 2007, para aumentar a maioria acionária e participações do estado venezuelano; e diminuição de investimento em atividades que permitiriam a expansão do nível de produção e refino.

“Há riscos em politizar a seleção das pessoas para assumir a presidência e o Conselho de Administração da Petrobras”, diz o analista venezuelano, bolsista de pós-doutorado do Programa de Recursos Humanos da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis. Para ele, as tentativas do governo de controlar os preços do combustível podem remeter a similaridades com o caso venezuelano, onde o preço da gasolina sempre foi subsidiado, mas “há diferenças porque no Brasil há resistência da empresa, já que obviamente isso vai contrariamente ao que está estabelecido na lei”, pontua.

O sociólogo Felippe Ramos pontua mais uma diferença: Chávez leva a intervenção na indústria do petróleo iniciada no primeiro mandato do presidente venezuelano Carlos Andrés Pérez, que a nacionalizou, a outro patamar: cria uma subsidiária da PDVSA para distribuir alimentos. “A PDVAL chegava a distribuir comida, cestas básicas. Usava-se a logística e as finanças da PDVSA para importar o que a Venezuela precisava, inclusive o açúcar, o papel higiênico que faltava no mercado, e distribuíam na porta das pessoas. Isso é um nível de populismo direto”, ressalta.

Outro erro, segundo ele, na política petroleira do país vizinho é o subsídio histórico ao preço da gasolina, que vem antes mesmo da chegada de Chávez ao poder: “É uma política ilógica, já que acaba sendo um subsídio para quem tem carro, os mais ricos. Poderia haver uma política direcionada ao diesel, com impacto para os caminhoneiros e transporte público, mas à gasolina sempre beneficia os setores mais privilegiados e é um populismo grosseiro”. Na gasolina, no diesel ou no gás, o populismo encontra formas de se reproduzir tanto lá quanto cá. E o Brasil vai ficando mais parecido com a Venezuela.


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