Edição de Sábado: O meritíssimo algoritmo

Por Bruna Buffara e Tay Oliveira

O que você consegue fazer em 60 segundos? Conseguimos dizer, por certo, o que você não consegue: formar uma opinião crítica, informada e sóbria sobre um caso de difamação, tornado em referendo sobre violência doméstica e relacionamentos abusivos, que durou seis semanas. Mas talvez seja capaz de, ao ver um trecho de depoimento, uma revirada de olhos, ouvir uma única frase extraída de horas de relato, escolher um lado, eleger um culpado e uma vítima e lhes atribuir, no tribunal das redes sociais, uma condenação ou a redenção.

Johnny Christopher Depp II é uma dessas figuras de Hollywood que poderiam ilustrar o termo ‘estrela’ num almanaque. Dono de uma extravagância fascinante, carismático e belo, Depp estourou com Anjos da Lei e interpretou personagens memoráveis, como Edward (Edward Mãos de Tesoura), Don Juan (Don Juan de Marco), Donnie Brasco, Raoul Duke (Medo e Delírio), Willy Wonka (A Fantástica Fábrica de Chocolate) e tantos outros até desaguar em Jack Sparrow, da série Piratas do Caribe. Ainda assim, o astro começou seu processo de difamação contra a ex-mulher Amber Heard, também atriz mas com uma trajetória bem menos estelar, cancelado no tribunal da internet. Era tido, com algum consenso, como abusador e ‘tóxico’, viu contratos sendo desfeitos e sua carreira ruir.

Depp e Heard se conheceram em 2012, casaram-se em 2015 e se divorciaram em 2016, quando Amber pediu uma medida protetiva contra o ex e apareceu no tribunal com um machucado no rosto. Mas, num comunicado conjunto, os atores anunciaram que haviam resolvido a questão. Dois anos depois, no entanto, Heard publicou um artigo de opinião no Washington Post em que se colocou como vítima de violência doméstica. No Reino Unido, em 2020, um juiz deu uma decisão desfavorável a Depp num julgamento contra o tablóide The Sun, que o havia chamado de “wife beater” — aquele que bate na própria mulher. O que mudou o patamar do caso, em termos de alcance, em 2022? Os algoritmos. E os vídeos curtos.

O julgamento

O julgamento Depp vs Heard começou no dia 11 de abril de 2022, em um tribunal na Virgínia, nos Estados Unidos. O pequeno estado, cujas fronteiras se iniciam a um atravessar de rio saindo da capital Washington, é onde ficam os servidores que hospedam o site do Post. Por isso, fica lá o tribunal selecionado para o caso — um caso, desde o primeiro instante, inteiramente televisionado e, depois, editado à vontade pelos usuários das redes sociais. Em pílulas de um minuto ou menos. Depp processou Heard em US$ 50 milhões por difamação. O artigo que Heard escreveu para o Post (na verdade redigido por ghost-writers de uma organização de direitos civis, a ACLU) sobre ser uma sobrevivente de abuso doméstico continha acusações falsas, afirmava o ator. Em nenhum momento Heard cita o nome de Depp ou de qualquer outra pessoa. Ela menciona, porém, como dois anos antes se tornara uma celebridade “representante da violência doméstica”. De acordo com os advogados de Depp, o artigo prejudicou a imagem do ator e o fez perder contratos. Em contrapartida, a atriz processou o ex-marido de volta, também por difamação, por tê-la chamado de mentirosa. Pedia, na ação, US$ 100 milhões.

Em seus depoimentos, Depp e Heard trocaram acusações mútuas. Áudios com agressões de ambos foram repetidos ad nauseam no tribunal. A linha de defesa de Depp, além de negar que ele houvesse abusado fisicamente de Heard, era de garantir que a abusadora era ela. Testemunhas de lado a lado deram suas versões. O júri, composto por cinco homens e duas mulheres, chegou a um veredito no dia 1º de junho. Foi concluído que Amber Heard agiu de má fé ao escrever o artigo de opinião para o Washington Post e que quase todas suas reivindicações sobre Depp eram infundadas. Apenas uma decisão foi a seu favor. Amber inicialmente teria de pagar US$ 15 milhões a Depp e ele, US$ 2 milhões a ela. Com os valores reajustados para os limites do estado de Virginia e o pedaço da decisão favorável a ela, Heard saiu devendo US$ 8,35 milhões ao ex-marido. Heard, porém, diz não ter os fundos para a indenização.

Esse foi o veredito formal. No da opinião pública, virtual e midiática, a vitória de Depp ficou bem maior.

O caminho para essa conversão das paixões passa, em primeiro lugar, pelos protagonistas do caso. Ambos brancos e ricos. Ambos atores. Johnny com uma base de fãs naturalmente mais consolidada e assídua, disposta a ir ao tribunal para protestar pelo ídolo. Num júri lotado de câmeras, em que tudo seria repercutido em lives no YouTube, TikTok e em outras redes sociais, sejam de perfis jornalísticos ou não, era o esperado: os atores iriam atuar. Daniela Osvald, doutora e mestre em Ciência da Comunicação pela Universidade de São Paulo (ECA/USP), comenta o processo: “É uma performance para a câmera, uma vez que eles sabem que estão sendo filmados e isso será usado e repercutido em diferentes mídias. O diferente é que na internet você não tem o controle da angulação em que a performance será repercutida.”

Nesse quesito, Depp soube usar seu talento.

Nas redes e plataformas de conteúdo, não há trabalho editorial, centro de apuração, critérios, normas. O usuário é seu próprio curador. E a escolha do que publicar, com que viés, pode estar baseada em crenças, valores pessoais, desejo de fama. Ou por dinheiro. Influencers que sentiram a maré pró-Depp na web e abusaram da publicação de recortes dos depoimentos bem pouco lisonjeiros a Heard chegaram a ganhar US$ 80 mil em maio com a monetização de vídeos no YouTube e no Instagram. Pequenas contas no TikTok, como a da usuária Petty Parrot, por exemplo, começaram a ilustrar o julgamento usando hashtags como Amber Turd. (A tradução é grosseira.) Parrot acumulou milhares de seguidores, entrou para o fundo de criadores do TikTok e, por isso, seus vídeos começaram a lhe pagar por visualizações.

O astro oculto nesse processo é sua excelência, o algoritmo. Nas redes, o algoritmo define se você ‘gostou’ de um conteúdo — para, então, oferecer outras zilhões de coisas parecidas — partindo de diversas camadas. Legenda, som escolhido, hashtags, efeitos da câmera, a transcrição de áudio, localização, língua e tipo de dispositivo. E a rede que transformou esse jogo foi o TikTok. O sucesso gigantesco dessa plataforma de vídeos curtos, com apelo inescapável ao público jovem, obrigou as demais a se adaptarem e copiá-la. O império das imagens em looping e em pequenas, mas consistentes doses, se expandiu.

O TikTok ficou conhecido pelas dancinhas não por acaso. O áudio escolhido ao postar um vídeo é fator determinante para o algoritmo entender para qual audiência distribuir aquilo. É um fator tão importante que músicas virais no TikTok definem rankings como o da Billboard. Além disso, tudo que é dito nos vídeos é catalogado, todas as palavras são detectadas. Mas seu comportamento com a ferramenta também define seus interesses. Se você abre os comentários, sem curtir nada, o aplicativo entende seu interesse na comunidade em torno daquele assunto. Se salva o conteúdo ou o envia para alguém, você mostra para o algoritmo também o que desperta seu interesse. O que um criador de conteúdo curte é replicado para parte de quem o segue, porque os interesses são os mesmos. Todo comportamento e interação com a plataforma é baseado nos cliques, curtidas, compartilhamentos ou mesmo no que é ignorado. Sim, o feedback negativo é tão importante quanto o positivo. O que você marca como desinteressante, seja passando o vídeo ou dando um ‘dislike’ é mais um dado sobre seu interesse.

Emilio Alves, doutorando pela Escola de Comunicações e Artes da USP e pesquisador de opinião pública em jovens, explica. “O TikTok é o aplicativo mais baixado nos celulares em 2022. E ele tem uma forma viral de comunicação, em que o algoritmo aprende com o engajamento do usuário e rapidamente o realimenta com materiais similares. Trata-se de consumo de conteúdo em grande volume, mas com profundidade limitada. Não há tempo hábil para reflexão e análise, logo se inicia um novo vídeo.” É como um shot. Como se trata basicamente de entretenimento, o feed oferece pequenas doses constantes de prazer, que norteiam a navegação do usuário por uma lógica algorítmica de editoria, tema, influenciador ou tendências. “Se há apreço pelo conteúdo recebido, automaticamente novos vídeos parecidos serão direcionados para aquele usuário e acabam reforçando opiniões sobre determinados assuntos, formando as chamadas bolhas. O pensamento controverso, complexo ou crítico perde espaço”, acrescenta Alves.

O ódio como ferramenta

As big techs criam os algoritmos e os selam a sete chaves. Claro, é o cerne de todo o funcionamento de sua empresa e de como fazem dinheiro. Ninguém conhece por completo o que há por trás das operações de Twitter, Facebook, Instagram, TikTok, YouTube. É possível testar algoritmos, verificar e monitorar bolhas, com ferramentas como o bot sentinel, mas saber exatamente como eles funcionam, não. Isso se torna um problema quando não se consegue rastrear grandes movimentos em massa online, como o surgimento de algumas hashtags que explodiram de menções durante o julgamento. O que há em comum em todas é a misoginia. No Twitter, Amber is a liar, Amber is a psychopath, We just don’t like you Amber. No TikTok, vídeos que viralizaram continham as mesmas tags. Já para Depp, as tags mais populares eram Justice for Depp, Johnny dpp Trial.

Os vídeos a favor de Depp acumularam mais de 19 bilhões de visualizações no TikTok. (Para termos de comparação, as três emissoras de maior audiência nos EUA têm, em média, 19 milhões de espectadores para seu noticiário.) “Não sabemos quantas pessoas estão por trás desse engajamento. É orgânico? Existem grupos trabalhando por isso? Será que alguém foi num ‘chan’ e instruiu que o caso de Depp deveria virar assunto? Algo como ‘ele é nosso representante, temos que defendê-lo’? Não temos como ter certeza”, explica Daniela Osvald.

Esse engajamento artificial com frequência nasce nos chans, fóruns online onde as discussões são anônimas e, os frequentadores, em geral rapazes jovens. De lá, eles fazem prosperar teorias conspiratórias e promovem levantes misóginos. Foi o caso do GamerGate, uma campanha online da extrema-direita que organizou ataques virulentos contra mulheres proeminentes na indústria dos videogames. Uma delas, a principal vítima, foi Zoe Quinn, desenvolvedora de um jogo de ficção interativo. Ela recebeu diversas mensagens de ódio, ameaças de estupro e morte em 2014. Conforme o ataque coordenado ganhou espaço e holofote nas redes, mais pessoas se juntaram ao movimento contra Quinn. Uma das maneiras de coordenar os ataques para fora dos chans é usando contas falsas nas redes e envios repetidos da mesma mensagem. Com a descentralização de criação de conteúdo na internet, as hashtags se tornaram um negócio. “Existe, hoje, uma formação de públicos fora do radar. Nesse fenômeno, temos públicos que estão influenciando narrativas abaixo do que conseguimos enxergar. Nós olhamos os trending topics, mas o quanto ele é orgânico, natural?”, questiona Daniela.

Uma pesquisa realizada pela Cyabra, empresa israelense que rastreia desinformação, identificou que 10,8% das contas envolvidas na discussão online em torno do julgamento eram falsas. Em dados enviados ao Meio, o porta-voz da empresa, Rafi Mendelsohn, detalha: do dia 13 de março ao dia 15 de abril, foram analisadas mais de 2.300 contas do Twitter engajadas com o julgamento. Para Mendelsohn, a proporção de robôs opinando sobre o julgamento só se equipara com a de bots envolvidos em grandes eleições. Quando Kate Moss testemunhou a favor de Depp, no dia 25 de maio, o sentimento negativo com relação a Heard subiu 40%, enquanto sentimentos positivos em relação a Depp subiram 50%, comparando com o dia anterior. Já o sentimento positivo com relação à advogada de Depp, Camille Vasquez, teve um aumento de 4.463% do dia 19 ao dia 20 de maio. O motivo do pico da fama foi a rapidez com que Vasquez protestava contra a advogada de Heard no tribunal, rendendo os cortes que foram para o TikTok. Os vídeos com a hashtag camillevasquez tiveram 2,4 bilhões de impressões no aplicativo.

Mas mesmo os memes de Camille tinham um viés. “A linguagem característica dessas plataformas é o meme, um conteúdo simples, rápido, de fácil associação para o usuário e que não demanda um pensamento complexo para absorvê-lo. Mas, além de entretenimento, muitas vezes os usuários recorrem às plataformas e redes sociais também para o consumo de informação e notícias, que são carregadas com o tom opinativo de quem produz e distribui esses conteúdos na internet. E quando há temas que comovem a opinião pública, quanto maior for a influência dos personagens envolvidos, e maior a produção de vídeos relacionados a isso, maiores as chances de ser influenciado pela narrativa contada nesses conteúdos” diz Emilio Alves.

Na esfera Depp vs Heard, o julgamento se tornou uma maneira de vender pautas políticas conservadoras e misóginas. O site The Daily Wire, comandado por Ben Shapiro, investiu algo em torno de US$ 50 mil em anúncios anti-Amber Heard. Alguns artigos promovidos continham alegações falsas. Para o Daily Wire, Depp é um homem fraco por não ter o controle da sua casa e Heard é “lunática” e o exemplo de “feminilidade tóxica”.

Mesmo quem buscou a imprensa tradicional para se informar sobre o caso pode ter sofrido a influência direta dessa “opinião algorítmica”. Os veículos, pressionados na competição pela audiência que migrou para as redes para se informar, também entregam seu conteúdo por lá, seguindo, muitas vezes, as mesmas regras de atração de um usuário comum. Atacar Heard, ainda que subliminarmente, tornou-se a rota mais tranquila para a imprensa tradicional capitalizar em cima do júri. Repórter da NBC News, Kat Tenbarge demonstrou como uma cobertura favorável a Heard, ou mesmo imparcial, custava seguidores e espectadores.

O espetáculo nas nossas mãos

As expressões de Heard ao longo do julgamento, de tristeza, nojo ou meramente blasé foram retiradas de contexto em milhares de vídeos, encapsuladas em 30 segundos. Suas “caretas” foram ridicularizadas e acompanhadas das hashtags que desconfiavam sobre a veracidade das informações que ela trazia ao tribunal, chegando até a insinuar que ela teria cheirado cocaína durante o julgamento. Esses vídeos viralizaram. Já os vídeos estrelando Depp o enquadravam como herói, mesmo quando ele ria das acusações de Heard à frente dele. A própria defesa de Heard levou as mídias sociais ao julgamento, com um especialista em redes como testemunha para comentar o cancelamento que Heard sofria. Isso, porém, expôs o júri, que em tese não poderia usar redes sociais, a se inteirar da opinião pública em torno do caso.

É um exercício de cidadania compreender como algoritmos funcionam, por que um conteúdo salta à tela quando deslizamos o dedo. Esse tipo de educação traz o sistema para o nosso normal. Mas, para conseguir compreender criticamente ao que somos expostos, é preciso saber a respeito dos algoritmos aquilo que as redes não informam. A União Europeia já entende o tamanho da influência do algoritmo, e aprovou uma legislação que regulamenta plataformas digitais para responsabilizá-las por conteúdos ilegais. A lei entra em vigor apenas em 2024, mas já foi suficiente para o Facebook ameaçar sair da Europa. Para Daniela, já passou da hora de legislar este funcionamento. “Precisamos de consumo crítico. Se a estrutura da internet permite que grupos se organizem para disseminar desinformação e agir embaixo do radar, quais são as responsabilidades do Estado? É um poder de influência nunca antes visto, que individualmente não temos como controlar. Os países precisam regulamentar as plataformas.”

As aulas do Zero Três

“Esse ano é importantíssimo, o mais importante das últimas décadas”, alerta o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP) no primeiro vídeo que integra o curso Prepara Brasil. “As aulas são necessárias para que você compreenda as temáticas importantes que estarão presentes no debate público nos próximos meses e venha ao nosso lado, entrar em campo nesta batalha cultural.” Seu curso reúne diversas videoaulas ministradas pelas “maiores lideranças do conservadorismo no Brasil”. Desembolsando R$ 197, o aluno tem acesso aos módulos de treinamento, que abordam temas como aborto, armas, arte, ativismo judicial, conservadorismo, cristianismo, cultura, defesa do agro, direito eleitoral, drogas, educação, feminismo, história do Brasil, ideologia de gênero, jornalismo, meio ambiente, processo legislativo, racismo e segurança pública. Ainda há um “bônus especial” ao término do curso: a liberação da “Masterclass: como escolher seus candidatos”, aulão que concede aos matriculados o passo a passo nas urnas em outubro.

A lista de “maiores lideranças do conservadorismo no Brasil” é extensa. Entre os nomes que integram o corpo docente estão o próprio Zero Três, o jornalista Augusto Nunes, o ex-jogador de vôlei Maurício Souza e Alexandre Ramagem, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) para ser diretor-geral da Polícia Federal. Além deles, há uma vasta gama de ex-ministros e políticos da base do governo: Onyx Lorenzoni, Damares Alves, Ricardo Salles, Mário Frias, Bia Kicis, entre outros. Para compreender o que é ensinado no curso bolsonarista, o Meio se matriculou e assistiu às aulas disponibilizadas até sexta-feira, 3. Liberados aos poucos, os vídeos desbloqueados até aqui integram os módulos “Conservadorismo”, “Mentalidade Revolucionária”, “Juventude”, “Arte” e “Feminismo”. Na plataforma exclusiva para inscritos, há duas opções de conteúdo. Uma nos direciona ao “Guia Definitivo para Posse de Arma”. A outra, para o curso.

Entre uma golada de água no copo amarelo da CBF e outra bebericada de café na xícara preta da Coordenadoria de Recursos Especiais (CORE), o Zero Três ensina logo o segredo para os matriculados arrumarem tempo para o curso em meio ao cotidiano corrido: fazerem as tarefas do dia a dia ao som dos ensinamentos em vez de escutarem funk. “Nos anos 90, como bom carioca, ouvi bastante funk. Adorava MC Marcinho e Claudinho & Buchecha. Mas hoje em dia é uma promiscuidade total. Não vai ser tatuando o toba que você conseguirá chegar nos maiores postos de sua vida a ponto de sentir orgulho do seu passado e conseguir transmitir esse sentimento aos seus filhos”, ensina, referindo-se, possivelmente, à tatuagem íntima da cantora Anitta.

Conteúdo das aulas

Nas aulas, o filho do presidente recorre a autores conservadores e volta ao passado para explicar o presente. Para avaliar se os conteúdos foram bem absorvidos, após o término de cada módulo, são liberadas tarefas. Há ainda um canal exclusivo no Telegram no qual os alunos podem tecer comentários e trocar impressões. (Coisas do tipo: “Nosso Senhor mandou logo uma família inteira, com um Capitão, uma mulher extraordinária e CINCO FILHOS pra resolver esta parada”.) Há também sugestões de filmes e livros, estes vendidos na livraria de Eduardo Bolsonaro.

De cara, o deputado define quem são os conservadores. “Nós somos aqueles que conseguem ver as coisas boas do passado, preservar a tradição e reformar o que precisa ser melhorado com muita prudência para evitar a ditadura, fome e miséria”. Também se preocupa em explicar como as teses conservadoras se encaixam no cotidiano de seus eleitores-alunos. “Os três pilares do conservadorismo são os valores judaico-cristãos, o direito romano e a filosofia grega, mas isso tá muito distante da dona Maria em casa, do seu João. Por isso, aqui, esclareço quais desses valores existem na sua vida. Aliás, pode parecer meio desconexo, mas estamos voltando ao passado porque você precisa adquirir todo esse conhecimento para entender, por exemplo, por que no Brasil nós respeitamos as mulheres, por que não cortamos os clitóris delas quando atingem a puberdade, enfim… quero te mostrar que você não nasceu de uma chocadeira porque este é um artifício da esquerda, tentar apagar a história”, afirma enquanto evoca autores como A. James Gregor e Olavo de Carvalho, de quem é fã declarado e discípulo informal.

No entanto, ao contrário do que diz Zero Três, o cientista político Guilherme Casarões, da FGV/EASP e do Observatório da Extrema Direita, afirma que o revisionismo histórico é uma estratégia utilizada com frequência pela extrema-direita brasileira. “Há uma narrativa que sempre desemboca na vitimização da direita. A história não serve como pano de fundo para compreendermos um contexto mais amplo. Simplesmente, serve para referendar um conjunto de ideias. Para isso, é instrumentalizada o tempo inteiro. Por exemplo, defendem que o golpe de 1964 não existiu, foi um contragolpe. O Foro de São Paulo é um artifício da esquerda para continuar seu projeto marxista mesmo após o término da Guerra Fria. Todos os dados históricos vão se juntando num quebra-cabeça que referenda, corrobora, tudo aquilo que eles estão dizendo sobre o contemporâneo. Nunca é uma história contada na sua totalidade, é uma história sempre seletiva”, analisa.

Já uma segunda estratégia citada por Casarões passa pelo objeto de estudo da antropóloga e pesquisadora Letícia Cesarino, que se debruçou sobre o fenômeno que chama de “eupistemologia”. “O que ela estuda, a 'eupistemologia', é a construção do conhecimento a partir da experiência meramente pessoal. O uso de um exemplo sempre pontual para provar um argumento total – o que num debate político do dia a dia, para pessoas que não têm reflexão politizada, parece fazer sentido. Muitos dos exemplos que circulam no curso e outros que abastecem a rede bolsonarista são baseados em experiências pontuais.”

Em uma das aulas, Eduardo Bolsonaro minimiza o racismo existente no Brasil, afirmando que “se remontarmos o passado e estudarmos a Batalha dos Guararapes, a gente vê que ali, no momento em que surgiu o Exército brasileiro, houve a união entre índios, negros e portugueses para expulsar uma potência militar da época, os holandeses. Assim vemos que na raiz, no primeiro momento do sentimento de brasilidade do país, estavam todos os povos unidos do mesmo lado. Então, como pode um país como o Brasil, que une tantos povos, que já nasceu miscigenado, ter essa disputa entre negros e brancos?”. Casarões aponta como o parlamentar seleciona de forma completamente arbitrária um episódio da história para provar sua tese. “São drops de informações de fácil assimilação. Usam-se pequenos elementos históricos para construir uma narrativa maior. E essa é uma estratégia que funciona, porque pega justamente um grupo de pessoas que vai fazer diferença na hora da eleição, o brasileiro médio, de classe média-baixa, pessoas que já têm seus vieses”, conclui.

Falando em eleições…

À primeira vista, pode parecer que, sendo ministrado para apoiadores do presidente, o curso prega aos convertidos, sem alcançar um novo eleitorado para o pleito de outubro. Mas o o historiador Odilon Caldeira, coordenador do Observatório da Extrema Direita, pontua que não é bem assim.“É preciso fazer uma leitura de que esses convertidos só são convertidos porque passaram por um processo de conversão. Por isso, precisam a todo tempo ser fidelizados, para que eventualmente sejam usados como bônus de um capital político mais efetivo.”

Fora das telas, os alunos podem reproduzir em suas bolhas as narrativas aprendidas. Desta forma, as teses se espalham pelas redes sociais, nos núcleos familiares, até chegarem às urnas. Além disso, o curso pode desfocar a atenção do eleitorado dos reais problemas que assolam o Brasil. “É um discurso que cria uma leitura sobre passado, presente e futuro bem específica, justamente para ter um processo de fidelização e de partilhar uma visão de mundo que ordenaria a prática política. No entanto, essas pautas são necessárias no sentido de que elas abrem uma possibilidade política que ultrapassa a crise econômica. São questões que dizem respeito a civilizações, identidades, modelos de família e de sociedade. E é um bote salva-vidas porque, se há uma base radicalizada que está estabelecida sobretudo a partir dessas pautas de identidade e valores, é imperativo que o bolsonarismo continue mobilizando essas pautas”, analisa.

Para Casarões, “as aulas se inscrevem numa estratégia maior que é tentar pautar as eleições de 2022 em torno da agenda de costumes”. “Sabemos que o grande calcanhar de Aquiles do governo Bolsonaro é aquilo que entregou e deixou de entregar de maneira concreta, principalmente em termos econômicos. Então, uma das principais estratégias da campanha bolsonarista é tentar trazer o tempo inteiro a pauta de costumes como um pilar da candidatura do Bolsonaro. É incitar o medo nas pessoas daquilo que o bolsonarismo chama de comunismo, esquerdismo, marxismo cultural, ideologia de gênero, doutrinação ideológica…. É como se os temas que eles tratam no curso fossem os reais e profundos problemas do Brasil.”

Objetivo: uma semana feliz no Brasil. Obstáculo: Brasil

Os memes e as figurinhas trocadas nos aplicativos de mensagens estão aí para mostrar nossa capacidade de ironizar e quiçá acobertar a séria realidade: o Brasil está, ao longo dos anos, cada vez mais triste. Ou menos feliz, para os que seguem otimistas.

Recentes pesquisas mostram, em números, um cenário bastante deprimido. Uma delas é famosa, que mede o grau de felicidade pelo mundo. A Global Happiness 2022, realizada pela empresa de pesquisa de mercado Ipsos em 30 países, mostrou, em 2013, que 81% dos brasileiros se consideravam “muito” ou “bastante” felizes. No final de 2021, oito anos depois, esse índice despencou para a casa dos 63%, abaixo da média global, de 67%.

O grande paradoxo é que o ser humano quer ser feliz e busca a vida toda por isso. Quer sentir no coração e nos poros que está bem, com os outros e consigo mesmo. Felicidade é um projeto de existência “colossal, irremediável e vago, que dirige todas as nossas criações”, como citam o filósofo José Antonio Marina e a doutora em Direito María de la Válgoma no livro La lucha por la Dignidad (sem tradução para o português). “O que caracteriza uma relação feliz? Nós vivemos alegremente quando vivemos de forma solidária, amorosa, amistosa, fraternal. Ou seja, o sentimento de felicidade está intimamente vinculado à predominância de tendências amorosas sobre as odiosas. O ódio e a violência estão associados à infelicidade”, diz Eduardo Gontijo, psicanalista e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Gontijo, assim como os escritores espanhóis, defende que não há como ser feliz individualmente sem a construção da chamada felicidade política — a felicidade como nação, em comum, pública. A meta de felicidade pode até ser um projeto pessoal e intransferível, mas não pode ser colocada em prática sozinho. “O Brasil é um país que você pode olhar e dizer: aqui há felicidade política? De forma alguma. Esse país tem semeado ódio entre as pessoas”, coloca o psicanalista. Parece, então, que a humanidade caminha para o lado oposto do que sempre desejou. “Nossa tendência em um mundo globalizado é ter uma consciência cosmopolita, que reconhece como válidas várias perspectivas além da sua, que interage e chega em um conceito de razão que pode ser compartilhado com todos. É isso que está nos faltando”, ainda pondera.

Individualmente, trafegamos em uma via de mão dupla com o coletivo. Para além dos tijolos da nossa casa — ou da nossa bolha na internet —, há insegurança, violência, inflação, desemprego, miséria, fome… É difícil esboçar um sorriso diante dos cinco itens comprados no mercado que consumiram um terço do seu salário. Isso se você tiver um salário. Ou quando pipocam relatos de assaltos nas ruas, os golpes pelo celular, a barbárie que vem daqueles que deveriam nos proteger. Sem contar o luto coletivo que ainda vivemos na maior pandemia do século e o medo de um vírus que parece nunca ir embora, que nos colocou, há mais de dois anos, a viver na incerteza e em círculos: coloca a máscara, tira a máscara, toma vacina, desvia do negacionismo, desmente fake news, toma mais uma dose, tira a máscara, olha a nova variante, coloca a máscara, testa positivo de novo, se isola, pela segunda, terceira, quarta vez.

“Além das mortes, vivemos o isolamento, o fechamento dos espaços de convivência, das escolas. Agora, desafiados a voltar a conviver, a gente percebe o quanto foi danoso isso tudo do ponto de vista emocional e psiquiátrico. Estamos vivendo uma pandemia de casos de ansiedade e de depressão que tem cobrado um preço e vai seguir acontecendo por algumas gerações”, explica Lucas Spanemberg, psiquiatra e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

Hoje, há mais pessoas no Brasil com depressão do que com diabetes. Foi isso que revelou a pesquisa Vigitel, realizada todos os anos pelo Ministério da Saúde e que em 2021, pela primeira vez, incluiu números sobre saúde mental. No estudo, 11,3% dos brasileiros relataram diagnóstico de depressão no ano passado e 9,1% disseram ter diabetes, doença crônica que atinge cerca de 16 milhões de pessoas no país, segundo a Federação Internacional de Diabetes.

O que nos deixa menos ou mais feliz também tem uma raiz fisiológica. “Tudo passa pelo cérebro”, coloca Spanemberg, que também é pesquisador do Instituto do Cérebro do RS. “É uma sincronicidade de áreas e de liberação de substâncias que representam uma sensação boa para o organismo. A gente sente isso e dá o nome de felicidade”, diz o psiquiatra. “Por outro lado, situações de medo e insegurança acionam áreas do cérebro que sinalizam para perigos e ameaças, e a sensação disso são sentimentos ruins”.

A prática de uma atividade física pode ativar a endorfina, que nos anestesia e provoca uma sensação de bem estar, por exemplo. Ao mesmo tempo, pouca serotonina, outro neurotransmissor, pode causar oscilações de humor. No entanto, a ação dessas substâncias no corpo é temporária e, em parte, explica fisicamente o motivo pelo qual o ser humano vive entre altos e baixos. “Quando não flutua, estamos diante de um transtorno psiquiátrico. Há quadros em que a pessoa não flutua mais para baixo e está sempre eufórica, ignorando ameaças, se sentindo muito feliz, isso expõe o indivíduo a riscos a sua integridade física e social. Já pessoas que não modulam muito para cima têm o que a gente chama de depressão. Com ajuda, elas podem voltar a ter a possibilidade de regular suas emoções de acordo com as circunstâncias”, diz Spanemberg.

Ou seja, está tudo bem em não estar bem. Até porque não está sendo fácil, Brasil, a gente sabe. A felicidade depende de uma série de variáveis e não só de nós desejarmos tê-la. E, como está escrito em La lucha por la Dignidad, somos uma espécie que ainda não encontrou o seu lugar ao sol. “Eu ainda acredito que temos muito a caminhar. Você cria uma comunidade mais feliz quando você permite, por meio da educação, a capacidade de as pessoas realizarem seus objetivos”, coloca o psicanalista Eduardo Gontijo. “Quanto mais eu estou cultivando laços, melhor eu me sinto. Cultivando esse senso mais cosmopolita, a noção de compaixão e de empatia com o outro”, finaliza.

E para encerrar, os mais clicados pelos nossos leitores na semana que passou:

1.G1: Conheça os sintomas da varíola dos macacos.
2. Folha: Psolistas deixam partido por causa de aproximação com Alckmin e Rede.
3. Panelinha: No Jubileu de Platina da rainha Elizabeth II, scones.
4. Panelinha: Ou galetes de mandioca para acompanhar a cerveja.
5. Twitter: O horror enquanto método da Polícia Rodoviária Federal.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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