A “teoria democrática” do bolsonarismo

Ideologia reacionária apresenta o presidente como restaurador de uma "democracia" religiosa e tradicionalista contra liberais e socialistas, os “maus brasileiros”. É farsa

No dia 31 de maio deste ano, em discurso em Jataí (GO), o presidente Jair Bolsonaro reafirmou que os “cidadãos de bem” precisavam se armar para “defender a pátria”. Uma tentativa de fraudar as eleições de 2022 viria sendo armada pelo Poder Judiciário, justificando a fiscalização do processo eleitoral pelas Forças Armadas. Em um aparente paradoxo, o ataque do presidente às instituições foi apresentado como se se tratasse de uma defesa da democracia. “Somos um povo livre e tudo faremos para que o povo continue livre, apesar da tentativa de alguns para mudar nosso regime. Nosso regime é o democrático”, declarou o presidente.

O mesmo acontece em relação à Constituição. Os continuados ataques de Bolsonaro aos demais poderes são sempre apresentados como constitucionais. Em entrevista recente à jornalista Leda Nagle, Bolsonaro criticou o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, por agente da inconstitucionalidade: “Há muito tempo eles estão fora das quatro linhas [...]. É uma obsessão para tentar me tirar daqui, ou me tornar inelegível, ou fazer com que eu perca as eleições”. Em outras palavras, as violações da Constituição não partiriam dele, mas do próprio Supremo Tribunal, que de vítima passa a agressor. Como explicar esse aparente paradoxo?

É que a “teoria democrática” do bolsonarismo nada tem de verdadeiramente democrática. Embora povoado por um número mais ou menos estável de conceitos (“democracia”, “autoridade”, “ordem”, “família”, “liberdade” etc.), o vocabulário político é organizado e mobilizado no espaço público por diferentes ideologias, que filtram a realidade política conforme seus valores predominantes. Assim, conservadores privilegiam a autoridade em detrimento da liberdade e da igualdade; os liberais, por sua vez, preferem a liberdade; e os socialistas, por fim, a igualdade. Cada um atribui também significados diferentes a cada um daqueles conceitos.

As três ideologias referidas se orientam por interpretações algo discrepantes da Constituição. Conservadores se apegam às regras que favorecem a família e a religião. Os liberais privilegiam a liberdade individual, característica da sociedade civil. Já os socialistas se agarram à igualdade social dos trabalhadores e, ultimamente, minorias étnicas e de gênero. As três interpretações são compatíveis com a democracia liberal, desde que razoáveis do ponto de vista do conjunto de seus princípios e regras.

O dualismo reacionário

Isso não acontece com a ideologia reacionária que impulsiona o bolsonarismo. Surgidos em reação aos ideais da Revolução Francesa, reacionários são antimodernos que perseguem a utopia medievalista de uma comunidade dominada por sacerdotes, chefes de família e suas milícias. Não creem em valores universais nem em relativismo de valores, mas na hierarquia natural de uma comunidade dividida entre os bons (os fiéis) e os maus (os hereges). Abominam o progresso trazido pela ciência, pela razão e pela laicidade, percebendo o liberalismo político como a antessala do comunismo e do ateísmo.

O reacionarismo foi adaptado ao mundo das massas graças às técnicas de propaganda (rádio e cinema) difundidas pelo fascismo e suas variantes ibéricas (integralismo, salazarismo e franquismo). Foi então que surgiu sua teoria de uma “democracia iliberal”. A realidade da política seria aquela de uma nação definida como uma comunidade étnica e cultural homogênea. A vontade nacional se manifestaria por intermédio de uma ditadura cesarista, cujo líder fosse aclamado pelas multidões. A característica da política moderna residira no antagonismo irredutível entre a nação e seus inimigos internos e externos. O povo seria mobilizado por mitos de origem, que lhe garantiriam a identidade grupal. Conflitos seriam resolvidos pelo líder supremo por meio da decretação do estado de exceção, supressor das liberdades individuais.

O modelo fascista de “democracia iliberal” foi recuperado e adaptado pela direita radical nas últimas décadas. No novo populismo reacionário, as redes sociais ocupam o lugar do rádio e do cinema. Único porta-voz da vontade popular, o populista reacionário ataca as instituições representativas como capturadas por uma minoria de inimigos do povo. Elites estrangeiradas identificadas com valores progressistas ou esquerdistas as viriam empregando de forma insidiosa para modificar a “essência” cultural da nação, religiosa, rural e patriarcal, valendo-se de agentes ideológicos empregados na educação pública e nos veículos de comunicação de massa.

O populista reacionário promete por uma “revolução conservadora” restabelecer o idílico passado em que a nação vivia harmoniosamente com seus costumes tradicionais. Embora não exija a supressão das instituições – tribunais e assembleias -, essa paradoxal “revolução reacionária” exige dobrá-las à vontade do povo, constrangendo-as pela sua constante mobilização respaldada pelas classes armadas. Daí por que o populista se sente autorizado a desrespeitar a independência ou autonomia das instituições, a fim de restringi-las pela cooptação ou pela intimidação. Os ataques são extensivos às instituições de educação e cultura, assim como à imprensa tradicional, acusadas de contribuírem para a subversão informacional.

A “democracia bolsonarista” segue à risca a cartilha reacionária de inspiração neofascista. Na forma de uma “democracia racial”, o povo brasileiro seria composto por “cidadãos de bem” — chefes de família armados e organizados em milícias, sob a orientação espiritual de sacerdotes cristãos.

A prosperidade do povo seria garantida pela liberdade de ação conferida aos donos de terra (os “senhores de engenho” convertidos em “agronegociantes”) e os empreendedores com “instinto animal” (os “bandeirantes” convertidos em “neoliberais”). A predação da natureza e a violência pela morte, pela doença ou por catástrofe seriam acontecimentos naturais.

Ocorre que a harmonia da sociedade brasileira teria sido perturbada a partir da segunda metade do século XX pela ameaça do “comunismo” – conceito “guarda-chuva” a que se associam toda a sorte de ideias e ações que ameaçariam sua suposta “essência”. Liberais e socialistas – “maus brasileiros” – teriam, então, tentado se apoderar do aparelho de um Estado cada vez mais intervencionista para impor uma cultura niveladora e relativista, inimiga da família, da religião e da propriedade. Felizmente, o Brasil fora salvo em 1964 pela intervenção das classes armadas, detentoras tradicionais de um “poder moderador” por elas empregado para preservar a “liberdade democrática” da nação.

Claro está que, quando se refere à defesa da democracia, os reacionários se referem ao estilo de vida desses “cidadãos de bem” cultores da religião, da virilidade e das armas.

Finda a “democracia” da ditadura militar, porém, o “povo” teria voltado a ter sua “liberdade” ameaçada pelos governos corruptos da Nova República. Como na República de 1946, a prática da democracia liberal é mais uma vez percebida pelos reacionários como subversiva e autoritária de sua “liberdade” ou “estilo de vida”. E a eleição de 2018, que alça Bolsonaro ao Planalto, é interpretada como o equivalente de 1964 – uma nova “revolução conservadora” que salva os brasileiros do “comunismo” - hoje identificado com a defesa pelo Estado dos trabalhadores, mas também do meio ambiente, do patrimônio histórico, e das minorias de gênero e raça.

A retórica do golpe

A “teoria democrática” do populismo reacionário apresenta assim Bolsonaro como um “restaurador” da vontade popular, encarregado de restabelecer o primado da religião e dos chefes de família pelo abate do intervencionismo do Estado e sua redução à mero agente dos “cidadãos de bem”. A necessidade de “dobrar” os inimigos do povo incrustados nas instituições, pela violência se necessário, justifica o emprego continuado da intimidação, do suborno e da mentira como métodos de governo e administração. Dentre os inimigos a abater avulta o STF, que não apenas se recusa a se dobrar à vontade soberana do povo, como persegue seus críticos, violando a “liberdade de expressão” dos reacionários.

O TSE também se torna suspeito de conspirar contra a “democracia”. Ele é suspeito de urdir uma fraude que impeça o “povo” de reeleger seu líder e liquidar sua “liberdade”. Nessa chave, o “golpe” se torna peça-chave na retórica da “democracia bolsonarista". Ele é apresentado, ao contrário, como ato de legítima defesa de um povo que, por intermédio das classes armadas chefiadas por seu comandante-em-chefe, seria capaz de derrotar em definitivo seus inimigos, restaurando para sempre sua “liberdade” de viver conforme os valores do cristianismo e do patriarcado. Assim é que o golpismo é vendido pelo bolsonarismo como defesa da legalidade e vice-versa.

A esta altura, está claro que não existe compatibilidade possível entre a pretensa “teoria democrática” do bolsonarismo e a aquela que estrutura a República de 1988.

Seu discurso de “liberdade” não passa de estratagema para legitimar a ditadura de uma minoria reacionária no Brasil, em pleno século XXI. Sua defesa da Constituição contra o STF não passa de um expediente grosseiro para travestir seu golpismo subversivo com aparências de defesa da ordem e da legalidade. Expediente de que já se valeram os nazistas para acabar com a República alemã em 1933, e os militares nacionais, com a República brasileira de 1946.

Mas, felizmente para nós, “a história só se repete como farsa” — como dizia um certo barbudo, cujo nome esqueci.


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24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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