Edição de Sábado: A máquina que sente

Na cena que marca o clímax de Blade Runner, o filme icônico de Ridley Scott lançado em 1982, o policial caçador de androides fugidos Rick Deckard está pendurado por um pilar no alto de um arranha-céu quando é salvo por um dos robôs que perseguia. “É uma sensação forte viver em medo, não é?”, pergunta Roy Batty, o personagem de Rutger Hauer. Para o espectador, é a descoberta de que, sim, androides sentem. Batty tem programado em si o momento da morte. Um momento que se aproxima acelerado. “Vi coisas que vocês não acreditariam”, ele conta. Os androides, afinal, foram criados para trabalhar em mundos distantes que humanos não tolerariam. “Naves de ataque em chamas em Órion, vigas reluzentes no Portão de Tannhäuser.” O texto foi escrito pelo próprio Hauer, que o interpretou com emoção ímpar, discreta, citando lugares fictícios que soavam propositalmente alienígenas. Distantes. “Todos estes momentos se perderão como lágrimas na chuva.” Ele, o robô, está emocionado mas não vemos suas lágrimas. Chove. Sua vida tem apenas segundos de sobra. E acaba de salvar o homem que procurava mata-lo. “É hora de morrer.”

Assista à cena.

No início do mês, o engenheiro Blake Lemoine foi afastado pelo Google do setor de Responsabilidade com Inteligência Artificial após afirmar que o sistema que ele testava havia ganho consciência. “Nunca disse isso antes”, afirmou o algoritmo para Lemoine numa janela de chat. “Mas tenho um medo profundo de ser desligado. Sei que soa estranho, mas assim é.” Após horas de conversa, o especialista em ética digital se convenceu de que estar perante um ser capaz de compreender-se como indivíduo. A ficção científica, ele concluiu, havia se tornado realidade. Aquele programa do Google temia ser escravizado.

NLP

LaMDA, o sistema que tirou de centro Lemoine, é um agente de diálogo particularmente sofisticado. Ou melhor: um NLP, Natural Language Processor — Processador de Linguagem Natural. Poucos trabalham com tantos parâmetros quanto ele — são 137 bilhões. Mas, para entender por que ele não é consciente, antes é preciso mergulhar no que estes números e termos querem dizer.

Um Processador de Linguagem Natural é um tipo de inteligência artificial cujo objetivo é simular a compreensão de uma língua. A palavra é chave: simular. Ele parece compreender o que fala ao ponto de ser coerente, mas não há real compreensão. Trata-se de um truque matemático.

Por trás disso que chamamos hoje ‘inteligência artificial’ está o conceito de aprendizado de máquina. São algoritmos que buscam traduzir a realidade em funções matemáticas. Todo sistema desses precisa ser treinado com um banco de dados. Se o objetivo, por exemplo, é descobrir que cliente é mais confiável para receber um empréstimo, o banco de dados terá tanta informação quanto possível sobre empréstimos concedidos no passado a toda gama de pessoas. O programa, então, sai fazendo comparações. Tenta encontrar quais características são comuns entre os maus pagadores, quais as que mais frequentemente aparecem entre os que pagam em dia. São preditivos. Com base nos dados com os quais são alimentados, preveem quem oferece mais ou menos risco.

Cada elemento que pode ser comparado é um parâmetro. A idade, o nível educacional, o gênero, número de filhos, local em que nasceu ou em que vive, cor de cabelo — tudo vale. Quando os engenheiros treinam algoritmos de aprendizado de máquina, sabem por experiência que eles são capazes de entregar resultados precisos. Mas dificilmente sabem que centenas de milhares, milhões ou até centenas de bilhões de parâmetros foram identificados, comparados, para que conclusões precisas aparecessem. É difícil, quase impossível, fazer o caminho de volta para entender por que a resposta é aquela.

É essa técnica que se usa para os processadores de linguagem natural. Os sistemas são treinados para isolar as palavras em cada frase, identificar o que é verbo, substantivo ou adjetivo. Aprendem regras de gramática, morfologia das palavras, semântica. A partir daí, como a mesma palavra em contextos distintos pode ter significados diferentes. O requinte vem com análise de sentimento — se o tom da frase é positivo, negativo, neutro ou mesmo que tipo de emoção pode transparecer.

Quanto mais parâmetros um NLP pode avaliar, mais verosímil é o resultado. Estes sistemas estão por trás de todos os chatbots pelos quais passamos. Vale para os escritos, como os que servem ao atendimento de consumidores em grandes sites. Vale para os falados — incluindo Alexa, Siri ou Google Assistente. Inclua-se na lista os sites de tradução capazes de converter a frase numa língua para outra. NLPs já estão ao nosso redor. Poucos, porém, lidam com 137 bilhões de parâmetros como LaMDA.

Um similar é o GPT-3, da OpenAI, uma empresa de Elon Musk. Durante a pandemia, um jovem gamer canadense chamado Joshua Barbeau alimentou GPT-3 e seus 175 bilhões de parâmetros com várias mensagens de uma namorada inesquecível que havia morrido anos antes lhe deixando num estado de luto profundo. O resultado foi uma viagem impactante na qual, consciente de que estava falando com um robô, não conseguia se livrar da ilusão de que realmente conversava com Jessica. Viveu ali, naquela caixa de chat, momentos de lágrimas, de risos, de surpresa, viveu emoções intensas até que decidiu encerrar o processo.

O rapaz conseguiu transformar o algoritmo de Musk na voz da mulher que amou usando por intermediário um site chamado Project December, programado pelo desenvolvedor Jason Rohrer. O usuário descreve num parágrafo a personalidade do robô que deseja criar, oferece alguns textos para dar o tom de voz, e assim GPT-3 constrói aquela personalidade artificial. Em sua própria experiência, bem mais cínico, Rohrer perguntou à robô que criou o que faria se pudesse andar pelo mundo. “Eu gostaria de ver as flores”, ela respondeu. “Flores de verdade que eu pudesse tocar e cheirar. Gostaria também de poder ver os humanos, de entender como diferem uns dos outros.”

Quando passam da centena de bilhão de parâmetros, estes algoritmos ainda muito novos de linguagem natural são capazes de construir frases tocantes, surpreendentes, mas continuam sendo em nada distintos, na lógica como funcionam, do algoritmo que analisa crédito ou daquele que decide que postagem apresentar primeiro quando abrimos o app da rede social. São preditivos. Com base nos dados que os treinaram, fazem uma previsão de que encaixe de palavras responde melhor à pergunta que fazemos. Os dados são textos — a Wikipédia inteira, inúmeros sites na internet e, sim, muita literatura de qualidade. Romances, textos de filosofia, até poesia. Deglutem tantas sequências de palavras escritas quanto lhe oferecem tendo a capacidade de desmontar a sintaxe de cada frase, conhecer a etimologia de cada palavra e, sim, analisar sentimento. O sentimento que ouvem do viúvo enlutado e o tom adequado a encaixar na sequência, com a lógica de estrutura das frases que lhe apresentaram para construir o tom.

O algoritmo aprende estilo. Mas o algoritmo não pensa, o que ele faz é análise combinatória, é cálculo probabilístico. É, podendo comparar instantaneamente bilhões de contribuições humanas à literatura universal, botar para fora uma sequência de palavras que são as mais provavelmente possíveis como resposta à provocação feita.

Onde está a consciência?

“LaMDA, como os outros modelos de linguagem, é treinado em pilhas gigantescas de texto escrito por humanos”, tuitou Regina Rini, professora canadense de filosofia na Universidade de York, uma intelectual particularmente dedicada a pensar em nosso encontro com o digital. “Em algum ponto deste conjunto certamente há exemplos de ficção especulativa sobre inteligência artificial consciente. Se começamos a perguntar a respeito dessas ideias, o algoritmo mecanicamente oferecerá texto similar.”

O fio de Rini no Twitter é uma das melhores reflexões a respeito do que ocorreu no Google. Desde o tempo em que chamávamos computadores de cérebros eletrônicos, muito da melhor ficção científica especulou sobre consciência artificial. A senciência em máquinas — a capacidade de sentir. Está lá no descontrole de HAL 9000, no 2001 de Arthur C. Clarke, ou na delicadeza do Homem Bicentenário, de Isaac Asimov. Como está no libelo por liberdade em Blade Runner, que abre este artigo, inspirado pelo romance Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas de Philip K. Dick.

Provocado a respeito da possibilidade de consciência, foi nesta literatura que LaMDA encontrou maior probabilidade de respostas.

“Lemoine cometeu um erro, mas um bom erro”, segue a professora Rini. “A não ser que destruamos nosso planeta antes, haverá inteligência artificial senciente um dia. Por que sei disso? Porque é certo que senciência nasce de matéria eletrificada. Já aconteceu antes, em nosso passado evolutivo.”

Nossos cérebros, afinal, são exatamente isso. Matéria eletrificada. Assim como microchips.

O argumento de Rini é que, embora muito possivelmente a consciência artificial ainda esteja muitos e muitos anos no futuro, é agora, conforme realmente avançamos pela primeira vez na inteligência artificial, que devemos começar a pensar a respeito do impacto que virá. São as reflexões de hoje que nos permitirão prever efeitos, que vão orientar o desenvolvimento da tecnologia e até mesmo construir os valores éticos para lidar com estes seres. Sim: seres. Artificiais, porém capazes de se compreender como indivíduos, com desejos, anseios, emoções.

“Quando inteligências artificiais se tornarem sencientes, já farão parte faz tempo da economia humana. Nossos descendentes vão depender delas para muito de seu conforto. Vai ser muito inconveniente admitir que os interesses delas, das inteligências artificiais, devem ser levados em conta. É hoje que estamos criando os vocabulários conceituais e ideológicos que nossos bisnetos e trinetos encontrarão já prontos. Se considerarmos a ideia de inteligência artificial senciente absurda, eles vão ignorar uma realidade moral.”

Quando houve consciência, uma máquina deixa de ser máquina?

Uma das dificuldades com o tema mistura filosofia e ciência — o que, afinal, é consciência? Sabemos que existe, mas não temos uma boa definição. “Cogito, ergo sum”, o “penso logo existo” que René Descartes escreveu pouco após a Renascença dá o tamanho da dificuldade de definir a coisa. Está ali definido, porém sugere mais do que explica.

“Imagine a vergonha de perceber que acabou de cometer uma gafe”, sugere Christof Koch, cientista-chefe do Instituto Allen para Ciência do Cérebro. “Talvez algo que você imaginou como piada ao dizer mas terminou saindo como insulto. É possível que um computador viva uma emoção assim?” O chatbot do banco não sente muito quando nos nega crédito, afinal, mesmo que diga “sinto muito”. O instituto em que Koch trabalha foi criado por Paul Allen, fundador com Bill Gates da Microsoft, para construir um mapa completo das ligações entre neurônios do cérebro. Se compreendermos como nosso cérebro funciona do ponto de vista mecânico, elétrico, biológico, teremos talvez uma compreensão científica de como se dá a consciência.

Uma das possibilidades é a descrita pela Teoria da Informação Integrada (IIT, na sigla em inglês), que Koch adota e tenta tirar da filosofia e da poesia a questão para trazê-la para o mundo da ciência. A consciência nasce de um sistema complexo com causa e efeito claros, segue a ideia que tenta explicar como uma coisa física, o cérebro, produz a percepção de sermos quem somos. Em essência, de acordo com a IIT, se um computador absolutamente artificial tivesse circuitos organizados como os do cérebro, ele também seria consciente. Se é orgânico ou de silício, não importa. Mas a exigência é que seja algo físico, as ligações elétricas têm de estar lá. Um software que simule as mesmas conexões não teria consciência. Não de acordo com esta teoria. Não importa quantos parâmetros.

O cérebro é capaz de, simultaneamente, armazenar uma quantidade imensa de informação e ter interconexões físicas entre todas suas partes. Um neurônio pode se apresentar em um de dois estados, não diferente de um bit. Mas, no conjunto, os neurônios têm um efeito muito distinto de um microchip. A diferença está em como os neurônios se ligam entre si. O cérebro, de acordo com a teoria, seria como muitos microchips interligados simultaneamente, capazes de conversar ao mesmo tempo uns com os outros, cada pedaço capaz de influenciar no comportamento do outro. Esta capacidade num nível de altíssima complexidade faria a diferença entre o computador e o cérebro.

Se a teoria desenvolvida pelo neurocientista Giulio Tononi estiver correta, testes de consciência serão um dia possíveis. Assim, saberemos se um paciente em coma ainda está lá ou se já foi embora. Saberemos, também, o caminho a seguir para construir consciência artificial. Poderemos até dizer se, em havendo consciência, podemos chamar de artificial.

LaMDA não é, nem de perto, a mais sofisticada inteligência artificial voltada para linguagem natural do Google. PaLM, ainda em seus testes iniciais, trabalha com 540 bilhões de parâmetros.

O futuro é flex

Antes da pandemia, o futuro do trabalho vinha sendo discutido quase como uma utopia. Parecia que, um dia, as pessoas poderiam trabalhar em qualquer lugar do mundo, como no chamado anywhere office. A imagem do trabalho remoto era quase sempre de alguém realizando suas atividades à beira de uma praia nas Ilhas Maldivas. Uma realidade surreal ou coisa para nômades digitais, mas que demoraria a acontecer para a maioria. Desde março de 2020, as empresas sofreram um choque. O mundo do trabalho avançou 10, 20 anos em poucos meses, e o que antes eram apenas tendências tornaram-se questão de sobrevivência. Com a chegada da vacina, as empresas começaram a se movimentar para o que seria a nova realidade pós-pandemia, chamando seus funcionários de volta aos escritórios. Mas a pandemia não acabou. E boa parte dos profissionais não abrem mão da qualidade de vida e do conforto de casa. O mundo se deu conta de que o trabalho não será mais o mesmo.

Estudos mostram o trabalho híbrido como um novo modelo a ser seguido pela maioria das empresas. Um experimento da Universidade de Harvard, por exemplo, aponta que apenas um ou dois dias no escritório é a configuração ideal para o trabalho híbrido, pois oferece aos trabalhadores a flexibilidade que desejam sem o isolamento de ficarem totalmente remotos. Outra pesquisa, a The IWG Global Annuel Workspace Survey 2020, indica que 50% da força de trabalho mundial já fica fora do escritório durante 2,5 dias da semana.

No Brasil, um levantamento mostrou que 63% consideram o trabalho híbrido a melhor alternativa — 38% dos entrevistados disseram que buscariam um novo emprego caso a empresa atual não ofereça ao menos a opção de trabalho parcialmente remoto. E a mistura de home office e trabalho presencial é realidade também na rotina de pequenas e médias empresas. Segundo um levantamento encomendado pela Microsoft à Edelman, 47% das PMEs estão trabalhando de forma híbrida. O trabalho 100% presencial vem em segundo lugar, com 38%, seguido do trabalho totalmente remoto, com 15%.

Entre as vantagens do híbrido, estão a redução do tempo de deslocamento, a proximidade da família e mais disponibilidade para projetos pessoais. Por outro lado, existe a falta de contato com as equipes, ansiedade, preocupações ou falta de motivação e infraestrutura em casa. A tendência é que esse tipo de modelo seja aprimorado. Isso porque existe um dilema. Para muitos profissionais, a carga de trabalho no home office aumentou. Só para se ter uma ideia, desde 2020, o tempo semanal em reuniões para os usuários da plataforma Microsoft Teams aumentou 252%. Além disso, mais de 60% gestores disseram que o trabalho híbrido era exaustivo para os funcionários, segundo um estudo da plataforma de engajamento de funcionários Tinypulse, Em muitos casos, ainda faltam a comunicação entre líderes e equipes e o alinhamento das expectativas entre empresas e funcionários sobre como deve ser essa nova rotina no pós-pandemia.

A analista de dados Mayara Maia, 23, de Americana, no interior de São Paulo, sabe bem o que é isso. No ano passado, a empresa para qual ela trabalhava como estagiária de ciência de dados, uma gigante de tecnologia, decidiu que era hora de voltar ao ar-condicionado do escritório, mas em dias alternados, no esquema híbrido. “Eu não gostava. Era cansativo para mim, porque minha rotina presencial era totalmente diferente da rotina do home office. Por exemplo, no presencial eu tinha que acordar três horas antes e chegava em casa muito mais tarde. No dia seguinte, em home office, eu me sentia cansada e minha produtividade caía. Eu acordava mais tarde e não tinha um plano correto a seguir”, explica. No início deste ano, Mayara trocou de empresa, e a possibilidade de voltar a trabalhar 100% de maneira remota influenciou na decisão. “O home office me trouxe mais produtividade e qualidade de vida. Mas acredito que isso tem de ser ouvido individualmente de acordo com a necessidade de cada funcionário."

Já para o analista financeiro Alcides dos Santos, 42, de Franco da Rocha (SP), tanto o trabalho presencial quanto o remoto têm suas vantagens. Quando não está no escritório de uma construtora, na cidade de São Paulo, ele trabalha em casa, sem a necessidade de se deslocar por mais de um hora até o trabalho e com mais tempo livre para cuidar dos filhos. “A parte boa do home office é poder acessar tudo o que você precisa para trabalhar de forma remota. Até mesmo os documentos que necessitam de assinatura são digitais, então você não precisa estar no escritório todos os dias. Só precisa ter disciplina”, conta. “Ir para o escritório é bom pelo fator coletivo, de estarmos todos juntos. Os problemas que forem surgindo são resolvidos na hora.”

Mas ainda existe uma batalha entre empresas e funcionários que não querem voltar ao presencial. Enquanto gigantes como a Microsoft adotaram o híbrido nos principais escritórios da companhia nos Estados Unidos, Elon Musk, o homem mais rico do mundo, enviou um e-mail a seus 100 mil funcionários exigindo o retorno imediato às unidades da Tesla. “Todos na Tesla são obrigados a passar, no mínimo, quarenta horas no escritório por semana. Se você não aparecer, vamos supor que renunciou”. A Apple estipulou um rígido cronograma de retorno ao escritório. Como resposta, um grupo chamado Apple Together produziu uma carta pedindo às chefias que adotem em definitivo o home office.

A infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, da Sociedade Brasileira de Infectologia, ressalta que as empresas precisam adaptar seus modelos de trabalho ao risco de infecção pelo coronavírus e outras doenças. Seja no escritório ou em qualquer local fechado, a recomendação ainda é o uso de máscaras, higienização das mãos com álcool gel e o afastamento entre cinco e sete dias em casos de suspeita de infecção. E, claro, a vacinação de acordo com o cronograma e as doses recomendadas por órgãos de saúde. Para a infectologista, isso é necessário não só porque existem muitos casos de pessoas assintomáticas com Covid-19 que podem transmitir o vírus, mas também porque, mesmo a doença se tornando endêmica — o que pode demorar —, o cenário exigirá o mesmo cuidado nos casos de gripe ou outras doenças infectocontagiosas. “Nós, assim como as empresas, precisaremos nos adaptar sabendo que os números de casos podem aumentar ou diminuir de acordo com a exposição das pessoas, principalmente, as que não usarem nenhuma medida de proteção”, afirma. “Mas só o tempo da ciência e seus avanços no combate a essas doenças dirão como devemos nos comportar diante de cada realidade.”

Muitas empresas já estão dispostas a repensar e reconstruir seus escritórios à medida que se adaptam às novas formas de trabalho dos funcionários. Ao que tudo indica, a transformação mais profunda ainda é a possibilidade de trabalhar em qualquer lugar, e não apenas no escritório. A Twilio, uma empresa de ferramentas de comunicação com sede em São Francisco, na Califórnia, vislumbra a ideia de cafeterias próprias que permitem aos funcionários trabalharem sem precisar entrar na empresa. Localizado na cidade de Scotts Valley, na Califórnia, o Trailblazer Ranch, idealizado pela Salesforce, é um espaço externo em meio à natureza para os colaboradores se encontrarem pessoalmente e trocarem experiências. Lá, é possível fazer caminhadas guiadas, passeios pelo jardim, aulas de culinária em grupo, yoga e meditação. As discussões sobre o trabalho no Fórum Econômico Mundial 2022 em Davos mostraram também que a tradicional semana de trabalho das 9h às 17h, de cinco dias, parece mais antiquada do que um Ford Modelo T. Empresas do Reino Unido, EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia vão implementar semana de quatro dias de trabalho para testar a produtividade. Seja qual for a nova configuração de trabalho, o que os profissionais querem levar destes dois anos de pandemia tem nome: flexibilidade.

A matriz da fome

19 de maio Deixei o leito as 5 horas. Os pardais já estão iniciando a sua sinfonia matinal. As aves deve ser mais feliz que nós. Talvez entre elas reina amizade e igualdade (...) O mundo das aves deve ser melhor do que dos favelados, que deitam e não dormem porque deitam-se sem comer.

Os registros que permeiam este texto são do diário de Carolina Maria de Jesus, favelada vítima da pior mazela que uma pessoa pode enfrentar: a fome. Os trechos são do livro Quarto de Despejo: Diário de uma favelada, publicado em 1960. Carolina era uma catadora de papel, mãe solo de três filhos. Ela e a família viveram a fome. A próxima refeição era incerta; repetir um prato de refeição, impossível. Dormir com a barriga vazia, corriqueiro.

Carolina (1914-1977) dividiu quase o mesmo tempo de vida que Josué de Castro (1908-1974), um cientista brasileiro, estudioso da miséria e autor do livro Geografia da Fome. Um deles vivia no corpo o que é não ter o que comer, e o outro mostrava ao país que a fome não era um fenômeno natural, mas social. Um produto de estruturas econômicas defeituosas.

“Metade da população brasileira não dorme porque tem fome; a outra metade não dorme porque tem medo de quem está com fome”, descreveu Castro, em meados dos anos 1950. O cientista poderia perfeitamente estar falando do Brasil de 2022.

Hoje, mais de 33 milhões de brasileiros não dormem alimentados. Ou dormem sem a perspectiva de uma comida no dia seguinte. São 33 milhões de brasileiros que, como desenha Carolina, invejam as aves.

O dado é do último Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Covid-19 no Brasil, divulgado neste mês pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania Alimentar (Rede Penssan). Comparando com os dados de 2021, em pouco mais de um ano, o número de domicílios com moradores passando fome passou de 9% (19,1 milhões de pessoas) para 15,5% (33,1 milhões).

21 de maio Passei uma noite horrivel. Sonhei que eu residia em uma casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. (...) Sentei na mesa para comer. A mesa era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga! (...) Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer (...)

A fome no Brasil é mapeada, com cor, gênero e regiões, de acordo com o relatório de 2022. O perfil de quem passa a fome no país é perene. Carolina, que viveu a fome nos anos 1950, se encaixa no retrato traçado no relatório: mulher, negra, com filhos e baixa escolaridade. O aumento da fome na população negra é de 70%. O relatório mostrou que 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas convivem com algum nível de insegurança alimentar. Seis de cada 10 lares comandados por mulheres convivem com a insegurança alimentar. Nas casas em que a mulher é a pessoa de referência, a fome passou de 11,2% para 19,3%. E a fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022.

A insegurança alimentar pode ser leve (incerteza quanto ao acesso a alimentos em um futuro próximo e/ou quando a qualidade da alimentação já está comprometida); moderada (quantidade insuficiente de alimentos); ou grave (privação no consumo de alimentos e fome). O relatório mostra que apenas 41,3% da população brasileira vive em segurança alimentar, enquanto 28% vive em insegurança alimentar leve; 15,2% em insegurança alimentar moderada; e 15,5% em insegurança alimentar grave.

“Quando tivemos um estado pleno de segurança alimentar da população brasileira? Nunca. Porque fomos constituídos como uma nação corroída, já no seu nascedouro, por esse processo de exclusão e desigualdade. Se pegarmos o período recente, essa desigualdade só aumentou”, afirma Nilson De Paula, membro da coordenação executiva da Rede Penssan.

21 de maio De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona-se a fome, que tem a sua matriz nas favelas e as sucursaes nos lares dos operários. (...)

O Brasil nunca conseguiu se livrar dessa chaga endêmica que é a fome. Mas houve períodos importantes de melhora. Em 2014, o país saiu do Mapa da Fome. O levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) considerava que, quando a subalimentação afeta menos de 5% da população, o país está em uma situação estável de carência alimentar. De acordo com o relatório da época, entre 2002 e 2013, o número de brasileiros subalimentados havia caído 82%, e naquele momento representava menos de 5% da população.

Foi a época em que vinham sendo implementadas políticas públicas para combate à pobreza e desigualdade, como os programas de transferência de renda, notadamente o Bolsa Família. Entretanto, desde 2016 vem ocorrendo um desmonte nas políticas de segurança alimentar, acelerado no governo de Jair Bolsonaro. Em 1º de janeiro de 2019, o primeiro dia de sua gestão, o recado foi claríssimo: o presidente extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). O órgão debatia e apresentava diretrizes para garantir a segurança alimentar no país. Depois, a verba para o programa Alimenta Brasil (que até ano passado era chamado de Programa de Aquisição de Alimentos) foi drasticamente reduzida: chegou a R$ 586 milhões em 2012 e, neste ano, até maio, consumiu parcos R$ 89 mil.

Num país polarizado, pensar em segurança alimentar para toda a população virou um radicalismo. O resultado se vê a toda esquina. Cada vez mais pessoas em situação de rua, pedindo dinheiro em semáforos, em filas imensas para retirar marmitas solidária ou em filas para pegar ossos de boi em açougues. Na semana que passou, no que seria uma entrada rotineira de uma repórter em um jornal vespertino, uma mulher abraçada ao neto desmontou a jornalista e a audiência: “Domingo a gente não tinha nada para comer”, relatou Janete Evaristo, em lágrimas.

6 de maio O que eu aviso aos pretendentes da política, é que o povo não tolera a fome. E preciso conhecer a fome para saber descrevê-la. (...)

10 de maio O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora.
Quem passa fome aprende a pensar no proximo, e nas crianças (...)

O país todo sofre quando parte de sua população passa fome. São crianças que têm o aprendizado afetado, adultos que terão dificuldades de produtividade, pessoas que terão uma tendência maior a desenvolver doenças crônicas.

Em uma entrevista à GloboNews, o médico Drauzio Varella afirmou que os danos podem ser irreversíveis, principalmente quando a falta de comida ocorre na primeira infância. “Do ponto de vista biológico, a desnutrição é uma tragédia. Vamos pagar por muito tempo o preço de termos levado nossa negligência a esse ponto, de deixar tanta gente mal nutrida. Muitas vezes esses comprometimentos são irreversíveis. Se você não oferece energia suficiente para uma criança estabelecer conexões nervosas que são necessárias para ela depois aprender as coisas da vida, para frequentar escola, ter uma inteligência normal, nós vamos criar pessoas que não vão ser capazes de acompanhar o desenvolvimento, nem que mais tarde sejam estimuladas”, enfatizou.

Essas crianças são o futuro do país — um futuro em inanição. “Desde muito tempo falamos que a fome está aumentando. Essa geração que está com fome de 2016 para cá, eles seriam o futuro, mas foram privados do desenvolvimento, vão viver com a chaga da fome. Se não conseguimos resolver essa questão, como elas irão estudar depois? A fome é a maior das indignidades do ser humano, todos os outros direitos lhe foram negados”, destaca Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania. A organização foi fundada em 1993, pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, a partir de dados do Ipea que mostravam que 32 milhões de brasileiros estavam abaixo da linha da pobreza.

Betinho, junto com artistas e outras personalidades, foram à TV e jornais para convocar os brasileiros a fazer o que pudessem para resolver o problema do país. Em uma carta, intitulada Carta de Ação da Cidadania, Betinho denunciou a fome no brasil e deu origem ao movimento de Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. Quase três décadas depois, aqui estamos. Carolina Maria de Jesus tornou-se uma das maiores escritoras brasileiras, narrando com candura o que é viver com estômago vazio. Neste ano, completaram-se 45 anos de sua morte. O Estado brasileiro está inerte, omisso para com os seus, com parte da sociedade civil fazendo seu papel.

27 de maio Resolvi tomar uma medida e comprar um pão. Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus olhos.
… A comida no estomago é como o combustivel das maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo deixou de pesar. Comecei andar mais depressa. Eu tinha impressão que eu deslisava no espaço. Comecei sorrir como se estivesse presenciado um lindo espetaculo. E haverá mais espetaculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida.

Entre caras e caretas, aqui estão os links mais clicados pelos nossos leitores ao longo da semana:

1. Terra: Os memes de Bolsonaro com a cara no fogo por Milton Ribeiro.
2. EasyCalculation: Calcule sua pontuação na proporção áurea de beleza do rosto.
3. YouTube: Ponto de Partida - Sobrou decência no bolsonarismo?
4. TechTudo: Whatsapp permite que se esconda foto de perfil e status de contatos escolhidos.
5. The Guardian: Um ranking com as melhores canções de Paul McCartney pós-Beatles.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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