Edição de Sábado: Ser mulher

Pelas mulheres do Meio

Toda segunda-feira a equipe do Meio se reúne virtualmente e debate, de forma aberta e democrática, os temas mais relevantes do momento. A partir dessas discussões, definimos as pautas desta Edição de Sábado e, eventualmente, outros conteúdos do canal. O time é diverso. No quesito gênero, diametralmente equilibrado. Nas últimas semanas, com a revelação do caso da menina de Santa Catarina, da reversão do direito constitucional ao aborto nos Estados Unidos, da exposição da atriz Klara Castanho, do assédio do ex-presidente da Caixa Econômica Federal, a metade feminina da equipe demonstrava uma acentuada angústia — nem sempre vocalmente. Era uma espécie de constrição que condensava outra gama de sentimentos: do medo à raiva, da indignação à sororidade, do constrangimento à vontade de lutar. O opressor noticiário de casos de abuso sexual, assédio, agressões, perda de direitos, faz a simples condição de sermos mulheres ser, frequentemente, dolorosa.

Optamos por promover uma conversa somente com mulheres do Meio e avaliar se, desse encontro, para além da troca humana, teríamos um material relevante jornalisticamente. Por uma hora e meia, falamos. Relatamos dores muito íntimas, que passam por episódios concretos de violência, machismo, relacionamentos tóxicos, misoginia institucionalizada. Era um ambiente seguro, de acolhimento. A convergência dos relatos foi reveladora do quanto mulheres de diferentes idades e de realidades sociais distintas compartilham da mesma trajetória. E de como a cada nova notícia de uma menina ou mulher que sofre como nós reitera nossa própria dor. Faz-nos sofrer junto, repetidamente. Vimos nisso valor jornalístico.

Abaixo, estão trechos dessa conversa. Não vamos identificar individualmente as autoras dos depoimentos.

"Passei por um relacionamento de longo prazo absurdamente abusivo. Na vez em que ele mais me bateu, a mãe dele, advogada, disse que se eu fizesse a denúncia na Delegacia das Mulheres ela me denunciaria por ele ter agido em “legítima defesa”. Acabei nem indo denunciar. Sinto que a minha bolha, as pessoas em minha volta, entendem o que eu falo e estão numa luta junto comigo. Mas quando saio dessa bolha… meu pai é do interior, de um lugar muito pequeno, tradicional, que reflete a realidade do Brasil. Quando vou para lá, vejo o quão inserida numa bolha estou. O reflexo do meu entorno não é o reflexo da realidade brasileira. Ao mesmo tempo em que tenho esperança ao ver minhas amigas me apoiando, me bate um desespero, porque penso 'É só aqui'. Estamos falando de São Paulo, Rio, cidades que estão tentando coisas diferentes. Mas não podemos falar por todos os lugares. É muito difícil ver que, por mais que pareça que tem gente dando dez passos à frente, tem os Estados Unidos dando trinta para trás. Até onde? Há uma divisão. Quando a gente fala, por exemplo, da agressão que eu sofri e a mãe do meu ex-namorado falando que, se eu denunciasse, ia me processar, sendo que ela viu todos os hematomas que ele deixou em mim… Como isso é possível, partindo de uma mulher? As pessoas se assustam com a possibilidade de nós termos direitos, da nossa liberdade sobre os nossos corpos, de decidirmos se queremos abortar ou não. Os homens abortam — eles só não têm filhos, ou saem andando e ninguém fala nada, é muito naturalizado. Que injusto, não é? Essas injustiças vão das coisas mais básicas às mais profundas. É desesperador."

"O meu relato é de uma perda de confiança em homens. Generalizada. O que eu sinto é uma perda de confiança tão grande, mas tão grande, que não confio nos meus tios nem no meu pai para conversar sobre violência. Eu fui violentada pelo meu ex-namorado, dormindo, e nunca falei abertamente sobre isso com ninguém. Nem com minha mãe, nem com meu pai. E ele não foi o primeiro. Um ex-namorado de uma parente tentou me violentar numa festa da família. Comentei com ela e ela me culpou. Então, é sobre uma perda de confiança geral. A minha bolha é muito mais de amigos que eu criei. Só me sinto segura para falar sobre esses temas na internet. É uma institucionalização da violência tão grande que até as pessoas que deveriam nos apoiar, pegar a gente pela mão, nos afundam. Eu cheguei em um nível que perdi a confiança em qualquer homem. Sinto muito medo de confiar em homens em geral, tive um ex-namorado que ameaçou me bater — desse namoro, consegui sair 'ilesa'. Mas sinto um amplo desamparo. A gente vê como o ideal de nação está ruindo. Como pode o que o mundo inteiro vê como referência de democracia, os Estados Unidos, estar ruindo? Aonde nós vamos parar se não podemos confiar nem em quem está do nosso lado? Sinto um desespero. A violência contra a mulher virou algo ok, é coisa do 'homem tradicional de bem', do 'cidadão de bem'… É normal violentar a mulher."

"É bizarro como, quando a gente se junta, todo mundo tem um relato de abuso para contar. Sinto muito medo. Tudo isso bate com muito medo em mim. Não tem muitos homens na minha família. Meu pai foi ausente, aquela história de sempre. Um outro parente fez o papel de pai. E fez muito bem… até o dia em que abusou de mim. Eu estava dormindo. Foi horrível. Guardei aquilo para mim. Não contei para ninguém porque eu era muito, muito próxima dele. Não entendi por que ele fez aquilo comigo. Quando decidi contar, foi horrível. Contei de uma forma péssima, foi quando a gente descobriu que ele seria pai. Seria pai de uma menina — e fiquei muito impactada quando soube disso. Só que, desde que ele tinha feito aquilo, não havia contado para ninguém e continuei agindo normalmente, continuava vendo ele, morando junto. Mas tomava muito mais cuidados. No banheiro, verificava se a porta estava trancada umas cinco vezes, saía no meio do banho para ver se ela estava trancada. Me trancava para dormir. Até hoje tenho esses gatilhos. Minha família sempre me apoiou, mas nessa hora ninguém me apoiou. Chegaram até a perguntar se eu tive um caso com ele. Foi horrível. Depois que eu falei, simplesmente fingiram que nada aconteceu. Não tenho mais contato com ele, mas ninguém toca no assunto. Na época, até minha psicóloga perguntou: 'você tem certeza que isso aconteceu? Às vezes você sonhou…'. Eu também não tenho confiança em nenhum homem, tirando meu avô. Tenho vários gatilhos para me proteger. Sempre ando com uma blusa de manga e uma calça na bolsa, não importa para onde vou. Às vezes, troco de roupa para ir e voltar do rolê, já que saio de roupa curta. Todas as notícias me deixam muito vulnerável, com muito medo. Eu penso: 'Quando vai ser minha vez? Quando vou entrar num Uber e vai acontecer comigo?'. Sinto que não tem para onde fugir, vai acontecer em algum momento. Por isso, sempre estou na defensiva. Também ando sempre com uma pequena arma branca — o que me dá muito medo, porque sou uma mulher preta que mora na periferia. Se a polícia me parar e vir que eu tenho um canivetezinho dentro da bolsa, imagina o que vai pensar."

"Em 2015, tornei público meu episódio pessoal de abuso sexual, que sofri aos 9 anos de idade. Naquela época, estava acontecendo um movimento muito bonito de união de mulheres nas redes sociais. Um ambiente que acolhe a mulher permite que ela se manifeste sobre episódios tristes, duros. Isso inicia um processo de catarse, mudança, exposição dos agressores. Vejo esse noticiário recente e repetido e sinto uma tristeza profunda de ver o nível de violência permanente que a gente sofre como mulher. Mas também sinto um pouco de alento de ver como a sociedade vem se mobilizando quando esses casos acontecem. É um sentimento muitíssimo ambíguo. Há uma violência que parte do indivíduo dentro de sua casa, com suas meninas e mulheres próximas. E também uma violência institucionalizada, no hospital, na delegacia, nos tribunais. Por outro lado, existe uma mobilização social de defesa, de levante, de 'nós não vamos aceitar', ainda que seja virtual, que nem sempre evolua para algo físico, como protestos. Mas eu acho que existe um grau de acolhimento maior do que há 10, 15 anos. Isso é alentador e atribuo às novas gerações. Minha família tem gerações de mulheres violentadas e, sem dúvidas, a minha foi a primeira geração que teve condições de falar. Não tenho a menor dúvida de que minha filha vai ter muito mais condições de se expressar. Claro, se os direitos dela forem preservados… Essas histórias recentes fazem ecoar a violência que sofri, fazem ecoar um temor profundo pelo futuro da minha filha, mas eu também tenho um sentimento de esperança."

"Fui criada num lar onde meu pai e minha mãe sempre foram muito carinhosos. Tenho muitos homens na família e minha mãe sempre me alertou: 'Não senta no colo de tio nenhum', 'não fica perto de tio nenhum'. Meus pais sempre tiveram muito cuidado. Moro em um terreno onde há casas de outros núcleos da família. Uma das minhas parentes, mãe de meninas, se separou e foi morar com outro homem. Ela obrigava uma das filhas, na época pré-adolescente, a ir para a casa desse homem. A garota desencadeou um quadro de depressão, tentou suicídio várias vezes, um delas eu impedi. [Caso precise de ajuda ou informações, procure o Centro de Valorização da Vida (CVV), que dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br]. Desconfio que teve violência sexual. Ela diz que não, para poupar a mãe. O que sei que teve, com certeza, é violência verbal. Esse homem xingava ela de todos os nomes, ela ainda era criança. Nós sentimos a dor dela, porque ainda hoje ela tenta suicídio. Diz que não vê graça na vida. A mulher vive um relacionamento abusivo, apanha dele, mas não o larga. É algo muito delicado na nossa família. Por mais que não seja comigo, é uma pessoa muito próxima que eu amo muito. Eu sei que dói. Hoje ser mulher dói muito."

"Tive um caso na família. Sou muito mais nova que ela e, na época, quando ela contou o que aconteceu, eu era muito criança. Um parente nosso abusou dela, um homem que sempre considerei esquisito. Aquele parente que abraça muito, quer pegar no colo, beija melado. Ele sempre foi assim, nunca gostei muito de ter contato com ele e minha mãe nunca me obrigou. Lembro, era muito pequena, mas lembro que quando ela contou foi um escândalo danado e a família abafou, porque ela sempre foi uma pessoa 'problemática', pulava a janela de casa para ir para o baile funk, ao pagode… Ficou seis por meia dúzia. Esse cara continua na família. Eu, pessoalmente, fiquei em um relacionamento com um homem por dez anos. Quando eu o conheci, tinha acabado de terminar um relacionamento e ele também. Mas ele voltou com a ex e eu continuei com ele mesmo assim. Fiquei seis anos nessa. Quando eu falei para ele que não dava mais, que não iria viver um relacionamento assim, ele terminou com ela e continuei ali, por mais quatro anos. Não importa quantas pessoas te digam que você está num relacionamento ruim, você não acredita, não aceita. Está tão dependente emocionalmente daquilo ali que não enxerga as coisas. Muitas pessoas me alertaram, mas eu acreditava que se não fosse com ele, não seria com mais ninguém. No fim do relacionamento, até falar que a ansiedade e a depressão dele eram minha culpa, ele falou. A gente se sente uma pessoa horrível, apesar de estar sofrendo. Só consegui me desvencilhar desse relacionamento quando eu aceitei que seria tudo bem morrer sozinha. Que estaria tudo bem se eu não arrumasse mais ninguém. Hoje em dia está tudo bem, superei, deixei isso pra trás. É muito complicado, mas a gente vai se apoiando nas pessoas. Me apoiei na minha mãe, infelizmente perdi meu pai muito nova, mas ele era um apoio muito grande na minha vida – tratava bem minha mãe, nos tratava bem. Tive esse exemplo em casa e mesmo assim cai numa situação ruim. É muito difícil arrumar força para sair do fundo do poço, mas quando a gente arruma com o apoio de todo mundo é bom, faz bem."

"Fico pensando em tudo isso e o que mais me bate é que fui criada só por mulheres. Quando minha mãe engravidou, meu pai a abandonou grávida. Voltou quando eu tinha 15 anos, pastor, do Exército, o figurino completo. Sempre fomos em cinco mulheres em casa. Ali, tive muita segurança porque éramos nós. Mas sempre vivi rodeada de medo. 'Você vai ali? Cuidado. Não tenho como te buscar, somos só mulheres, é perigoso.' Tudo era 'somos só mulheres'. Queria sentir medo hoje. Mas só sinto raiva. Eu não gosto de sentir raiva, mas agora entendo que a raiva é um motor para mudar as coisas. Não deixo de sair, fazer minhas coisas, minha mãe morre de medo. Mas só sinto raiva, raiva, raiva. O fim do ano passado foi muito barra para mim, senti na pele a questão da violência institucionalizada. Estava num samba e roubaram meu celular. O bandido conseguiu desbloquear e acessar meu celular. Ali, tinham vários nudes. A partir daí, começou o inferno na minha vida. O bandido ligava e mandava as imagens para a minha mãe, dizendo que, se eu não desse tal quantia, mandaria para todos os meus contatos. Tinha muitos números de fontes jornalísticas. Fui em uma delegacia e só tomei esporro dos delegados. Diziam que não adiantaria denunciar, que eu não deveria ter tirado aquelas fotos, que eu era uma mulher bem informada. Precisei me explicar para toda minha família, minha mãe recebeu os nudes. Me afundei. Em um antigo trabalho, estava ralando para crescer e, explicitamente, um chefe me disse: 'não adianta estudar. Se você quer crescer, você transa com aquele chefe ali'. Comecei a duvidar muito da minha capacidade. Quando eu era adolescente, fui a um churrasco, fiquei com um menino. Só que eu tinha 13 anos, só queria beijar. Então, ele disse: 'aqui tá muito exposto, vamos num canto ali'. Ele me trancou num lugar e me fez fazer as coisas com ele. Até hoje ele convive nos ciclos de amizade, é considerado um cara super 'desconstruído'. Além disso, quando eu namorava, aconteceram várias situações. Uma época fiquei com medo de dormir na mesma cama que um ex, porque ele acordava de madrugada dizendo que tinha sonhado que eu o tinha traído, e quando eu abria os olhos ele estava me enforcando. Mas uma coisa que tem batido muito forte é que… Eu tenho meus sonhos, quero um dia, não é um objetivo da minha vida, mas se acontecer de eu casar, eu não sei qual é o papel de um homem dentro de casa. Eu não tenho essa referência. E ninguém nunca colocou meu pai contra a parede. Ao contrário, colocaram todo o peso na minha mãe. Ela diz: 'Fui sua mãe e seu pai'. E eu digo: 'Não, você foi minha mãe. Você foi muito minha mãe'. Mas esse lugar do pai eu nunca vou saber o que é e nunca foi cobrado dele. Ao contrário, ele voltou para a minha vida cheio de cobranças. É evangélico, tenta me levar para a igreja, e diz que é coisa do Diabo eu ir na Umbanda. Que jamais aceitaria uma filha com outra mulher, e eu sou bissexual. É muito essa questão da conivência."

"Tive uma sorte de não ter passado por situações extremas, envolvendo assédio dentro de casa, pessoas próximas. Tenho sorte, porque todas as pessoas que eu conheço têm uma história para contar. Cresci em uma família do interior, uma família católica, machista, mas com cuidado, amor. Essas situações de nojo envolvendo homem tive no meu trabalho. Comecei a trabalhar super cedo, estava encantada com a estrutura da empresa, participando de reuniões, me sentindo produtiva. Então, recebi um e-mail de um colunista falando sobre meu cabelo. 'Ficou linda loira', algo assim. Eu nem conversava com ele, nem era da minha equipe. Ele foi uma figura que era 'o mulherengo da redação'. Como é fácil a gente naturalizar isso, não era legal o que ele fazia. Nunca deixei, e não é culpa minha ter deixado ou não. É que eu sempre estava namorando, sabe? Fui uma pessoa que tive vários namoros longos na sequência e depois me casei. Esses relacionamentos serviram de escudo. Eu sempre cortava: 'Tenho namorado'. Mas eu não sei se, de repente, namorava por causa disso, pra fugir um pouco desses assédios. Por muito tempo fiz vídeo, fui apresentadora, trabalhava com imagem. Eram “naturais” comentários sobre minha aparência. Meu primeiro programa no ar, estava me achando ótima, adorando. Um chefe me chamou na salinha fechada da redação: 'Vamos falar da sua estreia'. A primeira coisa que ele falou foi 'Essa roupa esconde muito sua silhueta'. Eu estava com uma blusa azul, super bonita, que tinha um pouco de decote no ombro. Ele continuou: 'Essa roupa parece um saco de lixo, parece que você colocou um saco de lixo azul, esconde demais sua silhueta'. Se fosse um homem, ele nunca teria dito isso. Eu sabia que minha aparência era importante, mas não podia ser só aquilo. E foram anos e anos ouvindo aquelas coisas, até que eu decidi sair do vídeo. Me libertei um pouco daquela estrutura machista. Tudo isso me moldou de alguma forma, na relação com os chefes homens, como a gente se expressa, estilo pessoal. Agora tenho essa missão com meus filhos… Como vou cuidar da minha filha e como vou criar meu filho? Ouço relatos das pessoas tão novas e penso: 'Mas isso não tinha ficado para trás?'. Como pode isso acontecer ainda? Fico entre como vou educar e sonhando para que essas coisas não aconteçam mais."

Disney contra Republicanos

Enquanto no Capitólio uma CPI traz a cada semana depoimentos mais complicados para o futuro de Donald Trump, pode estar surgindo na Flórida um substituto para sua liderança no Partido Republicano. É o governador Ron DeSantis, 43 anos, um advogado carismático, formado por Harvard e cuja carreira política se resume a ter sido deputado federal por um mandato representando o sexto distrito — a região de Daytona Beach delimitada ao Sul por Orlando e, ao Norte, por Saint Augustine. DeSantis é um republicano da era Trump, já bastante pós-Reagan. As pautas comportamentais lhe são caras e, embora o discurso ainda seja pró-negócios, é uma guerra contra a maior corporação de seu estado que vem lhe garantindo fama nacional entre os eleitores do partido. A Walt Disney Company foi eleita por DeSantis como símbolo do que está errado nos EUA. Uma guerra que se iniciou por acidente.

Ontem, sexta-feira, começou a valer no estado a Lei dos Direitos Paternos na Educação, sancionada por DeSantis em março. Ela é melhor conhecida pelo apelido que ganhou da imprensa — ‘Lei Não Diga Gay’, um texto que teve a oposição da American Bar Association, equivalente à nossa OAB. O texto permite a pais questionarem legalmente o que professores dizem em sala de aula. Qualquer coisa. Na prática, da maneira como os eleitores republicanos a defendem, é para impedir que questões ligadas à sexualidade sejam mencionadas. É um ‘Escola Sem Partido’ à americana.

A reação de políticos de esquerda foi imediata, de movimentos antirracistas e contra a homofobia também. A Disney, não, sua escolha inicial foi de se manter em silêncio. O CEO Bob Chapek está faz dois anos no cargo e é apenas o sétimo a comandar a companhia que já tem quase cem anos de idade. Seu antecessor, Bob Iger, é tido como um dos três maiores líderes da história da empresa, numa lista que inclui o próprio Walt Disney. O momento no início de 2022 era delicado. Por um lado, o serviço de streaming Disney+, último lançamento de Iger, havia garantido o posto de principal concorrente da Netflix no ramo. Os parques, porém, que representam a maior fatia no faturamento do grupo, quase 30% do total, foram afetados diretamente pela pandemia. Este primeiro semestre era o momento de reabrir as portas. E o complexo de Orlando, hoje cinco parques cercados por resorts, é o maior investimento da Disney no setor. É, também, o maior empregador de toda a Flórida.

Mas, apesar de sua grande operação no estado, a Disney ainda é uma companhia da Califórnia, do setor artístico, e faz parte de ambas as culturas uma forte presença institucionalizada do movimento LGBTQIA+. Quando a empresa não se manifestou, os funcionários cobraram do CEO que os defendessem do que perceberam como um ataque político. Chapek não queria a briga inicialmente mas, num momento de ainda definir sua liderança, percebeu que aquela não era uma escolha. Não se manifestar seria ir contra a cultura interna da empresa que comandava. Oficialmente, a Disney afirmou ser contra a lei.

E, para surpresa de todos, DeSantis retaliou. Não tendo gostado da declaração de que a companhia era contra a lei, tirou da gigante os imensos benefícios fiscais que tinha para operar na Flórida, incluindo o direito de autogestão dos serviços públicos na região dos parques. Não é comum, nos EUA, que governadores punam empresas pela simples manifestação de posições políticas. DeSantis, porém, descreve sua briga como uma de princípios, contra a cultura woke, a gíria nascida dentro do movimento negro, hoje adotada por boa parte dos grupos identitários, e usada pela direita trumpista para se referir a progressistas em geral. Politicamente, funcionou. A briga contra uma das marcas mais conhecidas do país o catapultou para o horário nobre da FoxNews, a TV da direita, e o transformou no maior nome do Partido Republicano após Trump. Já é visto como o principal adversário do ex-presidente na disputa pela candidatura à Casa Branca em 2024.

Pois Walter Elias Disney, o brilhante fundador da companhia, era um eleitor republicano declarado, e isso mesmo nos anos 1940, no auge da popularidade dos democratas. Ronald Reagan, quando dava seus primeiros passos como político, foi convidado por Walt para ser o mestre de cerimônias do lançamento do primeiro parque, nas proximidades de Los Angeles. Reagan era também convidado habitual do programa Walt Disney’s Wonderful World of Color, apresentado ainda pelo velho Disney, o primeiro em cores da televisão americana. A arquitetura dos parques, assim como personagens como Mickey e Donald, são uma grande celebração da tradição americana, da vida nas cidades pequenas e médias, em essência valores tradicionais. Conservadores.

Isto não mudou. O que mudou é que as mesmas cidades pequenas agora são representadas com gente mais diversa. Mudou, também, a postura pró-negócios e contra interferência do Estado em decisões pessoais ou na gestão de empresas que Reagan representava. A própria fundação do Walt Disney World, na Flórida, foi antecedida por uma disputa imensa de vários estados para receber o empreendimento, cientes de que seria um empregador formidável. Foi uma política movida pelo espírito Estado de fora, setor privado gerencia, que fez a Flórida levar o negócio. Um novo Partido Republicano está nascendo e, em meio a esta transformação, pode estar surgindo também o próximo presidente do partido. Um presidente cujos valores não estariam em sintonia nem com Disney, nem com Reagan. É, porém, um político da era Trump sem o caos de Donald Trump. Neste momento da história, um adversário particularmente difícil para os democratas.

Na era moderna, nunca foi tão grande a distância entre os dois partidos. Os EUA, como o Brasil, estão rachados.

Eu maratono, tu vês semanalmente, ele dá spoiler

Planície de Maratona, setembro de 490 a.C. Contrariando as expectativas, incluindo as próprias, a forças das cidades-estados gregas derrotaram o poderoso e numericamente superior exército imperial persa. Segundo a lenda, o soldado Filípides foi encarregado de correr os 42 quilômetros que separavam o campo de batalha da cidade de Atenas a fim de anunciar a vitória. Chegando à Ágora, gritou “Vencemos!” e caiu morto de exaustão.

Hoje, quando se fala em maratona, pensamos na prova de atletismo ou no ato de ver de uma vez só todos os episódios de uma série ou filmes de uma saga. Sedentário convicto, nunca me aventurei na primeira, mas da segunda eu entendo. Acreditem, após as quase dez horas de uma temporada de Dark, na Netflix, por exemplo, nos sentimos exatamente como o pobre Filípides. Felizes com o resultado, mas esgotados até a morte.

A questão é que, após 15 anos redefinindo a maneira como o público assistia a séries, a Netflix vê seu modelo de despejar as temporadas inteiras de uma única vez ser contestado pela concorrência e por parte desse mesmo público. Os motivos são vários, desde a expansão da audiência, a multiplicação de plataformas, a retomada da vida (não tão) pós-quarentena e, não menos importante, o medo dos spoilers, que se tornaram uma obsessão exatamente pelas opções de TV sob demanda.

Não há indicação de que a Netflix vá mudar total ou imediatamente seu modelo, mas um precedente importante foi criado com a divisão da quarta temporada de Stranger Things, a série mais popular da plataforma, em duas partes. A primeira, lançada em maio, compreendia sete episódios; os dois últimos, ambos de longa metragem, entraram ontem. Um dos motivos para a divisão foi exatamente a duração. Nesta temporada, o episódio mais curto, o 3, teve 64 minutos; o mais longo, o final, duas horas e meia. É possível maratonar mais de 13 horas seguidas de uma série? É, o que não significa que seja saudável.

Já houve séries exibidas semanalmente na Netflix, como Better Call Saul e as três primeiras temporadas de Star Trek: Discovery, mas em todos os casos, as produções era parcerias com outras plataformas ou canais, respectivamente a AMC e a Paramount, que hoje exibe Discovery com exclusividade em seu próprio streaming.

Das fitas ao streaming, uma mudança de paradigma

Um tiquinho de história. Desde que a NBC exibiu nos EUA, em 1948, a primeira série semanal de TV, Texaco Star Theater, a maneira como os programas eram consumidos foi sempre ditada pelas emissoras. Diferentemente das novelas, a maioria das séries tinha episódios independentes e não um arco de história, o que permitia que a ordem de exibição não seguisse a de produção, mesmo acarretando problemas de continuidade. Um bom exemplo é a série original Jornada nas Estrelas, de 1966. Quando o terceiro episódio, Onde Nenhum Homem Jamais Esteve, foi ao ar, o público estranhou o fato de o figurino, os cenários e até parte do elenco serem diferentes dos anteriores. Na verdade, aquele era o piloto, mas os executivos da NBC acharam melhor começar com O Sal da Terra, gravado depois e com mais ação.

As grades de horários também eram fixas. Quem perdesse um episódio de sua série favorita teria de esperar uma eventual reprise ou que ela fosse vendida para reexibição em emissoras locais, num sistema chamado syndication.

Esse foi o cenário até o início dos anos 1980, quando os aparelhos de videocassete começaram a se popularizar. Com o advento das locadoras, o público podia levar para casa filmes e séries e assisti-los como quisesse. Lançado em 1996, o DVD aprofundou esse processo, colocando três ou quatro episódios em cada disco com alta qualidade de imagem. Pacotes com temporadas ou até séries completas chegaram ao mercado. Todos os 86 episódios da Família Soprano numa caixa na estante era o sonho de todo fã, e maratonas viraram um programa de grupos. O terreno estava arado e pronto para o modelo da Netflix.

Prenda-os e vicie-os

Criada por Marc Randolph e Reed Hastings em 1997 como uma locadora de DVDs enviados pelo correio, a Netflix iniciou seu serviço de streaming dez anos depois, assinando aos poucos contratos para exibir conteúdo dos maiores estúdios e redes de TV dos EUA. Como as séries que ela incorporava ao catálogo já estavam concluídas, o material entrava na plataforma de uma vez. No início de 2013, lançou sua primeira produção própria, a série de terror Hemlock Grove, e, em julho daquele ano, atingiu seu primeiro grande sucesso com Orange Is The New Black, todas com lançamento em bloco.

Do ponto de vista comercial, a estratégia fazia todo o sentido, como analisou o especialista lituano em cultura digital Sarunas Paunksnis, da Universidade de Tecnologia de Kaunas. “Maratonar (binge-watching é o termo em inglês) faz com que a pessoa passe mais tempo assistindo à programação do que na TV convencional”, disse. “Ao mesmo tempo, reflete uma característica de nossa sociedade de consumo de desejar tudo rapidamente ou mesmo instantaneamente.”

A questão, porém, é que o mercado se diversificou. Empresas de fora do ramo de entretenimento, como Apple e Amazon, e estúdios e canais de TV, como Disney, HBO e Paramount, lançaram suas próprias plataformas, não raro retirando seu conteúdo da Netflix, como aconteceu com Discovery. E, num cenário intensa competição, o modelo de lançamento em bloco pode não ser o mais eficiente.

Momento experiência. Em 2005, eu incluí a HBO em meu pacote de TV a cabo apenas para ver a série Roma, até hoje uma de minhas produções favoritas. Ao longo de suas duas temporadas, fui pegando gosto pelo resto do catálogo e fiquei. Hoje, plataformas de streaming oferecem preços promocionais ou mesmo degustação no primeiro mês, e é possível cancelar o serviço a qualquer momento.

Na Netflix, uma pessoa interessada somente em The Umbrella Academy ou Bridgerton pode assinar o serviço por apenas um mês e só contratá-lo novamente quando uma nova temporada for lançada. Um fã de The Boys, da Amazon, Euphoria, da HBO ou de uma das séries da Marvel ou Star Wars da Disney+ está amarrado por meses, exposto ao resto do conteúdo. Num cenário de múltiplas ofertas com qualidade, esse tipo de fidelização conta.

Kate vs Vecna

A mudança de paradigma com a quarta temporada de Stranger Things teve pelo menos uma grande beneficiária, a cantora e compositora inglesa Kate Bush (Spotify). Aos 63 anos e sem lançar uma música inédita desde 2011, ela voltou ao topo das paradas quando sua canção Running Up That Hill, de 1985, apareceu como a âncora que salva Maxie do vilão Vecna. A expectativa da parte dois manteve o hype em torno da canção, elevado ainda mais pela versão remixada incluída no trailer. Segundo o Guinness Book, Kate agora é detentora de três recordes no Reino Unido: artista feminina mais velha a alcançar o número um, mais tempo para uma faixa alcançar o número um na parada oficial de singles do país e maior intervalo entre os números um.

É impossível não pensar em outra música umbilicalmente ligada a uma série da Netflix. No segundo episódio de The Witcher, o bardo Jaskier compõe um jingle-chiclete para melhorar a imagem do protagonista Geralt de Rivia. Toss A Coin To Your Witcher (Jogue Uma Moeda Para Seu Bruxo) viralizou, claro, mas seu potencial de “cauda longa” teria sido maior com uma semana de maturação entre os episódios em que era cantada.

Vou contar para todo mundo

O que nos leva a dois componentes complementares, embora conflitantes, da preferência de parte do público pelo consumo semanal de séries: a repercussão e os spoilers. Não, não é um fenômeno novo. No Brasil, capítulos importantes de telenovelas eram assunto obrigatório no dia seguinte e rendiam matérias em jornais e revistas. A internet abriu um caminho a mais. Na década de 1990, após cada episódio semanal de Babylon 5 (que, aliás, está disponível na HBO), corríamos para as salas do Yahoo! ou para ferramentas de bate-papo para trocar impressões. Se alguém perdeu, paciência. Seria reprisado em algum momento.

O que mudou? Duas coisas. Antes mesmo do streaming, canais como a HBO passaram a oferecer serviços em que seu conteúdo estava disponível on demand. Quem perdia um episódio de Game of Thrones no domingo à noite podia vê-lo quando quisesse a partir do dia seguinte. A dinâmica das séries foi equiparada a dos filmes no cinema, que estreiam, e cada um vê quando quer. A boa educação manda não dar spoilers de filmes em cartaz, mas nunca se chegou a um acordo sobre o prazo aceitável em séries que ficam permanentemente à disposição. Alguns não se importam, outros acham que a experiência foi destruída.

A segunda mudança decorre da dinâmica nas redes sociais. Na Idade da Internet Lascada, tomávamos a iniciativa de buscar informações dos ditos grupos do Yahoo!. Hoje elas são esfregadas na nossa cara no Twitter, no Facebook e no WhatsApp. Se, como diz a paródia de Marcelo Adnet, você não gosta de spoiler (spooooiler), a solução é ficar fora das redes até botar a série em dia.

E aí entra a vantagem dos episódios semanais. Com a volta, ainda que instável, ao trabalho e às aulas presenciais, sobra-nos menos tempo para ver de uma vez toda uma temporada, mas alguém certamente o fez e vai contar o final nas redes. Apenas um episódio reduz esse risco. Com algum esforço, podemos ficar fora do Twitter por poucas horas até assistirmos e ainda temos uma semana inteira para comentar.

Agora com licença, que aquelas cinco séries em três plataformas não vão se assistir sozinhas.

A câmera do iPhone debuta

Para ler e ver com calma. O Guardian aproveitou o aniversário de 15 anos do iPhone para ouvir fotógrafos e fotógrafas profissionais de vários lugares sobre o que mudou em sua maneira de enxergar e registrar a vida — e mostrar suas obras no aparelho. Muitos apontaram o caráter menos “ameaçador” do telefone em comparação ao equipamento profissional, visto como sinônimo de perigo especialmente em países com liberdade de expressão restrita. O jornal britânico mantém ainda, desde setembro do ano passado, uma coluna semanal, a Smart Shot, com imagens feitas por profissionais em seus iPhones.

Entre lendas intermináveis da música e boa comida, uma PEC. Eis os mais clicados da semana:

1. G1: A aprovação da PEC Kamikaze no Senado.

2. Panelinha: Salmão assado com páprica, mel e cebola roxa.

3. YouTube: Paul McCartney canta I've Got a Feeling no Glatonsbury Festival. Com John Lennon.

4. Variety: No aniversário de 90 anos de John Williams, um ranking.

5. Panelinha: Bisteca com molho de limão.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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