Os Tenentes de 1922, o Centrão de 2022

A tentativa de golpe que completa um século hoje nos ensina: novos grupos sociais precisam de representação política. E há dois grupos carentes de líderes no Brasil atual

Há quem conte História como uma força movida pelo ímpeto de grandes líderes, aquelas personagens quase sobre-humanas pelo carisma, pela habilidade, pelo senso de tempo. Mas há outra forma de interpretar — a história das tecnologias, da economia, daquilo que de alguma forma afeta e move a sociedade. Hoje, dia 6 de julho, 2022, faz exatos cem anos que quatro tenentes lideraram um grupo de soldados em marcha pela Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, em missão suicida para derrubar a Primeira República. Os Dezoito do Forte. Pois compreender o Tenentismo pelo ângulo da sociedade ajuda, muito, a compreender também o momento atual da política brasileira.

Eram muitos os tenentes, mas eles todos viam em três seus principais líderes. Três homens que bem se adequariam à Teoria do Grande Homem, atribuída ao filósofo escocês Thomas Carlyle no século 19. Luís Carlos Prestes, Eduardo Gomes e Antônio de Siqueira Campos ascenderam socialmente através do único curso superior que dava roupa, livros, moradia e ainda pagava um salário para gente pobre no Brasil daquele tempo. Entrar para a Escola Preparatória de Oficiais não era trivial, e as vagas, tão poucas. Eles, porém, eram especiais. Disputaram entre si até o fim do curso a posição de melhor aluno da primeira turma de oficiais profissionais que o Exército formou. (Prestes levou.)

Era curso superior mesmo — formação equivalente à de engenheiro. Seu principal desafio era conhecer mecânica clássica e trigonometria para calcular carga de pólvora, peso de projéteis, inclinação de canhões, bater com o rumo dos ventos e assim calcular cada tiro que se dava. Do Forte de Copacabana, no dia 5 de julho, Siqueira Campos acertou o prédio do Ministério da Guerra, no centro do Rio, além de casas bem próximas ao Palácio do Catete, sede da Presidência, e ao Senado Federal. O vento e a chuva salvaram muitos políticos. Siqueira morreu afogado quando trazia da Argentina dinheiro para fazer a Revolução de 1930. Prestes e Gomes mantiveram-se personagens influentes da política brasileira por todas suas vidas. É verdade que, depois do movimento que iniciaram, abraçaram ideologias tão distintas que a amizade se desfez. O respeito de um pelo outro nunca foi perdido, mesmo quando Prestes se tornou secretário-geral do Partido Comunista e Gomes, um dos principais líderes conservadores. Entraram para a História já protagonistas, em 1922. De lá nunca saíram.

Mas a Primeira República teria caído mesmo sem Prestes, Gomes e Siqueira. Mesmo sem os Dezoito do Forte. Mesmo sem os tenentes. Teria caído ou teria se transformado, pois o pacto de equilíbrio de forças que sustentava o regime havia se tornado obsoleto. E a pista para compreender o Brasil de hoje está neste pacto.

Era, a Primeira República, um acordo. As elites tecnocráticas de São Paulo e Minas Gerais dividiam a presidência, alternando-se. Em troca, não se metiam com os chefes políticos regionais no resto do Brasil. Por uns vinte anos, este regime deu certo o suficiente a ponto de dar estrutura para o Estado brasileiro, criando uma classe média urbana de funcionários públicos, assim como iniciou o processo de industrialização — criando, também, uma classe operária. Funcionários públicos e operários têm poder. Podem, por meio de greves, paralisar o Estado ou um bom pedaço da economia. Como podem, no caso dos funcionários públicos militares, se rebelar com armas nas mãos — pois é: os tenentes eram parte deste Brasil que surgia.

Às vezes é tentador ceder à impressão de que um regime é formado pelos que têm poder político e apenas, como se não precisassem prestar contas à sociedade. Como se não sofressem pressões diversas da população.

A ilusão atinge com frequência até políticos — e aqueles que mandavam na Primeira República não perceberam que tinham de abrir espaço para novos grupos. Congelaram uma percepção de Brasil do passado sem enxergar que eles próprios haviam transformado o país.

Foi exatamente isto que ocorreu com a Nova República. Ela nasceu ainda seguindo a estrutura de compartilhamento de poder que Getúlio Vargas criou. Partidos fisiológicos, principalmente PMDB e PFL, representando os chefes políticos regionais. Oligarcas. Um grupo dedicado à técnica da governança, representante de profissionais liberais, como eram de certa forma os presidentes da Primeira República, como foi a UDN — como foi o PSDB. E aquilo que PTB foi nos tempos da Segunda República e o PT, até bem recentemente. Um partido de operários e funcionários públicos.

Estão faltando na equação os dois grupos que nasceram na Nova República, nascida em 1985. De um lado uma classe média baixa que vive nas periferias urbanas, que já chamamos Classe C. Não raro, são evangélicos. Conservadores. Com sonhos de ascensão social pelo empreendedorismo via Teologia da Prosperidade. Do outro, o grande Brasil Agro, que está em processo de desoligarquização. Nos últimos trinta anos, entre o interior do Paraná e de São Paulo, no Triângulo Mineiro e no Centro Oeste, se formou uma sofisticada e moderna indústria do agronegócio. Esta nova economia criou um novo mundo com classe média, ricos e até milionários.

Há, em ambos os casos, ascensão social. Estes dois ‘Brasis’ ergueram, também, indústrias culturais próprias, com seus ídolos musicais, influenciadores das redes, podcasters e youtubers. Ambos têm moda própria — das roupas aos acessórios. O R retroflexo típico do sotaque agro ocupou a televisão, tão influente se tornou este público no mercado de consumo. Da mesma forma, o vocabulário evangélico e do rap está presente por toda parte.

Ao longo da história da República, estas duas partes da sociedade brasileira foram representadas pelo partido oligárquico — o Centrão é sua versão contemporânea. A fórmula de equilíbrio da Primeira República foi um acordo de não agressão entre as elites dos profissionais liberais, que governavam, e as oligarquias, que não eram perturbadas em suas áreas de influência. A da Nova República foi similar — PSDB e PT se alternavam no poder, ambos contando com o apoio do braço fisiológico-oligárquico.

O fisiologismo não dá conta destes dois Brasis das periferias urbanas e do interior agro. E ambos os grupos sentem, de formas distintas, que o mundo político não os representa.

Quem deseja se consolidar na classe média urbana e crescer mais precisa de um Estado que de fato funcione — escolas, hospitais, segurança. Migalhas não dão mais conta — e o fisiologismo oferece isso. Ambulâncias, praças, tratores resolvem problemas pontuais mas não criam os caminhos necessários para que venham oportunidades. O fisiologismo dá ainda menos conta das complexas questões que o Brasil agro precisa encarar, que passam por diplomacia, ampliação de mercados, adequação à política verde que é necessária mas que também servirá como pretexto para parte do mundo impor barreiras comerciais.

A percepção de não ser representada, pela nova classe média urbana, esteve nítida nas ruas, em 2013. A do Brasil agro ficou clara em 2016. O mundo político não ofereceu saída, e a única saída possível é um novo pacto de compartilhamento de poder. Uma nova organização da política. Por um tempo, a Lava Jato pareceu sugerir que o problema do Estado que não funciona para estas pessoas era de corrupção. Como tenentes modernos, os procuradores de Curitiba eram representantes destes Brasis eles próprios. Bolsonaro, então, apareceu como uma visão radicalizada do que a Lava Jato oferecia — a implosão do sistema por dentro. Mas em nenhum dos dois casos se resolve aquilo que realmente importa.

Representatividade política. Voz nas tomadas de decisão. Influência na definição de políticas públicas.

Para eleitores tradicionais da esquerda e dos tucanos, o conservadorismo deste novo grupo chega como remédio amargo. Mas eles fazem também parte do Brasil. De certa forma, o modelo antigo que simplesmente negociava com o Centrão era mais fácil. Para haver novamente Democracia no Brasil, no entanto, só há um caminho. O da política.

Assim como o Brasil precisou de um partido de esquerda para estabilizar sua democracia ao fim do Estado Novo, agora é o oposto. O Brasil precisa de um partido de direita não fisiológico e democrático. E quem acha que o PSDB foi isso nos tempos de Fernando Henrique ainda não conseguiu ouvir o que dizem estes brasileiros que pedem voz.


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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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