Edição de Sábado: Nas trincheiras da guerra cultural

Na última terça-feira, o Congresso derrubou os vetos do presidente Jair Bolsonaro às leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2, irrigando o setor cultural com R$ 6,86 bilhões. A ira de bolsonaristas nas redes foi imediata. É um enredo previsível: culpam-se os “mamadores de recursos públicos”, artistas consagrados que recebem fortunas para fazer proselitismo político de esquerda — isso quando fazem arte, porque, a tomar como realidade o que dizem os posts das extrema-direita, a maior parte dos artistas simplesmente embolsa o dinheiro, sem pudores.

Toda essa fantasia de Baile da Ilha Fiscal com o dinheiro público acontece, no delírio bolsonarista, enquanto os artistas de verdade, sejam os palhaços que soltam pum para o cidadão de bem gargalhar, os pintores que se esmeram para fazer quadros acadêmicos dentro das regras das belas artes anteriores às barbáries vanguardistas do século XIX e as almas elevadas que se dedicam ao sublime da arte sacra, não conseguem um parco real para ver seu sonho de artista se tornar realidade.

Na profusão de mensagens no WhatsApp e Telegram, aparecem como alvos principais nomes como Daniela Mercury, Wagner Moura, José de Abreu e Anitta. Artistas populares o suficiente para terem suas vozes ouvidas, e claramente identificados como opositores de Bolsonaro e do discurso obscurantista em relação à cultura que ele representa.

Contra esses artistas, é comum ver posts requentados com diferentes inverdades girando nas redes. Assim que ocorre uma mobilização artística de peso, a mesma narrativa volta, com a tropa de choque cultural da extrema-direita puxando o movimento. Gente formada na doutrina de Olavo de Carvalho, como os irmãos Weintraub e a deputada federal Carla Zambelli.

Em outra onda, no começo de março, o escolhido foi Caetano Veloso. O cantor fez um show na Esplanada dos Ministérios no “Ato pela Terra contra o pacote da destruição”, em que, com outros artistas e ativistas, pedia a rejeição de projetos de lei que atentavam contra o meio ambiente e os povos originários. No fim daquele mês, foi a vez da produtora de shows T4F. O pecado que colocou a empresa na linha de tiro dos bolsonaristas foi a realização do Lollapalooza deste ano, onde diversos artistas usaram o palco para manchar a hagiografia do capitão que teme perder as eleições deste ano e ver clubes de tiro virarem bibliotecas.

Foi o suficiente para a empresa aparecer em posts ao lado de cifras astronômicas de dinheiro público captado por Lei Rouanet. Para aqueles que ainda prezam por um mínimo de correlação entre fatos e realidade, é falso que a produtora tenha usado incentivo fiscal na realização do festival.

Esse tipo de ataque coordenado à cultura faz parte de uma estratégia maior do grupo que gravita em torno de Bolsonaro. E a Lei Rouanet, com toda a sua complexidade na vida real e com o que representa simbolicamente, presta-se a arma perfeita na guerrilha digital. É interessante entender como, em pouco mais de 30 anos, uma lei que nasce acusada de ser uma afronta aos mecanismos de financiamento cultural, levada a cabo por liberais, se torna, no discurso da extrema-direita, uma ferramenta de dominação comunista. E como, na prática, ela se transforma também em um dos principais instrumentos para a corrosão dos mecanismos da indústria criativa durante o governo Bolsonaro.

A gênese

Antes de Jair Bolsonaro, se alguém perguntasse qual presidente da Nova República foi mais deletério à cultura, o nome de Fernando Collor de Mello surgiria naturalmente. Alçado à Presidência com uma plataforma anticorrupção, Collor começou o primeiro mandato de um presidente civil eleito após a ditadura civil-militar como um trator, confiscando a poupança dos brasileiros e retirando o dinheiro da economia para tentar conter a inflação.

Com a mesma sutileza, seu principal ato no setor cultural, assim que assumiu o cargo, foi extinguir a Embrafilme. A estatal era responsável pelo financiamento de boa parte da produção nacional de cinema. O fim da Embrafilme em 1990, no âmbito do Programa Nacional de Desestatização, levou ao pior apagão que o cinema nacional já vivenciou, com pouquíssimas produções de ficção até 1995, quando há o lançamento de Carlota Joaquina, de Carla Camuratti, tido como o filme da retomada do cinema brasileiro.

Em um ano, Collor trocou seu secretário de cultura pelo diplomata Sérgio Paulo Rouanet, morto no último dia 3. E foi Rouanet quem elaborou a Lei Federal de Incentivo à Cultura, que acabou levando seu nome. Promulgada em dezembro de 1991, ela criava o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que estabelecia as políticas públicas para o setor.

A lei era baseada em um tripé. A face que mais conhecemos na prática é o estabelecimento de regras para o mecenato. Empresas e indivíduos poderiam financiar projetos culturais descontando parte do Imposto de Renda — até 6% no caso de pessoas físicas e 4% no caso de pessoas jurídicas.

Foi criado também o Fundo Nacional de Cultura, que previa investimento direto do Estado. Assim, evitariam-se eventuais distorções do mecenato e se direcionariam verbas tanto para produções culturais menos atraentes ao setor privado quanto para implementar políticas descentralizadas. A Funarte, por exemplo, é mantida com recursos do Fundo Nacional de Cultura Os recursos para sua manutenção vêm de diferentes fontes: doações ao governo federal, 1% da arrecadação dos Fundos de Investimentos Regionais, 3% da arrecadação bruta das loterias federais.

Essas duas pernas do tripé saíram do papel. A terceira nunca foi executada. Trata-se do Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). O Ficart funcionaria como um fundo de investimentos em cultura regulado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Eventos culturais lucrativos como festivais, por exemplo, poderiam ser divididos em cotas para serem financiados e o lucro seria dividido entre os cotistas, como ocorre com uma empresa que tem ações em bolsa.

Em um primeiro momento, foram duas as principais críticas dirigidas à Lei Rouanet, lá nos anos 1990. A primeira era de que ela deixaria a condução da cultura nacional na mão dos diretores de marketing das empresas, sem uma preocupação com o fomento da diversidade de que o setor necessita. Ou, trocando em miúdos, as empresas só apostariam em uma arte que desse retorno de marca, deixando de lado produções mais polêmicas. A segunda crítica era direcionada ao Fundo Nacional de Cultura, que não cumpriria sua vocação de descentralizar os recursos, mantendo muito da sua atuação no Sudeste, eixo onde a cadeia de produção cultural era mais estabelecida.

Mas a realidade é que, com o tempo, todo o setor cultural acabou se adaptando à realidade de incentivo da Lei Rouanet. Houve acusações, sobretudo nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, de dirigismo cultural. Ou seja, de se usar a lei para favorecer projetos que eram mais caros ao governo. Mesmo assim, a roda girava bastante azeitada.

Até o governo de Dilma Rousseff, o setor cultural conseguiu gerar riqueza para o país usando os mecanismos de incentivo. Uma pesquisa realizada em 2018 pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), antes da eleição de Bolsonaro e no momento em que a Lei Rouanet já se tornava arma retórica dos grupos de extrema-direita, mostrava não só a força da economia criativa no país como os benefícios econômicos da aplicação da lei.

Naquele ano, de acordo com fontes oficiais do Ministério da Cultura, a economia criativa respondia por 2,64% do PIB nacional; 251 mil empresas atuavam no setor, criavam um milhão de empregos diretos e geravam R$ 10,5 bilhões em impostos. Analisando os dados entre 1993 e 2018, o que se viu foi que os R$ 31,22 bilhões de renúncia fiscal promovidos pela Lei Rouanet movimentaram R$ 49,78 bilhões em 68 atividades econômicas que vão do turismo ao setor financeiro. O estudo revelava que a cada R$ 1 captado e executado via Lei Rouanet era gerado, em média, R$ 1,59 na economia local. Ou seja, o investimento na indústria criativa gera riqueza para o Brasil na ordem de 59%. E não prejuízo.

A ofensiva

Apesar de especialistas defenderem a economia criativa como fonte importante de geração de emprego e renda, deixando um saldo muito positivo na economia, a verdade é que desde o governo Dilma, pouco antes da guerra ideológica promovida pelos bolsonaristas, os investimentos federais em cultura vêm diminuindo. No auge da crise econômica do governo da petista, o repasse de 3% das loterias federais foi contingenciado, um outro nome para dizer que o dinheiro passou a ir para outras fontes e não para o Fundo Nacional de Cultura. Levantamento feito pela Folha de S. Paulo mostrou que em 2013, quando ainda era gerido pelo Ministério da Cultura, o orçamento autorizado chegou a R$ 5, 57 bilhões. Em 2021, o valor caiu para R$ 1,77 bilhão.

O que acontece nesse meio do caminho entre a atuação de Marta Suplicy como ministra e Mario Frias como secretário especial da Cultura, recém-licenciado para concorrer às eleições, é um assalto à própria ideia de cultura como geradora de riqueza material, além de imaterial.

Em 2017, com Michel Temer no poder, dois fatos começam a construir a narrativa de que se está usando o dinheiro público para promover a corrosão dos valores da família brasileira. Primeiro, começam os ataques à exposição Queermuseu, em cartaz no Santander Cultural, no Rio Grande do Sul. A outra foi a performance “La Bête”, de Wagner Schwartz, no MAM de São Paulo. No primeiro, obras que refletiam sobre o universo LGBTQIA+. No segundo, a acusação de pedofilia ao viralizar uma foto de uma criança tocando o corpo nu do coreógrafo. No tornozelo, diga-se. Ambos os eventos culturais foram realizados com renúncia fiscal. Foi o “turning point”. Acendeu-se a fúria contra a Lei Rouanet.

Os dois episódios se encaixam perfeitamente no universo da máquina de desinformação bolsonarista. Entrevistada aqui neste Meio sobre a pesquisa que realizou sobre desinformação durante a pandemia de Covid-19, a antropóloga da USP Isabela Kalil defendeu que essa rede opera preferencialmente sobre duas estruturas narrativas, que frequentemente se entrelaçam: o anticomunismo, que pode ser traduzido como um sentimento anti-esquerda de maneira geral, e o ataque às questões de gênero e sexualidade. Nesses dois exemplos, o círculo se fecha com perfeição. No ideário da extrema-direita, a esquerda “comunista” busca a destruição dos valores morais e das famílias por meio da desconstrução da sexualidade heteronormativa.

Ao longo de 2018 e com o correr da campanha presidencial, cresce a narrativa, incentivada por artistas da direita como Lobão e Roger Moreira, de que os artistas esquerdistas e devassos eram os principais captadores de recursos da Lei Rouanet. Nada mais longe da verdade. Quem conhece de perto o mercado sabe que os maiores captadores de recursos são as grandes instituições. Em São Paulo, por exemplo, historicamente o Masp, o Instituto Tomie Ohtake e a Osesp estão, ano após ano, entre os que mais conseguem recursos com a lei. Porém, na guerra a verdade é a primeira vítima. E a mesma inverdade contada de diferentes formas, com exemplos distorcidos bem encaixados e referendada pelo companheiro de grupo de WhatsApp, é suficiente para que se opere em uma realidade paralela.

A cultura armada

Com a chegada de Bolsonaro ao poder, a realidade paralela passou a ser diretriz política. Boa parte do que pensam os bolsonaristas sobre cultura vem da doutrinação promovida nos cursos do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, morto em janeiro deste ano. O olavismo, alinhado a todos os dogmas da direita alternativa no mundo, de Trump a Orbán, faz uma leitura de que se está travando uma violenta guerra cultural. E de que a esquerda, que corrói as estruturas da família, está vencendo a guerra. É uma interpretação rasteira, de sinal trocado, da teoria da hegemonia cultural proposta pelo marxista italiano Antonio Gramsci.

Gramsci era um jovem jornalista quando esteve entre o pequeno grupo de fundadores do Partido Comunista Italiano, em 1921 — e já era secretário-geral do PCI fazia dois anos quando foi detido pelo governo fascista de Benito Mussolini, em 1926. Morreu na prisão, aos 46, em 1937. Seus 11 anos finais marcaram um período de intenso sofrimento, conforme acumulou perda de dentes, tuberculose, gota, hipertensão, problemas gástricos, uma degeneração completa da saúde. Foi, também, um tempo de intensa atividade intelectual, conforme escreveu os Cadernos da Prisão, com reflexões a respeito de política e poder. Suas ideias, principalmente as relativas ao conceito de hegemonia, são levadas a sério por pensadores não só de esquerda, mas também conservadores.

Gramsci acreditava que a um grupo, para se manter no poder, não bastava ter apenas controle de Executivo ou Legislativo. Era preciso também emplacar suas ideias, sua visão de mundo, na sociedade. Estabelecer de alguma forma hegemonia nos ambientes cultural e econômico. É, de acordo com ele, a criação deste consenso que torna o poder estável — podem até mudar os políticos, mas não mudam os princípios que conduzem os governos.

Isolado, imerso numa solidão profunda, Gramsci chegou à sua teoria da hegemonia cultural quando tentava explicar por que o proletariado não se insurgiu contra o capitalismo como Karl Marx havia previsto. Olhando para sua Itália natal, concluiu que no encontro entre os preceitos da Igreja Católica e o folclore, a cultura popular, produziu-se um pesado pacote de valores conservadores que se impunham e bloqueavam uma insurreição contra o sistema capitalista.

Deste conjunto, surgiam valores como respeito à hierarquia ou ideias como a de que, mediante esforço, qualquer um poderia crescer economicamente e ganhar respeito social. Como marxista, vivendo num tempo anterior à social-democracia ou ao Estado de bem-estar social, Gramsci não acreditava que um regime democrático seria capaz de entregar melhorias. A missão dos comunistas deveria ser, portanto, produzir uma contra-força equivalente, capaz de substituir na imaginação do povo aqueles valores. Para criar essa ideologia ainda na raiz, o caminho passaria pela conquista de espaço entre professores e artistas populares.

No mundo paranóico do bolsonarismo, não é uma elite cultural conservadora que impede a revolução proletária através da conquista de corações e mentes. Para a extrema-direita, o que ocorre no mundo hoje é que os artistas e intelectuais de esquerda, que promovem diferentes formas de arte, já corroeram o seio da família brasileira com suas ideias revolucionárias e é preciso colocar um fim nisso. Eles não admitem isso claramente, mas aplicam a metodologia que condenam nessa guerra. A de ocupação dos espaços de valores. Nessa lógica, não por acaso, desde o começo do governo Bolsonaro, três setores chave ficaram nas mãos de crias do olavismo. A secretaria especial de Cultura, agora um braço do ministério do Turismo; o Ministério da Educação e o Ministério das Relações Exteriores. Ou seja, os espaços onde se pode travar a guerra cultural com mais eficiência.

Na área cultural, começa-se com um desmonte das instituições, junto com o rebaixamento do ministério para secretaria. Há também uma política de caça às bruxas, com artistas que se opõem a Bolsonaro, a maioria da classe artística, sofrendo perseguição nas prestações de contas de projetos realizados e nos quesitos técnicos de projetos propostos. Ainda acontece um esvaziamento do quadro de pareceristas técnicos da secretaria. Como ocorre em um governo que decreta sigilo a torto e a direito, há um verdadeiro apagão nos dados sobre projetos culturais e investimento em cultura.

Vai-se além. O bolsonarismo orgulha-se de seu explícito dirigismo cultural. Teve defesa enfática de se financiar projetos de alta cultura e belas artes proposta pelo secretário Roberto Alvim, aquele que caiu por fazer um vídeo em que copia trechos do discurso nazista do ministro da propaganda de Hitler. Teve defesa de Mario Frias de que “dirigismo da política pública cultural não é o problema, é parte da função do governo”, para justificar portaria que criava um segmento exclusivo para a arte sacra no processo de avaliação da Lei Rouanet. Teve defesa do então número 2 da secretaria de Cultura, André Porciuncula, que orgulhosamente prometeu R$ 1 bilhão da Lei Rouanet para a produção de conteúdo pró-armas, sobretudo audiovisual.

O governo Bolsonaro também atuou de forma direta na reformulação da Lei Rouanet, limitando a captação de projetos a um teto de R$ 1 milhão e baixando normas internas que limitavam, entre outras coisas, o cachê dos artistas, num flagrante espírito punitivista.

No Brasil, o governo se empenha em sufocar essa indústria, sob um discurso de valorização da pátria e da família. Por isso, a derrubada de vetos desta semana e a migração da decisão sobre a destinação dos recursos das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc 2 para Estados e municípios são consideradas por produtores culturais como uma importante vitória. Pelo menos nos próximos meses, o governo federal será obrigado a aliviar um pouco a pressão com que tem asfixiado a cultura.

Três países, uma riqueza

“Nós somos artistas que não dependem de Lei Rouanet. Nós não precisamos fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou não”, disse o sertanejo Zé Neto, da dupla com Cristiano, num show em Sorriso (MT), em maio. A comparação com a tatuagem íntima da cantora Anitta deu origem a um efeito borboleta inusitado. Ministérios Públicos de diferentes estados passaram a investigar cachês de shows de cantores contratados sem licitação em pequenas cidades espalhadas pelo Brasil. Os valores costumam ser desproporcionais com a realidade dos municípios — e imorais quando se pensa no que é sacrificado em gastos públicos para que tais eventos aconteçam. O movimento ficou conhecido como "CPI do Sertanejo".

A bravata de Zé Neto é inflamada pela percepção equivocada de que se financiar publicamente ou com incentivos fiscais a cultura é uma indecência. Mas países desenvolvidos têm algo em comum no campo cultural: políticas próprias para fomentar atividades nessa área e gerar receitas que movimentam a própria economia. “O que as pessoas muitas vezes não entendem é que a cultura, além de trazer benefícios e lucros, participa do processo do 'soft power', em termos de criação da imagem da nação, de visibilidade, de reafirmação de sua imagem. Isso tem um impacto na questões econômicas e pode abrir portas para relações bilaterais. Os Estados Unidos e a França compreenderam isso há muito anos”, explica Leonardo Tonus, escritor e professor em literatura brasileira na Sorbonne Université.

Olhemos, pois, para esses países e para a Alemanha, e vejamos como o fomento à cultura é trabalhado em nações internacionalmente reconhecidas nesse campo.

Na França

O financiamento da cultura na França provém de diferentes fontes, mas a força do Estado sempre prevaleceu. Em 2020, foram investidos €3,6 bilhões pelo Ministério da Cultura. Para 2022, o orçamento previsto da pasta é de pouco mais de € 4 bilhões. Somado com créditos complementares e apoios excepcionais recentes, por conta da pandemia, o total de investimentos públicos, incluindo receita de impostos e despesas tributárias, deve passar dos € 11,24 bilhões neste ano.

Criada em 2003, a Lei Aillagon regulamentou o mecenato privado e tornou o modelo francês de dedução de impostos em um dos mais vantajosos da Europa. Para empresas, a lei, batizada com o sobrenome do então ministro da Cultura de Jacques Chirac, oferece 60% de dedução fiscal sobre a contribuição com cultura (limitada a 0,5% de suas receitas). Pessoas físicas têm isenção de 66% no imposto sobre o valor da contribuição (no limite de 20% dos rendimentos tributáveis). Na celebração dos 15 anos da lei, em 2018, o então titular da pasta, Frank Riester, celebrou: “A quantidade de doações declaradas foi multiplicada por 4; o número de empresas patrocinadoras, em 12”.

Há também um outro modelo de investimento por meio do patrocínio a um evento, pessoa, produto ou organização. Nesta modalidade, descontam-se as despesas com publicidade do resultado tributável da empresa.

Na Alemanha

A Alemanha também tem forte investimento público em Cultura. Os alemães têm uma política descentralizada do poder federal, que tem a menor participação em investimentos, com apenas 15% da verba pública. Outros 40% vêm dos 16 estados do país. Os municípios são os maiores responsáveis pelo fomento público, arcando com cerca de 45%.

Segundo dados mais recentes divulgados pelo Departamento Federal de Estatística da Alemanha (Destatis), foram gastos € 11,4 bilhões de recursos públicos com cultura no país em 2017. “Na Alemanha, ainda prevalece a opinião de que é tarefa do Estado financiar instituições culturais para os cidadãos. O acesso a teatros, óperas, museus e outras instituições culturais não deve depender da bilheteria arrecadada”, afirma Matthias Makowski, diretor do Goethe-Institut São Paulo e diretor regional para a América do Sul. “A Alemanha está convencida de que a cultura é importante para o desenvolvimento democrático de um país.”

Apesar de a verba pública ser a maior parte do montante com gastos em cultura, o financiamento pela iniciativa privada tem sido cada vez mais importante para o fomento germânico. Somente em 2015, estima-se que € 1,2 bilhão do capital privado financiaram instituições culturais subsidiadas com recursos públicos, segundo dados da Destatis.

“Todas as grandes instituições culturais têm associações ou círculos de amigos patrocinadores que contribuem para o financiamento”, conta Makowski. O diretor explica que há muitas contribuições realizadas por grandes empresários alemães por meio de fundações, o que geralmente reduz suas cargas tributárias.

Nos EUA

Os Estados Unidos conseguiram se impor culturalmente no mundo, porque tanto o sistema público quanto a iniciativa privada compreenderam a economia criativa tal como ela é, e não como um setor de desperdício de dinheiro.

A atividade econômica cultural em 2020 movimentou o equivalente a 4,2% do PIB, ou US$ 876,7 bilhões, segundo dados do Departamento de Análise Econômica americano (BEA, na sigla em inglês). Isso num ano em que os dados foram impactados pelas medidas de distanciamento social.

Por lá, a maior parte dos investimentos vem do setor privado, apoiado por políticas de incentivo. Entre elas, há benefícios para pessoas e empresas que investem em entidades qualificadas e inscritas na Receita Federal americana (IRS, na sigla em inglês), como deduções de impostos permitidas a doações nessas organizações sem fins lucrativos que tenham objetivos culturais ou sociais. Outro tipo de investimento comum são os fundos patrimoniais que permitem gerar vultosas arrecadações para essas organizações — essa costuma ser a opção dos bilionários americanos. A captação pode ser feita com os benefícios da isenção fiscal. Há também o National Endowment for the Arts, uma agência federal independente, que financia projetos artísticos pelos 50 estados americanos, catalisando apoio público e privado para o setor. Em janeiro deste ano, por exemplo, a NEA anunciou US$ 57,7 milhões para 567 organizações artísticas para ajudar o setor de artes e cultura a se recuperar da pandemia.

Os demais incentivos fiscais do governo são mais destinados a estímulos econômicos. “No campo da cultura, os mais conhecidos talvez sejam os incentivos às atividades audiovisuais que acontecem nos estados americanos”, afirma Fábio de Sá Cesnik, advogado especialista em cultura e sócio do escritório CQSFV com filiais nos EUA. Ele explica que os incentivos de produção audiovisual atraem produções cinematográficas com políticas de reembolso de um percentual gasto pelas produtoras durante as filmagens. Isso faz com que haja uma maior atividade econômica nas regiões onde filmes e séries são rodados.

Para se ter uma ideia do potencial dessa política, a Califórnia movimentou US$ 21,9 bilhões e arrecadou US$ 961,5 milhões entre 2015 e 2020 com uma lei de incentivos fiscais a produções culturais. Por outro lado, deixou de movimentar quase US$ 8 bilhões em atividade econômica e de arrecadar mais de US$ 350 milhões em receita para os cofres públicos ao recusar projetos de cinema e TV que optaram por filmar em outros lugares.

Terão achado o túmulo do Bluetooth?

Poucos povos medievais ocupam tanto espaço no imaginário quanto os escandinavos — e não à toa, num período de dois séculos e tanto, os saques vikings foram a principal causa de horror em quase todo o continente europeu. Ainda assim, mal conhecemos os grandes líderes vikings. Foram três. O mais antigo, Ragnar Lothbrok, é daquelas figuras do passado que muito provavelmente existiram, são lendas demais sobre ele, mas nenhum documento histórico o comprova. É ele o protagonista da série Vikings (na Netflix), produzida pelo History Channel. Há também dois outros — Harald Blatand, ou Dente Azul, e seu bisneto, Cnut, o Grande, ambos reis da Dinamarca. Sobre Cnut sabemos um bocado — sobre Harald há alguns documentos, muitas histórias, poucos detalhes. Se o arqueólogo polonês Marek Kryda estiver certo, porém, um imenso avanço ocorreu na semana passada e um mistério de mais de mil anos está próximo de ser desvendado.

Kryda afirma ter encontrado o túmulo de Harald (PDF) no solo abaixo de uma pequena igreja católica no vilarejo de Wiejkowo, bem próximo da fronteira alemã, e não longe da Dinamarca. A primeira pista surgiu em 2014, quando uma menina polonesa de 11 anos mostrou a seu professor de história um disco de ouro côncavo, cinco centímetros de diâmetro, com de um lado uma cruz e, do outro, uma inscrição misturando latim e a linguagem em runas dos vikings. Harald Gormson, rei dos dinamarqueses, escandinavos e de Jomsborg. Os especialistas logo afirmaram que a medalha não só era original como se referia ao rei cujo dente morto, azulado, se tornou apelido — um artefato tão importante que ganhou artigo próprio na Wikipédia. Ao tentar traçar a história de como a relíquia havia sido encontrada umas tantas gerações antes, terminaram na igrejinha.

Não é uma construção antiga — foi erguida em meados do século 19 no local de outra igreja. O disco havia sido encontrado na cripta, o subsolo da capela original, que já não existe faz muito. Sem violar o templo, não é possível chegar lá. Mas, nos últimos anos, a equipe de Kryda fez o que pôde. E o estudo de fotografias de satélite os aproximou da descoberta. Pois a igreja fica no alto de um pequeno morro que, visto de cima, é regular como a natureza não faz. Tem todas as características de um morro para túmulos.

Quando Harald morreu, entre 985 e 986, os nobres vikings haviam retomado uma tradição mais remota de construir criptas de madeira para serem enterrados com seus objetos. Após a cerimônia, esses espaços eram cobertos por pedras e terra, como um pequeno morro artificial.

A igreja de Wiejkowo está sobre um túmulo viking. Um túmulo viking onde se encontrou uma medalha com o nome de Harald que ingleses e americanos chamam Bluetooth.

Uma das incertezas a respeito de Harald é a respeito de sua conversão ao cristianismo — há testemunhos de que ele teria sido o primeiro rei viking cristão. É o que indica também a cruz na medalha. Mas o tipo de enterro confunde. A cripta e o morro seguem o ritual da velha religião, quando os grandes líderes levavam suas posses para que Odin, o principal dos deuses nórdicos, os carregassem para Valhalla — o melhor destino para um guerreiro na vida além morte. Filhos e netos de Harald eram certamente cristãos. Mas ele teria sido, portanto, enterrado como pagão? O fato de que a Igreja jamais o beatificou é um indício forte. O primeiro rei cristão da Dinamarca certamente teria sido feito santo na Idade Média.

Os indícios são fortes, mas novos estudos são necessários. Até lá, Harald ainda está conosco, anda conosco, não há viking mais importante no mundo. Não só teria sido o primeiro líder viking cristão como, e isto certamente, unificou os reinos da Dinamarca e da Noruega. Ligou-os. E, em sua homenagem, quando foi criada a tecnologia de conexão wireless entre aparelhos celulares, ela foi batizada Bluetooth. O ícone serrilhado contra um fundo azul não é aleatório. É a expressão dente azul em runas. As mesmas runas que aparecem no medalhão milenar.

Sarriá, 40 anos

Para sofrer com calma. Quarenta anos atrás, no dia 5 de julho de 1982, o Brasil vivia a Tragédia do Sarriá. A derrota para a Itália por 3x2 na Copa da Espanha. A eliminação no estádio de Barcelona. (Você pode rever, por sua conta e risco, o jogo na íntegra aqui. A narração é em inglês.) A tristeza da nação foi condensada na imagem de um garoto prestes a se derramar em lágrimas, na capa do Jornal da Tarde — e o menino até hoje é chamado a reviver seu desgosto nos aniversários da tragédia. A seleção de Telê Santana estava azeitadíssima, vinha sendo preparada havia três anos. Toninho Cerezzo lembra como o time jogava “fácil”. Mas, conforme conta Zico, uma alteração deixou a equipe “torta”. O elenco de craques contava ainda com Sócrates, Falcão, Serginho Chulapa, Júnior... Mas o dia era de Paolo Rossi. Há quem defenda que Sarriá foi a maior tragédia do futebol nacional. Maior ainda que o 7x1, que completou oito anos no dia 8.

E, para encerrar, aqui estão os links mais clicados pelos nossos leitores na semana que passou:

1. YouTube: Ponto de Partida - Um século dos Dezoito do Forte.

2. BBC: O vício no TikTok explicado pela ciência.

3. Panelinha: Panzanella com berinjela assada.

4. G1: A história da Independência da Bahia.

5. YouTube: Ponto de Partida - Entendendo o Paradoxo da Tolerância.

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24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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