Edição de Sábado: Em busca da esperança perdida

Por Flávia Tavares e Pedro Doria

No dia em que tomou posse como presidente da África do Sul, Nelson Mandela se apresentou de terno azul, camisa branca, lenço da mesma cor cuidadosamente posto no bolso. A gravata cinza, amarrou-a num Windsor duplo. Seu discurso não durou dez minutos e ele o leu de forma pausada, com o apoio dos óculos de aviador. Eram óculos de leitura mas preferia as armações com lentes grandes, tingidas num tom ocre que mantinham transparência mas o protegiam da luz. Durante seus 27 anos de prisão, trabalhou quebrando calcário, uma rocha sedimentar tão branca, que refletia o sol tão intensamente, de uma natureza química tão alcalina, que quando enfim deixou o cárcere estava gravemente fotofóbico e havia queimado as glândulas lacrimais a ponto de perder a capacidade de chorar. O líder sul-africano passaria o resto da vida com vermelhidão nos olhos e em busca de ambientes com penumbra. “Cada um de nós está tão intimamente conectado ao solo deste país quanto os jacarandás de Pretoria e as árvores mimosas da savana”, afirmou. “Formamos uma nação arco-íris em paz consigo e com o mundo.” Mandela confirmava ali a visão de futuro para a nação que já havia seduzido o eleitorado. Ele foi eleito para entregar a nação arco-íris em que o convívio de pessoas com cores de pele diferentes seria possível.

Uma visão que permitia esperança.

As duas coisas, visão de futuro e esperança, caminham juntas na política e levam a melhores resultados quando encampadas por um líder. O encontro deste trio — visão de futuro, esperança e líder — não é trivial de promover. Mas, quando ocorre, é capaz de inspirar, unir gente o bastante numa sociedade e gerar força para transformação. Nesta edição de Sábado, o Meio lembra a história de dois líderes que foram capazes de produzir este efeito. Nelson Mandela é um. Assim como também o brasileiro Tancredo Neves. Esperança parece algo vago, mas não é. Não em filosofia política. E o que há na ausência de esperança é desespero. Este é o estado em que boa parte do mundo se encontra hoje. Estamos sem bússola. O estado de desorientação nos tira a capacidade de imaginar o futuro pessoal, o que gera angústia. Tampouco conseguimos imaginar um futuro coletivo. Não sabemos o que esperar da economia, estamos sem acordo a respeito do que é comportamento aceitável em sociedade, nossos valores tão distintos distanciam mais do que aproximam.

O Marquês de Condocert, filósofo do Clube dos Trinta da Revolução Francesa, depois renegado pelos parceiros revolucionários, acreditava que a humanidade caminhava para o progresso. Que se desenvolveria política e moralmente. Era, claro, um iluminista e, por isso, racionalista. Essa crença na evolução se baseava, para ele, na “quase certeza” oferecida pela História. Na garantia de igualdade de direitos a todos os cidadãos, o que lhes daria condições de buscar o conhecimento necessário para promover esse ciclo virtuoso de progresso. Sua esperança já tinha por âncora uma visão de futuro.

Seu contemporâneo alemão, Immanuel Kant, listava três questões que via como fundamentais na filosofia: O que posso esperar? O que posso saber? O que devo fazer? É essa tríade que sustenta a ideia de ação política baseada na esperança bem informada. E está ali a mesma ideia de Condocert — a de que há progresso histórico e que isso motiva esperança. A partir do que sabemos temos noção do que podemos esperar e, assim, compreensão do que é preciso fazer. Ao longo do tempo, surgem oportunidades para que agentes políticos sejam nobres o suficiente para levar a cabo os ideais de igualdade e liberdade da revolução. Ou estarão sujeitos a uma nova onda revolucionária. Essa noção de uma esperança individual em favor da sociedade dá sentido ao contrato social, ao seguimento de regras. À convivência política.

Quando se vislumbra um futuro em conjunto, e se compreende que só por meio de ação política ele será alcançado, ganha-se também a noção de responsabilidade para que esse futuro aconteça — e isso vale tanto para governantes quanto para eleitores. É um equilíbrio difícil. Há quem diga que as pessoas mais atraídas ao poder são as menos preparadas para exercê-lo. É aí que entram as instituições, e a confiança nelas, como elemento fundamental desse mecanismo. Como ferramenta de guia e contenção para que líderes e liderados mantenham-se fiéis ao acordo. Recuperar a confiança e a esperança em líderes e instituições é uma tarefa imediata.

Mandela

O regime do Apartheid foi instaurado na África do Sul em 1948. Sua intenção declarada era de separar os povos que viviam no país para que cada um se desenvolvesse em separado. Na prática, criou-se um sistema no qual a maioria negra era mantida em guetos, propositalmente deseducada e na pobreza, enquanto os brancos se isolavam cada vez mais com medo de uma explosão social. Um regime assim simbolicamente violento só pode se sustentar mantendo o controle social com violência física. Nelson Mandela, um dos líderes do Congresso Nacional Africano, era um advogado e ativista preso em 1962 por incitar rebelião. Da prisão, por 27 anos, escreveu cartas longas e reflexivas. Quando finalmente foi solto, em 1990, a população sul-africana sequer tinha ideia do que esperar de seu rosto. Fotografias haviam sido proibidas, não havia qualquer registro de quanto ele tinha mudado. Aquele homem barbado, bochechas proeminentes, cabelo dividido em dois e cortado rente no julgamento havia sido substituído por outro, de uma marcante cabeleira grisalha e rosto emagrecido. Quase sempre com os olhos miúdos, apertados.

Mandela foi solto por ordem direta do presidente Frederik Willem de Klerk, que em oposição a seu próprio partido havia decidido promover o fim do Apartheid. Naquele mesmo momento, ditaduras ruíam na América Latina e, na URSS, Mikhail Gorbachev ainda tentava reformar para salvar o sistema comunista. De Klerk compreendeu o espírito do tempo e apostou que, se tomasse a iniciativa de promover a abertura, conseguiria manter alguns dos privilégios para os brancos. Para Mandela, que havia passado décadas em isolamento e com o contato com o exterior mediado por cartas controladas e censuradas, tudo era um desafio. Em 9 de fevereiro de 1990, o prisioneiro político foi levado de encontro ao presidente para negociar sua soltura, que ocorreria no dia 11. Mandela quis mais tempo para organizar, não ganhou. E ouviu de De Klerk um pedido. Que controlasse a raiva do povo.

Pois em dois dias, sem ter tido espaço para qualquer organização, Mandela estava perante uma multidão na praça em frente à prefeitura, na Cidade do Cabo. Dois dias antes não sabia que teria liberdade e agora precisava discursar para centenas de milhares de pessoas. Precisava, também, ganhar poder de barganha sem implodir o país. “Saúdo vocês em nome da paz, da democracia e da liberdade”, ele disse. “Hoje, a maioria dos sul-africanos, brancos e negros, reconhece que o Apartheid não tem futuro. Foi encerrado por decisão das massas. Esperamos muito tempo por nossa liberdade.” Isolado em reflexão, Mandela havia se tornado um líder político hábil. No discurso, apontou para a democracia como caminho. Deixou demarcado para quem estivesse assistindo que tinha consigo o poder das massas e que liberdade não seria negociável. Mas que queria paz numa África do Sul compartilhada por brancos e negros.

Houve mortes nos quatro anos seguintes até sua posse como presidente, em maio de 1994. Houve brutalidade policial. Houve briga, raiva. Mas Mandela e De Klerk não deixaram de conversar e negociar um único momento, ambos trabalharam para que uma Constituição nova fosse criada de forma a transformar o país numa democracia. O partido de Mandela, o ANC, recebeu quase 63% dos votos contra 20% do Partido Nacional de De Klerk.

“Lembre-se de que esperança é uma arma poderosa”, escreveu Mandela a sua então mulher Winnie, em 1969. Esperança era um tema sobre o qual pensava. Ele compreendia que ela vinha de uma visão clara de futuro comum que fosse capaz de mobilizar gente o bastante. É esta ideia de futuro, que ele sempre desenhava em seus discursos, que despertava esperança. Esperança une a sociedade. E um líder hábil é capaz de canalizar esta força.

Tancredo

O que Tancredo de Almeida Neves, um político mineiro conservador e tradicional, sempre teve foi dignidade. Foi o primeiro a entrar no quarto de Getúlio Vargas, de quem era ministro da Justiça, na manhã de seu suicídio. Não era ligado a Getúlio, foi parar no cargo por sua conexão com Juscelino Kubitschek num acordo político. Mas seguiu leal ao presidente que serviu até a morte. Em 1961, negociou e impediu um golpe militar, logo após a renúncia irresponsável de Jânio Quadros, tornando-se um dentre os três primeiros-ministros que o Brasil teve no período republicano. Estava em plenário no Congresso Nacional gritando “canalha” contra os golpistas em março de 1964. Um político conservador que defendia a presidência do presidente mais à esquerda que o país jamais tivera. De certa forma, ele havia se tornado em vida o líder perfeito para conduzir a volta do Brasil à democracia.

Não à toa. Entre 1976 e 77, o país perdeu ao mesmo tempo seus três principais líderes do período anterior à ditadura — JK, Jango e Carlos Lacerda. Na ausência dos três, ninguém tinha a experiência de Tancredo. Ao mesmo tempo, assim como De Klerk faria na África do Sul, os militares tentavam aproveitar de uma situação em que ainda tinham poder para determinar os rumos que a democratização tomaria. O primeiro passo foi reimplementar o pluripartidarismo antes da abertura, para que a oposição se fragmentasse e se perdesse em conflitos internos. A Ditadura também trabalhou para esvaziar as referências que vinham do passado. Fez isso de muitas formas, uma delas forçando em lei que todas as novas legendas precisariam começar com P, de partido. Desta forma, o MDB que representou por anos o enfrentamento do regime teria de se apresentar com um nome menos familiar ao eleitor. PMDB. E a antiga UDN, o partido da classe média urbana, não poderia renascer. Sobraria o PTB, de Getúlio e Jango, que tinha por herdeiro legítimo Leonel Brizola. Armaram para arrancar dele a sigla.

O grande político tem em si uma capacidade de sintonizar a sociedade. Sente no vento suas transformações lentas. Percebe quais seus valores, seus anseios. Pode ser da intuição que conversas na rua provocam, pode vir na forma de pesquisas, um misto. Os melhores políticos constroem a partir desta percepção. São capazes de inspirar, de pegar uma onda de mudança no instante exato, até mesmo de a moldar. Ainda assim, compreendem que há limites.

No dia 31 de outubro de 1975, oito mil paulistas tiveram de enfrentar o medo para ouvir, na Praça da Sé paulistana, D. Paulo Evaristo Arns, o rabino Henry Sobel e o pastor Jaime Wright numa celebração da vida do jornalista Vladimir Herzog, assassinado sob tortura na semana anterior. Em 25 de janeiro de 1984, quase nove anos depois, 1,5 milhão de pessoas se encontraram na mesma praça. Não havia medo e sim felicidade. No palanque montado com uma estrutura de tubos de aço e compensado, o amarelo era a cor dominante. Ao fundo, em uma grande placa se inscrevia, em verde, Eu quero votar pra presidente. A multidão erguia bandeiras de clubes de futebol e do estado de São Paulo, bandeiras brasileiras várias, faixas amarelas muitas e as cores de partidos. Convocados sempre por Osmar Santos, o popular locutor esportivo da Rádio Globo local, se intercalavam ao microfone artistas e políticos, às vezes com discursos breves, outros mais longos. Franco Montoro, Orestes Quércia, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, Luiz Inácio Lula da Silva, Teotônio Vilela, Ulysses Guimarães e, claro, Tancredo Neves. Aqueles comícios pelas Diretas Já se repetiram em inúmeras capitais brasileiras e costumavam se encerrar com Fafá de Belém cantando o hino nacional e ao fim, com as mãos, soltando no ar uma pomba branca.

Mas, para chegar ao momento de êxtase do comício das Diretas na Praça da Sé, foi preciso costurar para reunir a oposição que a Ditadura havia separado. Essa divisão da oposição permitiu que, embora eleito, o Congresso Nacional que decidiria pela realização de eleições diretas para presidente em 1984 fosse ainda dominado pelo PDS governista. Ou seja, a emenda constitucional não passou.

Como líder, Tancredo precisou gerenciar múltiplas forças simultaneamente.

A visão de futuro estava lá — da democracia nasceria um país mais justo, sem fome ou inflação, com educação e saúde públicas de qualidade. São, por isso mesmo, as promessas inscritas na Constituição de 1988. A esperança era imensa e se materializou nas multidões que se espalharam pelo Brasil pelas Diretas Já. Mas era preciso, perante a frustração da derrota da emenda que permitiria as eleições para presidente, canalizar esta esperança. Pois, na ausência de eleições diretas, a candidatura de Tancredo Neves incorporou a esperança para um futuro melhor. Sem Diretas Já, Tancredo para presidente mobilizou a sociedade.

Mas era preciso articular uma maioria que garantisse sua eleição no mesmo Congresso que havia derrotado as Diretas. Tancredo conseguiu usar a mesma arma que os ditadores haviam dominado — explorou as divisões entre os governistas, atraindo gente como os governadores baiano Antônio Carlos Magalhães e pernambucano, Marco Maciel. Atraiu até o presidente do partido governista, José Sarney. Que virou seu candidato a vice. Como Mandela, Tancredo usava a força que havia ganhado com o apoio popular, e oferecia espaço na mesa de negociação. Dividia poder.

Quando finalmente foi eleito, fez seu último discurso público no plenário da Câmara dos Deputados. “Não vamos nos dispersar”, disse. “Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão.”

Havia militares que ainda articularam, até o último minuto, impedir o fim do regime de exceção. Não aconteceu porque a sociedade brasileira estava mobilizada perante uma causa comum. Porque havia esperança. Porque havia uma ideia de país sendo promovida. E aquilo era sólido porque um líder havia organizado e canalizado estas forças a ponto de representa-las.

Desesperança

Um entendimento equivocado de esperança pode alimentar delírios coletivos, insensatez. Pode levar nações a escolhas bélicas, criminosas, contra outras nações ou seu próprio povo, tudo em nome de se entregar um ‘futuro melhor’, muitas vezes em nome de um passado idealizado — algo que a própria História já mostrou possível. Pode-se argumentar, inclusive, que os aspectos positivos da esperança política são privilégio de poucos grupos. Há aqueles que têm a esperança tão somente de sobreviver ao próximo dia. A vacina para a manipulação ou a elitização da esperança está precisamente na ciência e na política, no encontro de um senso comum do que se espera desse futuro. E, eventualmente, aparecem líderes capazes de sintetizar aspirações diferentes numa visão coesa, como a da Nebulosa Carina.

Esta semana, pelas imagens capturadas pelo telescópio James Webb, testemunhamos pela primeira vez um berçário de estrelas. Imagens que, simultaneamente, nos transportam para 13,5 bilhões de anos atrás, quando essas estrelas nasceram na Nebulosa Carina, e remetem a um futuro que desconhece limites. As primeiras fotos do James Webb, divulgadas pela Nasa, são mais do que esteticamente deslumbrantes. Elas oferecem um vestígio de sonho em tempos sombrios. O melhor tipo de esperança possível: a promovida pelo avanço científico e pela grandeza de que a humanidade é capaz quando idealiza um futuro com um pé fincado na razão e outro na ação.

Não está fácil sonhar. No plano individual e no coletivo, há desalentos incalculáveis. Do colapso climático à pandemia. Do desemprego ao racismo. Da fome à violência contra a mulher. O ressurgimento, ou fortalecimento, de ideais supremacistas, reacionários, desumanos. Tudo isso oprime e torna quase ingênuo falar em esperança.

Mas Nelson Madela estava certo. A esperança é uma arma poderosa. Ela nasce de uma visão de futuro que sejamos, todos, capazes de compartilhar. Aí, quando um líder é capaz de articular ambas no entorno de ideais democráticos. Nesses momentos, algo acontece.

Um gay com Bolsonaro

Há quatro anos, três em cada dez brasileiros LGBTQIA+ declararam intenção de votar para que o então deputado Jair Bolsonaro ascendesse à cadeira da Presidência da República. Àquela altura, Bolsonaro já havia proferido frases homofóbicas do calibre de “se o filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um couro e ele muda o comportamento”; “seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”. Bolsonaro nunca escondeu o que pensa sobre esse público.

Ainda assim, movimentos LGBTQIA+ que apoiam o presidente têm ganhado milhares de seguidores nas redes sociais. Para entender o que defendem, o Meio conversou com Dom Lancellotti, fundador do movimento Gays com Bolsonaro. Por meio da página e de seus perfis pessoais, ele dialoga com mais de 200 mil seguidores. Descrevendo-se como gay, cristão e conservador, Dom, advogado de 33 anos nascido na periferia de Fortaleza, aposta que o pleito deste ano contará com mais votos da população LGBTQIA+ para reeleger Bolsonaro. Acompanhe os principais trechos da entrevista.

Como surgiu a ideia de criar o Gays com Bolsonaro?

Cresci avesso às questões políticas porque, desde a escola, somos ensinados que político não presta. Mas me interessava por entender como o mundo funciona, as relações entre países. Na faculdade de Direito, passei a me interessar pela política dos Estados Unidos. Sempre fui fã de Trump na questão empresarial e nunca fui de esquerda porque, desde que me conheço como gente, me coloco contra tudo. Então, acompanhando Trump, acabei me aproximando de alguns movimentos LGBT americanos, como o Gays For Trump e o Log Cabin Republicans, gays conservadores do Partido Republicano. Fiquei amigo, trocava figurinha com os caras. Bolsonaro estava surgindo na mídia, começava a participar de programas como CQC, Luciana Gimenez… Guardei a ideia de montar um grupo como ‘Gays de Direita’, mas faltava alguém que reunisse tudo aquilo que acreditávamos em relação às pautas de liberdade, de livre mercado. Em fevereiro de 2018, vi que Jair seria candidato. Assim, criei o Gays com Bolsonaro no escurinho do meu quarto em Bom Jardim, um dos bairros com o menor IDH de Fortaleza.

Como foi o processo de se entender gay?

Ah, foi muito difícil. Esses homossexuais vitimistas vêm me atacar achando que foi fácil. Me chamam de ‘gay riquinho, padrãozinho’, mas não sabem do que eu passei. E nem faço questão de dizer para eles, porque com essa galera não tem conversa. Foram muitas brigas dentro de casa e, antes de tudo, eu não me aceitava. Com 15, 16 anos, chorava todos os dias. Pedia para Deus me levar, me “consertar”. Até brinco que era uma auto-cura-gay. Nossa, aquela fase em que todos os seus amigos saem com meninas e você acaba saindo também. Mas é um aprendizado a cada dia. Fui criado em uma família protestante, humilde. Mesmo com aquela dor na alma de me ver como um pecador, eu vivia dentro da igreja. Ajoelhava e orava: “Deus, o senhor me fez assim. Eu estou aqui, tá doendo, não tô entendendo. Mas tô aqui.” Passei quatro anos assim. Tentei suicídio duas vezes. Com 20 anos, me apaixonei por um garoto na faculdade. Foi toda essa bagagem que eu já tinha com minha sexualidade que me deu forças para contar para a minha mãe. Aí pronto, o mundo desabou. Só que existe uma coisa que se chama tempo. Com meu pai foi três vezes mais difícil. Hoje está tudo bem, mas levou um tempo.

Por que você não se sente representado pelo movimento LGBTQIA+?

O movimento LGBT perdeu a mão. Começou com uma ideia muito boa lá em 1860, de descriminalizar a homossexualidade em vários países da Europa. Se pegarmos uma carta do Karl Maria Kertbeny, que foi advogado, escritor e um dos primeiros ativistas do movimento, em 1869, quando ele está discutindo no Congresso contra um artigo do código penal alemão que criminalizava atos de sodomia, como se falava antigamente, nesta carta, ele diz bonitinho: “o Estado não tem nada a ver com a vida do indivíduo. Vocês não têm que regular com quem ninguém se deita dentro de quatro paredes”. O movimento LGBT esqueceu que no Oriente Médio, todos os dias, homossexuais são mortos, atirados de prédio e proibidos de sair de casa. Na China, os trans vivem como animais escondidos do Partido Comunista Chinês. E cadê o movimento LGBT? Está aqui no Brasil, na Ri Happy, querendo sexualizar as crianças. Isso me dá muita raiva. Jamais vou dizer que quero destruir o movimento LGBT, pelo contrário. Queremos um novo movimento LGBT. Não é empurrando ideologia de gênero e sexualizando as crianças que vamos mudar as coisas.

Existe preconceito contra LGBTs no Brasil?

Não estou negando a existência de preconceito no Brasil. A violência no Brasil existe, mas a violência não escolhe vítima pela sexualidade. Esse papinho de que “Brasil é o país que mais mata LGBT” é mentira! Fake News! Dados forjados. Até crime passional entrou nessa conta deles. É narrativa de uma ONG de esquerda, faz anos que falo disso, com dados, em todas as minhas redes sociais. O movimento LGBT deveria estar preocupado em apontar soluções para o preconceito mas, com essas pautas imorais, mentirosas e sem sentido, só atrapalha a vida dos homossexuais e causa ainda mais aversão das pessoas.

Nota do Meio: O Brasil teve 300 mortes violentas de LBTQIA+ em 2021, entre homicídios e suicídios, de acordo com o Grupo Gay da Bahia. Foi o país que mais matou trans e travestis no mundo em 2020, segundo as Nações Unidas.

Como você enxerga as falas agressivas de Bolsonaro em relação a LGBTs?

Meu pai tem quase a mesma idade do Jair. Tudo que Jair disse já ouvi do meu pai. Assim que me assumi, estava com meu pai no carro e pensei que a gente fosse morrer, ele acelerava e gritava: ‘prefiro ter um filho morto do que um filho gay. Eu não aceito. Filho meu é homem’. E eu respondia: ‘pai, sou homem. Só sou homossexual. Não vai mudar nada’. Jair e meu pai foram criados na mesma época, com as mesmas ideias, sem conhecimento sobre determinadas coisas. Além disso, tinham como referência a promiscuidade que o movimento LGBT virou. Eu entendo completamente que um tiozão do pavê, como meu pai e o presidente, tenha esses pensamentos. Isso não significa que a pessoa não possa mudar. Em 2010, quando revelei minha homossexualidade, meu pai queria que eu morresse. Já meu pai de 2022 estava no meu casamento, abraçando meu marido, chorando. Ele e o presidente pensavam que todo homossexual era aquela promiscuidade, até que conheceram homossexuais que não se fazem de coitados. Há um mês, nós nos casamos numa sexta e no domingo falamos com o presidente. Jair falou a coisa mais fofa: ‘desejo que sejam felizes, que Deus abençoe a vida de vocês’. Fico feliz que os fatos e números provam o contrário porque, em 2018, 30% dos homossexuais votaram em Bolsonaro. Tenho certeza que neste ano o número vai ser maior.

Como são seus encontros com o presidente?

São maravilhosos. Ele realmente é ungido de Deus, sempre nos tratou bem. Falam em gabinete do ódio, mas quando nos encontramos, falamos sobre baboseiras, amenidades, ficamos dando risada como pessoas normais. Até fico meio assim porque, quando estamos juntos com o presidente, quem tenta puxar o assunto sobre política sou eu. O primeiro contato que tivemos com ele foi por meio da primeira-dama. Quando a página começou a bombar, ela nos chamou. Abriu as portas da casa dela. Tenho um momento emblemático para contar, o 7 de setembro. Estávamos em Brasília e Michelle nos convidou para almoçar. Passamos o dia com eles. Numa data emblemática do nosso país, uma manifestação gigante, eu estava ao lado do presidente vendo a história acontecer. O que eu sempre digo é que não fazemos o que fazemos por conta do Bolsonaro. É o que ele representa. Ele representa tudo aquilo que a gente defende, nossos valores – defesa pela liberdade religiosa, de expressão, de mercado, de legítima defesa, também somos cristãos. Poderia ser outra pessoa, mas casou de ser ele, o tiozão do pavê.

Como foram os bastidores do Sete de Setembro?

Nesse dia ele estava tão cansado que ficamos com pena de conversar muito. Ele ficava tomando o cafezinho e só dizia: ‘vamos aguardar, vamos aguardar’. Ficou conversando com a minha sogra, que fala pelos cotovelos. O presidente puxou o assunto de que o sogro dele também é do Ceará. Entre amigos, nós conversamos sobre trivialidades e as pessoas pensam que conversamos sobre ‘vamos fechar isso ou aquilo outro’. Mas esse dia ele estava exausto, falou por horas e horas. O pouco que puxei dele sobre política, dizia: ‘vamos aguardar’. Também ressaltava que aquela tinha sido uma data emblemática e histórica para o Brasil e que o que ele mais queria era ter uma foto. Uma foto que o mundo inteiro pudesse ver. Daí eu perguntei: ‘teve tua foto, homem?’. Ele morreu de rir.

Do inferno ao paraíso das bicicletas elétricas

“Eu quase morri”, disse minha esposa ao entrar em casa. Voltava do trabalho em São Paulo com a sua recém adquirida bicicleta elétrica. Tomou uma fechada de um ônibus e, espremida em uma dessas ciclovias de sarjetas mal pintadas de vermelho, quase foi parar debaixo das rodas de um biarticulado com 40 toneladas.

Ela, que tinha encontrado na bicicleta uma alternativa ao Uber nos seus deslocamentos diários pro escritório, não superou o trauma. Isso foi há 8 anos e o maior beneficiado dessa quase tragédia fui eu. Uhu! Ganhei uma bicicleta elétrica e passei a usá-la no meu dia-a-dia na capital paulista.

Mas antes de qualquer coisa, muito prazer. Meu nome é Wagner e sou o novo diretor de Marketing do Meio. Atualmente moro na Holanda, o paraíso das bicicletas. Agradeço muito a oportunidade de poder escrever sobre a revolução da eMobility que estou vendo se desenrolar por estes lados. Assunto que está nas prioridades do European Green Deal, mas que não se limita ao meio ambiente. A “mobilidade elétrica” promove transformações na saúde, acessibilidade, negócios e cultura.

Uma mão na roda

O maior apelo de vendas é o conforto. Em São Paulo, adotei a elétrica para me ajudar nas subidas da Vila Mariana. Com isso, venci a primeira barreira psicológica. Aos poucos fui ganhando confiança e adquirindo um preparo físico que me permitiu adotar a bicicleta tradicional. Meu cunhado herdou a elétrica velha de guerra, mas não conseguiu fazer muito proveito. A bateria já não durava tanto. Como era uma marca genérica, de um representante que importou unidades da China e depois faliu, tivemos dificuldades para substituir a peça e manter a bicicleta funcionando. De 8 anos para cá, houve evolução nesse sentido. A promessa de vida útil das baterias atuais é de mil recargas. A autonomia de cada recarga varia em média de 60km a 100km.

Segui firme na meta de ter na utilidade do transporte diário o benefício do combate ao sedentarismo. Criei até ranço das elétricas: menos exercício, caras e nocivamente descartáveis como lítio. Tanto que quando me mudei para a Holanda nem cogitei comprar uma. Afinal, o nome correto dessa área é Países Baixos. Então não seria pelo relevo que compraria uma opção tão mais cara. Mas o dia-a-dia me fez descobrir que existe uma razão para esse tanto de moinho na paisagem. Em dias de vento um pouco mais forte o tempo do meu trajeto diário, somando ida e volta, aumenta de 1 hora para 1 hora e meia. E fica muito mais desagradável. A pedalada assistida faz muita diferença.

A mobilidade elétrica muda nossa percepção geográfica e a relação com as cidades. Aqueles patinetes parrudos que encaram qualquer subida já são itens de primeira necessidade e congestionam as sete colinas de Lisboa. O aumento de autonomia transforma comunidades rurais, até então isoladas, em bairros mais afastados. O mercado de turismo já mergulhou na nova oportunidade. Roteiros cicloturísticos na França, antes acessíveis apenas para quem tem histórico de atleta, hoje podem ser percorridos por glutões apreciadores de bons vinhos.

Essa ajudinha do motor elétrico assume diversas formas que dividem o espaço civilizadamente nas ciclovias. eBikes e scooters compartilhados estão espalhados por toda parte. Triciclos para idosos distribuídos gratuitamente pelas prefeituras. O transporte familiar se resolve com “bicicletas baú” com capacidade para até quatro crianças. Transporte escolar? Sem problemas, há modelos que levam até 10 crianças. Os eBiciboys e as bicicletas de carga cortam a cidade entregando desde comida até eletrônicos grandes como TVs.

Magrelinhas sem graxa

Perfeitas para desfilar nas ruas do centro de Paris, que será fechado para carros a partir de 2024. Estar na moda é importante. Para conquistar mais público, as bicicletas elétricas precisam se tornar mais sedutoras. É a mesma lógica que fez a Tesla reinventar o mercado de carros. Design, performance e experiência do usuário precisam ser significativamente melhores para justificar uma mudança de comportamento.

Nesse sentido, não há interesse nos modelos tradicionais adaptados com motores padrão e aqueles tijolões de bateria na garupa. As grandes marcas de bicicletas européias estão comendo poeira das startups. Inclusive nos preços. Empreendedores que em 2019 estavam construindo os seus primeiros protótipos via crowdfunding e em 2021 já levantam US$ 182 milhões com grandes fundos de investimento.

Experimentei três destas novas marcas: VanMoof (€ 2.500), Cowboy (€ 2.800) e Tenways (€ 1.900). Todas são inacreditáveis. A começar pela ausência de graxa. Correia dentada de carbono, não precisa de derivados de petróleo para lubrificar. Não enferruja e proporciona um silêncio absoluto ao pedalar. Nenhum rangido atrapalhando a experiência sensorial de transitar por vias exclusivas, bem distantes de veículos pesados, poluentes e barulhentos. Freio a disco, câmbio automático, iluminação de segurança integrada ao quadro, sistema de travamento a distância e localização anti-roubo. Tudo combinado gera um conforto sem precedentes. A rotina do trajeto diário é transformada em pura contemplação da cidade ao seu redor.

A VanMoof e a Cowboy contam com aplicativo próprio e o smartphone pode ser usado como interface: sistema de navegação (otimizado para trajetos em ciclovia), indicador de saúde da bateria e estatísticas da pedalada. O celular é acoplado ao guidão com um case de proteção e recarregado, sem fios, enquanto você pedala. Tudo muito inteligente, mas prefiro a solução mais tradicional da Tenways: um computador de bordo com um discreto painel LCD. Não é bom depender muito do celular para interagir com a bicicleta. E nem ter que lidar com notificações pipocando na tela e frequentes atualizações de firmware. Sim! Firmware instalado em bike!

Pagando pra verde

A promessa é até 2035 não venderem mais veículos a combustão na Europa. Mas com isso vem um dilema: carro elétrico continua sendo carro (e caro). E traz muitas outras externalidades negativas além da poluição. Por isso, a Deloitte posiciona a bicicleta como elemento fundamental na difusão da “eMobility”. O estudo aponta que as vendas dobraram desde 2008. A solução desafoga o transporte público e desmotiva o uso do carro para trajetos curtos e médios. Também fizeram muito a diferença para contornar as restrições de mobilidade durante a pandemia.

Mesmo com um saldo final positivo, nada é perfeito. O problema das baterias, com sua sua vida útil limitada, processos de mineração agressivos e descarte complicado ainda é um karma negativo nessa compra. O conforto a mais justifica esse consumismo desnecessário? E esses modelos cada vez mais fashionistas e tecnológicos, programados para ficarem obsoletos em 4 ou 5 anos, como mais um de tantos outros gadgets? São Francisco de Assis, me livre dessa culpa.

e-Bike Sound System

Experiência cultural única para quem estiver em Amsterdam no próximo sábado, dia 23/7. Dois publicitários brasileiros, unidos pela missão de celebrar o legado do imperador Haile Selassie I, adaptaram um sistema de som em uma bicicleta elétrica de transporte infantil (de propriedade de um deles, o outro pedala uma VanMoof - a preferida dos diretores de arte). Tocam exclusivamente vinis de reggae roots e dub. Clima família, vibe tranquila. Só procurar a estátua do passarinho do Picasso no Vondelpak. Mais infos e outras datas no Instagram do Diamond Sound System Amsterdam.

Pedale para a Paz

Não poderia encerrar sem deixar a minha dica de passeio de bicicleta na Holanda. Coisa leve, 30km suavemente distribuídos ao longo de um trajeto perfeito até para quem está fora de forma.

Comece visitando o topo do Euromast em Rotterdam. Do alto de seus 185m, aviste a praia de Scheveningen no horizonte. É até lá que você vai conseguir pedalar!

Olhe para baixo e veja a entrada do grande canal de Delft, aos pés do Euromast. Escolha a sua elétrica favorita nos apps de compartilhamento ou locadoras especializadas. Dê o primeiro tiro de 15km seguindo pela ciclovia intermunicipal que margeia esse canal até Delft. Estique as pernas pela praça do mercado, coma um kaassoufflé, prestigie as pinturas de Vermeer e compre uma canequinha de café das famosas porcelanas azuis da família real.

Pronto pro segundo tiro de 12km até Haia, também por uma silenciosa ciclovia intermunicipal passando por vilarejos, pôlderes e numerosas estufas agrícolas. A próxima parada é o Palácio da Paz, sede da corte internacional de justiça. Acenda uma vela, mostre um cartaz, tire uma selfie… O ritual adotado fica pela crença pessoal de cada um, mas faça algo!

Respire fundo e siga em frente. Agora é só dar a última esticada de 3km até chegar ao bar do Grand Hotel Amrâth Kurhaus. Peça o drink de sua escolha e ofereça o primeiro gole para um santo: Rui Barbosa, a nossa Águia de Haia. Diplomata que, sem disparar um tiro, conquistou uma Ucrânia e meia para o Brasil em 1907. Hospedado neste mesmo hotel. Negociando naquele mesmo palácio. Na Paz.

E os mais clicados reforçaram essa semana que, em meio ao horror, há espaço para a beleza.

1. g1: Câmera registra momento em que bolsonarista invade festa para matar petista.

2. Olhar Digital: Metade dos brasileiros aceitam cookies sem saber o que fazem.

3. Washington Post: A primeira foto do telescópio espacial James Webb.

4. Youtube: Ponto de Partida – Bolsonarismo imita Estado Islâmico.

5. g1: E como votaram os deputados na PEC Kamikaze.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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