Edição de Sábado: Olho nu

“Se eu não tivesse criado meu mundo inteiro, certamente teria morrido no de outras pessoas.”
Anaïs Nin, escritora francesa, autora de Delta de Vênus

Pinceladas em tinta acrílica preta deixam seu olhar amendoado um tanto melancólico. A sobrancelha mais grossa do que é. O nariz quase inexistente. Seus traços são vigorosos, expressionistas. Pietra não está satisfeita com seu autorretrato no papel. Com as tintas, fica mais confortável captando outras mulheres. Ela mostra a tela com uma moça ruiva, cigarro em riste, forte. Suas musas na pintura são principalmente amigas, “mulheres que têm sua tristeza, que quase sempre não se veem da forma que são”. É uma obstinação de Pietra revelar alguma verdade das divas. A começar por sua própria. Na fotografia, sua arte primeira, a matéria-prima central é seu corpo. O erotismo. Mas, depois de mais de uma década dessa sexualidade contada pela lente alheia, ela agora se exibe a partir do próprio olhar. É soberana de sua imagem e história.

Não é uma conquista banal, gratuita. O custo foram anos de incômodo com a forma como o mundo, essencialmente o masculino, a estampava na mídia erótica. Pietra Príncipe conheceu cada fase recente dessa indústria. Foi e segue protagonista dela. Iluminada pelos raios que invadem seu apartamento em Ipanema, no Rio, pela janela em que mais gosta de posar para si, ela revisita essas etapas. As desgraças e as delícias. E o faz com humor, honestidade e uma capacidade de autoanálise que só uma mulher perto dos 40 anos, em pleno contato com sua vulnerabilidade e força, consegue fazer. Pietra é linda. Está linda. Copo grande de café na mão, camiseta larga, maquiagem leve, ela começa expressando sua alegria por conversar com uma interlocutora mulher, “finalmente”. Antes mesmo da entrevista, Pietra já havia feito uma importante distinção sobre seu trabalho. O que ela produz é erotismo, não pornografia. Combinamos de conversar cronologicamente, para perpassar, por meio de sua trajetória, as transformações no conteúdo erótico em diferentes plataformas — da TV às revistas ao OnlyFans. Sua história é também a história de como nossa comunicação mudou nas últimas duas décadas.

A era da TV a cabo

Vamos, então, para o início de sua carreira. Depois de se formar em Moda e trabalhar como maquiadora, aos 26 anos um amigo lhe sugeriu que fizesse um teste para um programa novo do canal a cabo Multishow. Sem saber da temática, ela foi. Era para o Papo Calcinha, em que quatro garotas falavam, sem qualquer censura ou constrangimento, sobre suas experiências sexuais. “Garotas, não. Mulheres. Sempre tive esse incômodo quando elas falavam meninas, garotas...” Pietra se refere a “elas”, as mulheres que dirigiam e comandavam o programa. Nesse ponto, ao menos, ela via algo positivo. Mas, mesmo sendo um ambiente predominantemente feminino, os clichês da sexualidade se impunham. Um pouco pela imaturidade das participantes. Outro tanto pelas escolhas de direção. Pietra define a estética do programa, que estreou em 2009: “aquele cenário ‘acapulco’, tudo meio rosa, muito ‘girly’, um take no pezinho, ‘ai, que bonitinha’, ‘vamos trazer uns cupcakes’. E a gente ali, falando de si, de sexo, ‘dei o cu’, ‘fiz e aconteci’”. Com seu imenso carisma, Pietra conduzia os debates e logo se tornou a líder na roda.

Foi um período em que o mundo redescobria o soft porn, consagrado nos anos 1980 quando esse tipo de filme era exibido nas madrugadas da TV aberta, e descobria o conteúdo erótico feito por e para mulheres. Mas tudo ainda embebido em ideias bastante antigas do que uma mulher quer e faz no sexo. As conversas no Papo Calcinha eram explícitas. As participantes entendiam o apelo do programa. Usavam roupas provocantes e descreviam suas transas de forma a projetar imagens de aventureiras, bem resolvidas. “Hoje, eu acho um pouco bizarro. A gente era super machista na época, embora se achasse muito revolucionária. Mas era um retrato. Foi um retrato muito bem feito.” Pietra confessa que, ao se envolver com o programa, tinha um certo nível de ingenuidade. Não tinha qualquer expectativa sobre o impacto que ele teria em sua vida. Porque simplesmente não gosta de televisão, não assiste. Então, surpreendeu-se quando aquele quadro de 15 minutos que ia ao ar de segunda a sexta, tarde da noite numa emissora a cabo, transbordou o nicho do entretenimento adulto.

Pietra foi convidada a ir ao Silvio Santos, a dar entrevista para Jô Soares. Esse papo, inclusive, revela muito do tom do programa, da mentalidade das apresentadoras e do que se entendia por sexualidade feminina na época. Um Jô performático diante da beleza estonteante de Pietra e Luhanna, sua companheira de Papo Calcinha, assiste a um trecho de um debate sobre sexo oral. O público delira com a candura com que as apresentadoras narram seus prazeres, sempre com uma pitada a mais de libertinagem do que o habitual em círculos tradicionais. Pietra usa um vestido tubo preto colado, meia preta e um salto... rosa. Cabelos ultra platinados, fetiche de boa parte dos homens. Sua voz e postura tem um quê de infantilizadas, de mulher tornada menina mesmo. Ainda assim, havia naturalidade no seu relato. “Esse assunto é muito interessante para mim. Eu tenho prazer. A minha primeira relação já foi prazerosa. Justamente porque eu nunca tinha visto um pornô, foi tudo bem normal. Então, falar disso era normal pra mim e continua sendo. Por isso, eu sei que isso hoje permeia toda minha arte, está no viés de tudo meu.”

Essa normalidade que Pietra atribui ao início de sua vida sexual destoa do relato íntimo que ela faz em seguida. Criada na classe média alta carioca, ela estudou em escolas católicas e cresceu, em suas palavras, num ambiente familiar “bem confuso, sexualizado, com coisas pesadas, difíceis, eu jogada nos cantos”. Pietra repete a palavra solidão algumas vezes. Foi esse contexto, que ela faz questão de frisar constantemente como parte de um privilégio de alguém com grana, que atiçou sua criatividade e a maneira como ela desenvolveu seus afetos e relações. Isso inclui a sexualidade. A opção de se expor na TV foi para se “aventurar”. “Ah, vou ali instigar, vamos gravar e depois acaba”, ela pensava. Na segunda ou terceira temporada, essa naturalidade do programa foi se perdendo. “O negócio começou a criar um toque de caixa, tinha uma organização que atrapalhava a verdade.” Pietra via no Papo Calcinha um valor documental, uma importância para que outras pessoas se sentissem à vontade para se expressar também. Algo se perdeu.

A revista icônica

Uma mulher falando de sexo na TV atrai, instantaneamente, os olhos sedentos das revistas masculinas. Pietra começou a ser assediada a posar nua. Bem antes de ir para o Multishow, ela já amava fotografias. Quando maquiadora, já havia feito, com um amigo fotógrafo, fotos suas — e hoje, revisitando-as, acha as imagens “boas, com qualidade”. Mas pressentia que, numa revista masculina, ela desapareceria. As pautas dessas publicações tendem a ser reducionistas, no mínimo. “Podia fazer com o fotógrafo mais chique que tinha, que todo mundo ama, ficava uma merda. Um chegou pra mim um dia e reclamou que eu era muito dourada. Então, ele só me imprimia em preto e branco. Diz muito sobre os homens e o mercado dos homens fotógrafos. Ele ficava com raiva, tinha irritação com a minha imagem, dava pra perceber a frustração. Eu fico travada na frente deles, porque se não sinto confiança eu travo.”

Mas havia um convite que seria irrecusável. A Playboy ainda tinha, para ela, um ar icônico. A revista criada há quase 70 anos por Hugh Hefner, com dinheiro emprestado de sua mãe e seu irmão, é um inesgotável símbolo da indústria adulta e da contracultura dos anos 1960 e 1970. Em suas páginas, além das fotos de mulheres seminuas e nuas, estavam obras de gigantes como Vladimir Nabokov, Margaret Atwood, Haruki Murakami. Colunas em defesa dos direitos de mulheres, da população LGBTQIA+, pró-maconha. Daí, a piada não totalmente infundada de que se comprava uma Playboy pelos textos, não pela nudez. Evidentemente, produto de seu tempo, a revista era, acima de tudo, uma publicação de conteúdo erótico voltada para homens, com tudo que isso implica. Ainda assim, a aura construída em torno da Playboy cativava Pietra.

A primeira edição da revista americana foi em dezembro de 1953 e trazia Marilyn Monroe na capa e no pôster central. Aquele esplendor todo de mulher sobre um veludo vermelho. Síntese da volúpia. Pietra pensou nela quando decidiu posar para a Playboy em 2013, depois de dois anos de sondagem dos editores. De uma forma que mistura admiração, melancolia, pragmatismo e incertezas. “Pensei: a Marilyn Monroe fez. Mas agora ela está morta. Bom, mas o Hugh Hefner pagou o caixão dela. E quando você assina com a Playboy faz um contrato vitalício para todas as gerações. Quem sou eu para dizer o que as próximas gerações...”

Esse fluxo mental que Pietra percorre é o de quem, mesmo acostumada a se expor, tem dúvidas em dar um novo passo. Em mudar o eixo. E, em retrospecto, ela se frustra com o que considerava que poderia ser um erotismo artístico numa publicação mainstream. Seu ensaio na Playboy é um abismo de distância do que ela quer exibir. “Foi legal, mas não ficou do jeito que eu queria. E eu tinha que falar com fulano, cicrano, almoços, aquele ambiente corporativo estava me agredindo um pouco.” Embora elogie a “maravilhosa” fotógrafa Autumn Sonnichsen, Pietra se viu colocada num cenário, estática, com um monte de joia, como “um york de pet shop que acabou de tomar banho”, em São Paulo. “As fotos boas eu estou no helicóptero, não dá nem para ver minha cara. Mas estou feliz. De novo, na aventura. Eu não gosto de posar parada, não sou modelo. Sou mais, talvez, diretora, atriz.” Pietra não parece se arrepender. Acha que ali, na Playboy, na decisão de ser playmate, que “fica legal no book da vida”, começou algo bom para si. Passa, então, a falar de Norma Jean, a mulher por trás do ícone Marilyn. “Norma Jean está morta. Então eu acordo. Não tem ícone. Eu entendo. A partir de agora, vai ser minha arte.”

Eu, pixelada

Pietra Príncipe é definição ilustrada de como meio e mensagem se confundem e se fundem. Marshall McLuhan, pai das principais teorias de comunicação do século 20 — e visionário sobre o que viria no século seguinte —, parece ter desenhado parte de seus conceitos olhando para ela. “A mensagem de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ritmo ou padrão que introduz nos assuntos humanos”, diz McLuhan em Understanding Media. “A ferrovia não introduziu movimento, transporte, roda ou estrada na sociedade humana”, mas acabou criando tipos totalmente novos de cidades, de trabalho e lazer. Da mesma forma, a internet não originou o erotismo, a pornografia. Mas acelerou e ampliou as escalas em que essas funções e relações se desempenham. E suas consequências.

Pietra já havia feito TV a cabo, ido a programas de emissoras abertas. Faria depois ensaios nus em revistas impressas. Mas entendeu o que era vulgaridade e como se poderia distorcer mesmo o conteúdo de seu trabalho na internet. Com tímida presença em redes sociais, ela viu um vídeo seu do Papo Calcinha viralizar no YouTube. Era um trecho em que se debatia o batido “engole ou cospe”. Estava ela de roupinha azul no cenário “acapulco” falando de como gostava de fazer sexo oral. “Foi meu primeiro contato com a porrada que era a internet. Eu não tinha noção. Começaram as primeiras represálias. Até ali, estava tudo ótimo porque a televisão te protege. Naquela época, não existia a profissão influencer, não tinha isso de vender produto em rede social.” Pietra se assustou, mas persistiu. Decidiu não dar mais Google em seu nome, nunca ler comentários de nada, e seguir. Depois de posar para a Playboy, fez alguns outros programas no Multishow, em que foi desafiada a decidir se queria ou não ser uma musa geek. A falta de sentido daquilo, somada à frustração da experiência na revista, deram a ela o estalo de buscar algo que fosse mais sua expressão.

Em 2013, Pietra abriu uma conta no Instagram. Passou a se fotografar e a fotografar cenas de seu cotidiano e entorno. Fechou os comentários, para que cada imagem não virasse um imenso fórum sobre o que ela finalmente conseguia colocar no mundo, e foi se encontrando como fotógrafa e modelo de si. “Comecei a notar que as minhas fotos tinham algum valor. O meu retrato de intimidade, deixei vir num fluxo natural. Sem pensar em estética e não estou nunca falando pra câmera. Nunca sou eu. É tudo aquilo que eu vejo, Rio de Janeiro, cenas de praia. Isso antes da pandemia. Depois, começo a usar o stories do Instagram.” As fotos eróticas de Pietra são um convite mesmo à sua rotina. Claro que, como ela mesma admite, sempre há alguma medida de artifício — como há em todas as interações humanas. Mas sua busca é pela naturalidade. Ao longo da entrevista, ela menciona muitas vezes não estar depilada, maquiada, produzida. E insiste que é tudo sobre seu olhar, a curadoria de sua visão de mundo, de seu corpo, de sexo. Como nunca gostou de estar parada, não tira retratos. Filma-se e seleciona frames que se tornam retratos. É uma linguagem ágil, que só o meio digital poderia permitir. Meio e mensagem se seduzindo mutuamente.

Mas o ambiente digital tem alguns atributos que outras mídias não alcançam. Em primeiro lugar, ele promove uma fluidez entre os papéis de voyeur, exibicionista e patrulha. Pietra se admite voyeur. É evidente exibicionista. Só não queria para si a patrulha que a internet provoca, a represália, a caretice. E o Instagram, nos termos precisos da artista, “é um verdadeiro gang bang” de julgamentos. As redes sociais também tiram a criadora do isolamento. Constróem uma ponte direta entre os artistas e os consumidores de sua imagem. Eliminam os intermediários. Isso revoluciona a produção de vários tipos de conteúdo — sobretudo, o adulto. Perceber isso foi a grande sacada do britânico Tim Stokely, fundador da plataforma OnlyFans. Numa similaridade com Hefner, Tim angariou dinheiro com seu pai, Guy, um executivo de bancos, para montar uma rede social em que criadores pudessem cobrar dos fãs pelo conteúdo postado. A ideia era atrair compositores, personal trainers. As atrizes e os atores pornô, no entanto, habituados com a exploração de produtoras de filmes e vídeos que levavam boa parte dos lucros, viram ali uma oportunidade sem precedentes de fazer sua revolução proletária e se tornar donos dos meios de produção. Criadores de conteúdo adulto em geral, mesmo sem pornografia, enxergaram o mesmo.

Pietra passou anos afastada da mídia tradicional, tocando seu Instagram e dizendo não para muitas ofertas. Teve momentos de pura “escuridão”, conta. Dez anos depois de se chocar com a violência da internet e não mais se googlar, fez uma busca por seu nome. E revoltou-se ao ver que os paparazzi e as revistas de fofoca digitais seguiam falando dela, exibindo suas fotos — agora captadas, sem sua permissão, do Instagram. A pandemia já estava instalada. E Pietra, segura de sua arte e da mensagem, abriu uma conta no OnlyFans. Foi no dia 22 de janeiro de 2021. Ela não esquece. Estava deitada em sua cama, “no meio de suas bagunças”, como repete insistentemente, sem depilar. Colocou como preço da assinatura o valor mais alto possível: US$ 50 mensais. “Resolvi que ia fazer sem grandes poses. Imaginei que tinha algo desagradável para os homens na estética e isso pra mim é desafiador. Era como se eu dissesse: ‘Tem certeza de que você tem tesão em mim, que você gosta de mim, tem interesse em mim? Então, toma’. No meu ambiente verdadeiro, em que nada mais seria forjado. Claro que as pessoas precisam de estímulos diferentes e estão pagando. Isso tem que ser levado em consideração. Mas a sensação era essa, de enfim ser eu.”

Desagradável não deve ser. Pietra está entre as criadoras mais seguidas da plataforma. Está de mudança para Portugal para, entre outras coisas, fugir de seguidores que levam o termo para o literal. Tem stalkers, sente-se tolhida no mundo real — não só por eles, mas pelo reacionarismo que tomou conta do Brasil. Mas vai seguir no OnlyFans pelo tempo que achar que deve. Quando posou para a Playboy e ainda estava na TV, algum repórter perguntou o que ela faria agora que estava no auge. “Eu cheguei no auge? Está maluco, irmão?”. Na fotografia, na pintura, no erotismo ou no que quiser, Pietra está só começando.

Marcha Zumbi: o caminho das cotas

A Lei de Cotas completa dez anos de sua promulgação neste mês. Na letra fria, ela reserva 50% das vagas em instituições federais de ensino superior para alunos que completaram todo o ensino médio na rede pública, subdivididas entre pessoas negras, indígenas, de baixa renda e com deficiência, de acordo com o proporcional que cada grupo representa em suas unidades federativas.

O caminho para a criação da política pública remonta a uma série de episódios protagonizados pelo movimento negro. Foi uma conquista de décadas de mobilização e pressão. Um marco foi uma manifestação na capital federal, em 20 de novembro de 1995. A data marcava os 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência e da luta contra a escravidão e principal liderança do Quilombo dos Palmares, um território livre em Pernambuco.

Era uma segunda-feira de nuvens carregadas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, quando 30 mil pessoas se reuniram na Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. O ato foi organizado por diferentes movimentos negros e da sociedade civil, com a presença de lideranças como Sueli Carneiro, Benedita da Silva, Maria Isabel da Silva e Deise Benedito. O grito era claro: contra o racismo, o preconceito racial e a falta de políticas públicas para aquela população. No mês anterior, os organizadores do evento tinham distribuído 400 mil exemplares do Jornal da Marcha, convocando grupos religiosos e culturais, famílias, empregadas domésticas e outros coletivos que poderiam ser afetados pela mobilização.

“Não esperava que um dia ia viver o suficiente para ver Brasília ocupada por nós”, disse uma senhora negra de cabelos brancos, óculos de armação em acetato transparente e brincos longos que adornavam até as proximidades dos ombros, durante a passeata. Para a marcha, saíram delegações de 20 estados, viajando nas condições mais adversas — em alguns casos por três, quatro dias, em ônibus que quebraram pelo caminho e só puderam chegar ao evento nos momentos finais, já no início da noite.

A concentração começou às 10h em frente ao Gran Circo Lar, um espaço de eventos demolido em 1999, próximo à rodoviária de Brasília. Seguiu em uma caminhada de dois quilômetros até o Congresso Nacional. Os participantes ficaram concentrados em frente à rampa, onde foi montado um palanque para os shows de Milton Nascimento e a banda Olodum, que teve início às 20h30. Os diversos grupos chegaram à capital com tambores, berimbaus, fazendo rodas de capoeira, gritando palavras de ordem e levantando cartazes cobrando por reparação racial. Antes dos shows, o Congresso realizou a primeira sessão solene da história dedicada a homenagear Zumbi dos Palmares e ouvir a população negra brasileira. No púlpito, homens e mulheres se revezaram para reivindicar direitos, relembrar a história de escravização e de luta, e exigir políticas compensatórias, que incluíssem a negritude no âmbito social, político, cultural e econômico.

Após a marcha, cerca de 30 integrantes das lideranças se reuniram com o então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. Entregaram-lhe um documento com o diagnóstico das discriminações sofridas pela negritude do país e a proposta do Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, com um conjunto de ações e políticas em diversas áreas. Naquele dia, o presidente assinou um decreto, criando um Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com a participação negra. Entre as principais tarefas, estava o combate ao preconceito racial e o desenvolvimento de políticas públicas que valorizassem a comunidade afro-brasileira em variados aspectos, como trabalho, saúde e educação.

Era o início do reconhecimento do Estado brasileiro de que havia injustiças a serem reparadas com essa parcela da população. Em julho do ano seguinte, no auditório do Palácio do Planalto, organizado pelo Ministério da Justiça, o seminário “Multiculturalismo e Racismo: O Papel da Ação Afirmativa nos Estados Democráticos Contemporâneos” trouxe um importante debate para a formulação das políticas de ação afirmativa, que seriam desenvolvidas anos depois. Um mês antes, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) realizava o seminário “Ações afirmativas: estratégias antidiscriminatórias?”, que também fomentou o debate. Em 1996, o governo FHC instituiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que também estabelece direitos para a população negra.

As primeiras cotas

Esses passos foram fundamentais para pavimentar o caminho das primeiras reservas de cotas em universidades brasileiras. Em 2002, a criação do Programa Nacional de Ações Afirmativas e do Programa Diversidade na Universidade possibilitou que universidades criassem vagas destinadas a pessoas de grupos sociais menos favorecidos socialmente, como negros e indígenas. Foi no ano seguinte que a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) se tornou a primeira instituição pública de ensino superior a adotar o sistema de cotas, puxando o filão para outras, como a Universidade de Brasília (UnB), em 2004, que se tornou a primeira instituição federal a adotar o modelo. A lei federal 12.288, já no final do governo Lula, criou o Estatuto da Igualdade Racial, e foi um novo passo para que as ações afirmativas se tornassem realidade na educação do ensino superior em todo o país. Mas o capítulo decisivo começou a ser escrito pelas mãos dos ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em abril de 2012, a Corte analisou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 186, movida pelo partido Democratas. O DEM alegava ser inconstitucional o sistema de reserva de vagas com base em critério étnico-racial. O Supremo julgou, por unanimidade, que as cotas aplicadas pela UnB eram constitucionais. Não só. Elas deveriam ser utilizadas como “modelo” por outras instituições de ensino, com o objetivo de superar a desigualdade histórica entre negros e brancos. Em seu voto, o único ministro negro da Suprema Corte na época e o terceiro da história do STF, Joaquim Barbosa, foi breve. Seguindo o voto do relator, Ricardo Lewandowski, Barbosa lembrou que seu ponto de vista, favorável às cotas, já era conhecido, por já ter escrito um livro sobre o tema.

Passados pouco mais de três meses do julgamento no Supremo, os senadores aprovaram, de forma simbólica, a Lei de Cotas. Ficou a cargo da presidente Dilma Rousseff sancioná-la.

PL da Permanência

Um dispositivo da lei diz que as cotas devem ser revistas uma década após sua implementação. Para garantir que a política de ação afirmativa seja mantida, o Projeto de Lei 5384/2020, de autoria da deputada federal Maria do Rosário (PT/RS), prevê a permanência das cotas de maneira contínua, sem a necessidade de revisão periódica. O PL estava na pauta de votação pela Câmara dos Deputados nesta semana. Foi retirado a pedido da própria autora, que temia pela revogação do direito às cotas raciais em alguma manobra de seus colegas. "Quando nós chegamos no plenário, começamos a perceber que essa votação poderia abrir espaço para setores retrógrado. Temos um governo que se pauta e age, muitas vezes, com viés racista”, afirmou a deputada.

Ela espera agora um momento oportuno para que o texto seja votado e aprovado sem modificações. O receio se dá pela formação atual da Casa, que ficou mais conservadora após a última eleição. Em 2010, na legislatura da promulgação da Lei de Cotas, foram eleitos 190 deputados mais à direita do espectro ideológico. Hoje, essa ala conta com 301 parlamentares, eleitos na onda bolsonarista de 2018.

A resistência à continuidade das cotas não se justifica. Muitos intelectuais, políticos e personalidades que eram contrários já reviram suas posições. Ao longo das últimas décadas, estudos têm sido realizados para aferir os resultados trazidos pelas políticas de cotas. Um que já se mostrou evidente é o do volume. Em 2003, quando a UnB adotou sua política de ação afirmativa, apenas 4,3% dos universitários se autodeclararam pretos, pardos ou indígenas. Em 2019, o percentual chegou a 48%.

Levantamentos recentes também mostraram que ações afirmativas que não contemplam a questão racial não foram eficientes em trazer alunos negros para o espaço acadêmico. Pesquisadores da própria UnB e da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos, descobriram que as cotas raciais elevaram a presença de estudantes pretos e pardos em 20%, enquanto a exigência de apenas ter estudado em escolas públicas trouxe 1% desse grupo no mesmo período. Além disso, o critério racial foi responsável pelo crescimento de 24,3% de alunos pobres nas instituições de ensino, contra 14,6% dos advindos apenas como critério de ter estudado em escolas públicas. Enquanto isso, uma pesquisa Datafolha mostrou que metade dos brasileiros é favorável às cotas raciais; apenas 34% são contra.

Décadence avec élégance

O censo de 1911 contabilizou 283 chineses em Paris. Um seleto grupo de estudantes, jornalistas, intelectuais e comerciantes que tinham o privilégio de ostentar esse luxuoso CEP em suas correspondências.

Uma dimensão do que foi a “Belle Époque” em Paris: em 1906, Santos Dumont já tinha acumulado fama pelos diversos shows nos céus da Cidade Luz. Nos anos que seguiram, "Le Petit Santos" e outros cientistas locais do naipe de Marie Curie e Gustave Eiffel acolhiam vizinhos interessantíssimos. O maior pólo de tecnologia mundial passou também a ser morada de artistas como Hemingway, Gertrude Stein, Ezra Pound, James Joyce, Picasso, Zelda e F. Scott Fitzgerald… Vou parar só nesses! Se continuar, o coração de Pedro, nosso editor-historiador-chefe, explode!

Pouco mais de um século depois, o censo contou 2,1 milhões de parisienses. Número idêntico à quantidade de turistas chineses que visitaram a cidade em 2018. Em 2019, eles sumiram abruptamente e até agora as indústrias do turismo e do luxo, setores fundamentais para a economia francesa, ainda estão contabilizando o prejuízo e nutrindo um sonho distante de que, talvez um dia, os chineses voltem.

Mas a realidade é dura de engolir. Paris perdeu o seu encanto e pouco reflete o esplendor de 100 anos atrás. O grande mercado de ideias, com mentes brilhantes de todos os cantos do planeta, virou uma grande Rua 25 de Março de luxo. E agora, nem isso.

O dragão acordou

Até os anos 90, turismo internacional para o cidadão chinês era praticamente proibido. Viagens internacionais precisavam de sólidas justificativas para serem aprovadas. E ninguém tinha grana pra fazer turismo. A economia chinesa era 50 vezes menor do que é hoje. A partir de 1995, alguns destinos internacionais foram aprovados para “excursões acompanhadas”. No curto espaço de seis copas do mundo, uma nova realidade: em 2019, o turista chinês movimentou US$ 260 bilhões na economia global, duas vezes mais que o turista americano.

Hoje, estima-se que a China já tenha mais de 5 milhões de milionários. Nos Estados Unidos, são 20 milhões de indivíduos com patrimônio maior que US$ 1 milhão. Para completar o quadro: a França tem uns 2 milhões e meio de ricaços esperando a fila da guilhotina voltar a andar. No Brasil, são 200 mil.

Milionários precisam ostentar sua prosperidade. Muito Channel, Cartier, Louis Vuitton… Por isso, a China já representa um terço do mercado de luxo global. E caminha para abocanhar a metade em 2025. Paris é o destino favorito para essas comprinhas e o aporte de divisas não fica só nas boutiques. A Brasserie L'Alsace, parada estratégica na Champs Elysées durante uma maratona de compras, chegou a contar com 70% do faturamento vindo dos clientes asiáticos. “Brasileiros, paquistaneses e indianos são numerosos, mas quem gasta mesmo é o chinês”, dizem os garçons.

Sacoleiros de luxo

A imagem dos ônibus de sacoleiros lotando a região da 25 de Março e lojas de atacado no Brás é bem familiar para nós brasileiros. Esse é exatamente o último retrato que tenho de Paris. Ônibus de excursão por toda parte, carregando um novo tipo de visitante chinês: o "daigou“.

Empreender como ”personal shopper“ internacional tornou-se uma forma de vida para muitos chineses. Para evitar a fadiga de longos vôos e da muvuca garimpando novidades, as dondocas chinesas passaram a terceirizar a viagem. O ”comércio daigou“ chegou a representar 80% do volume de vendas de mercadorias de luxo na China. Tudo sem pagar imposto, naquela modalidade de ”contrabando soft“ também muito familiar para brasileiros que costumam passear por Miami. O governo chinês começou a tomar medidas para acabar com a farra em 2019.

As marcas de luxo também sofrem com a competição dos ”daigou". Os atravessadores tiram as margens das filiais chinesas, pois oferecem as mesmas mercadorias com desconto. E ainda trazem as novidades de Paris antes de aparecerem em Shangai. Solução adotada: as coleções passaram a ser lançadas primeiro na China, depois na França.

Não é “só um resfriadinho”

O efeito da pandemia foi devastador. De 2019 para 2020, as compras de artigos de luxo na Europa despencaram 36%, ficando em € 27 bilhões. Do outro lado, nesse mesmo período, a balança comercial chinesa comemora. Com o contrabando “daigou” sendo combatido e as restrições ao livre trânsito de passageiros internacionais, os milionários chineses passaram a gastar mais nas boutiques locais. O faturamento das lojas de luxo na China chegou a € 44 bilhões em 2020, crescendo surpreendentes 45% no meio de tantas tormentas.

As famosas Galerias Lafayette precisaram vender 11 boutiques e os corredores permanecem vazios. Os espaços e horários exclusivos para a clientela “daigou” ainda não foram reativados. O golpe para a empresa foi de € 1 bilhão, com uma queda de 50% do faturamento em 2019. Outro ícone para compras sofisticadas, a Printemps, fechou 3 lojas.

"Nós precisamos dos chineses“, declarou o CEO do grupo Accord, gigante da hotelaria francesa, dono de 5.100 estabelecimentos ao redor do mundo. ”Os europeus e americanos já retornaram, mas ainda falta recuperar um terço dos hóspedes. Mas, infelizmente, sabemos que os chineses não voltam antes do fim de 2023. Sendo otimista.“ Certamente, esse otimismo conta com a manutenção do silêncio de Emmanuel Macron sobre Taiwan e outras questões delicadas. A interrupção do fluxo de turistas como demonstração de ”soft power" é uma arma conhecida da diplomacia chinesa.

Esqueça Paris

Os próximos “anos loucos”, cheios de bares e baladas transbordando ideias de vanguarda, estão se configurando em outra freguesia: Lisboa. A capital portuguesa recebe um número crescente de turistas de todo o continente europeu. Além dos americanos, que cansaram de pagar vinho caro e reclamar do “steak tartare” mal passado nos restaurantes da França.

O fluxo de exilados brasileiros coloca ainda mais tempero nesse caldeirão. Artistas e empreendedores em busca de mais liberdade, segurança, qualidade de vida e estabilidade econômica aceleraram muito nos últimos anos. E não vão parar tão cedo. Portugal precisa de mais gente. E a criatividade é muito bem recebida.

Não é à toa que o termo "Califórnia europeia" começa a ganhar força como slogan informal do país, que possui uma política fiscal favorável para atrair milionários e nômades digitais. A lista de vizinhos interessantes do nosso cripto diretor de arte Tony de Marco não pára de crescer. Ai Weiwei, John Malkovich, Philippe Starck, Christophe Sauvat, Christian Louboutin, Monica Bellucci, Madonna, Phil Collins, George Clooney, Gisele Bündchen e, em breve, Pietra Príncipe. Sem dúvidas, uma bela época para estar lá.

Tecnologia e democracia entre os links mais clicados pelos leitores na semana que passou:

1. G1: Telescópio James Webb capta imagens de uma galáxia que lembra uma roda de carro.

2. USP: A carta em defesa da democracia já tem mais de 750 mil assinaturas.

3. NY Times: Desative esses settings para compartilhar menos dados com as gigantes de tecnologia.

4. Panelinha: Um salmão agridoce com legumes picantes.

5. YouTube: Ponto de Partida — Vamos para a rua?

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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