Edição de Sábado: Um país, uma sina, quatro desfechos

Por João Villaverde*

Quarenta e seis pessoas entraram no luxuoso avião da Panair, embarcando do aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, para viajar a Manaus. Entre os passageiros estavam a sobrinha do marechal Henrique Lott e o senador Remi Archer, que era o presidente do Banco da Amazônia. O voo deveria fazer uma escala em Belém, no Pará, para abastecimento. Mas, no meio da viagem, o avião foi sequestrado e sua rota, desviada. Ele nunca pousou em Belém e notícias desencontradas de controladores de voos, dos políticos e dos familiares dos passageiros e tripulantes começaram a correr na madrugada do dia 3 de dezembro.

Foi o primeiro sequestro de um voo comercial da história do Brasil. Os terroristas eram militares brasileiros: catorze integrantes da Aeronáutica e dois do Exército.

Alguns desses militares compraram passagens para a viagem e, poucas horas depois de o avião deixar o Rio, tomaram o controle da aeronave e remeteram para um pequeno aeroporto na minúscula cidade de Aragarças, no interior de Goiás. Pouco depois, os demais militares terroristas chegaram em outras três aeronaves roubadas da Aeronáutica, que decolaram da Base Aérea do Galeão, e um avião teco-teco, roubado de uma empresa privada do aeroporto da Pampulha, em Belo Horizonte.

Esses aviões estavam lotados de armas de guerra, munição e granadas. Os militares terroristas estavam prontos para liderar um golpe contra o governo federal. O manifesto golpista que o grupo circulou era recheado de ataques às instituições brasileiras. Segundo a mente paranoica dos terroristas militares, o comunismo estava infiltrado em diversos segmentos da sociedade, incluindo o setor público. Criticavam a corrupção das lideranças políticas, em especial no Executivo, além da omissão do Judiciário e do Legislativo.

Paranoia, radicalismo e militares atacando instituições democráticas... soa familiar, não acha, leitora e leitor? Pois é. Agora que nos aproximamos do fim do mandato de Jair Bolsonaro, presidente abertamente radical, de personalidade persecutória e cercado de militares e de terroristas, como Roberto Jefferson, chegou a hora de pensarmos sobre o amanhã. Não me refiro ao dia da eleição, mas ao pós-Bolsonaro. O que fazer com ele?
Este é o mote do texto que você lê neste momento. Mas, antes de refletirmos sobre o destino de Bolsonaro, vamos voltar rapidamente ao sequestro do avião por militares terroristas.

Era dezembro de 1959. A tentativa de golpe em Aragarças ocorreu por causa de Jânio Quadros. Entusiasmados com aquele político populista, os militares golpistas tinham ficado inconformados quando Jânio anunciou ter desistido da disputa presidencial de 1960. O insuspeito senador Afonso Arinos registrou em discurso, pouco depois, que “o golpe frustrado de Aragarças foi muito fruto da decepção causada pela retirada da campanha do senhor Jânio Quadros”.

A tentativa de golpe não deu certo. A adesão popular foi baixa e o governo Juscelino Kubitschek conseguiu debelar a revolta armada. JK, aliás, concedeu anistia a todos os que participaram dos atos terroristas. Jânio retomou sua campanha e foi eleito presidente em 1960, empurrado pela ideia única do combate à corrupção. Usava uma vassoura como mote, dizendo ser o único capaz de varrer a corrupção. Dispensava partidos políticos, era profundamente paranoico e, imediatamente após a sua posse em Brasília, entrou em confronto permanente com o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a imprensa e os movimentos sociais. Seu caótico governo foi interrompido abruptamente com sua renúncia, no fim de agosto de 1961.

Veja só, leitora e leitor cá do Meio, como o parágrafo anterior traz uma série de pontos que permanecem vivos em nosso imaginário e em nossa prática política — lamentavelmente.

Para começar, o grupo de militares radicais, abduzidos por um político populista que só falava em corrupção e em temas culturais. O recente episódio do neobolsonarista Roberto Jefferson disparar granadas e balas de fuzil contra policiais aproxima ainda mais aquele estado de coisas de 1959 para este radical 2022.

Depois, o gesto de JK: ele anistiou militares que, além do sequestro de pessoas e do roubo de carga pública, se prepararam para uma guerra civil. Em seguida, note, leitora e leitor, o papel desempenhado por Jânio no imaginário coletivo: alguém que não precisava de partidos (por serem “todos corruptos”), que negava a forma tradicional de governo (a negociação entre o Executivo e o Legislativo) e que fazia do confronto permanente a sua maneira de atuar politicamente. Por fim, o resultado trágico, muito conhecido: caótico, Jânio larga o governo e joga o país em uma crise terrível, que culminará no golpe militar de 1964, que é quando tomam o poder justamente pessoas com a mente semelhante à dos sequestradores do avião.

É, pois é.

Talvez você tenha se prendido mais ao ato de JK. Anistiar militares terroristas foi um erro grave. Afinal, se você pode sequestrar um avião e, de posse de armas e explosivos, tentar um golpe para pouco — ou nada! — acontecer com você, bem... então, você tem incentivos para tentar de novo, certo?

Nesta linha de raciocínio é possível que você, leitora e leitor, tenha lembrado da proposta feita pelo ex-presidente Michel Temer algumas semanas atrás. Segundo Temer, o novo governo brasileiro deveria organizar um certo pacto de anistiar pessoas públicas envolvidas com crises graves do governo Bolsonaro (pense no general Pazuello na pandemia ou em Ricardo Salles com o meio ambiente, além do próprio Jair Bolsonaro e de seus familiares). Seria uma forma, argumentou Temer, de criar um clima de “pacificação”, para que a vida siga adiante.

Caso Bolsonaro seja reeleito presidente não há que se pensar em anistia: ele continuará a exercer o poder por — pelo menos — quatro anos. Ele permaneceria intacto de investigações. Tudo permaneceria tal como está: os decretos de sigilos, a proteção conferida pela PGR amigável a Bolsonaro e todas as outras blindagens.

Mas o que fazer com Bolsonaro caso ele de fato perca a reeleição, como indicam as pesquisas? Neste domingo, cerca de 50 milhões de pessoas deixarão suas casas para, diante da urna, votar em Bolsonaro. Ele tende a ter algo como 48% dos votos válidos – mas pode ter mais, como 49% ou mesmo 49,5%. Se ele perder, Bolsonaro tende a registrar o melhor resultado eleitoral que um derrotado em eleições presidenciais jamais registrou em nosso país, superando os 48,3% de Aécio Neves em 2014.

Voltamos à pergunta inicial: o que fazer com Bolsonaro, este presidente radical e paranoico que continuará no poder até 31 de dezembro e que terá, nas urnas, um resultado muito expressivo, mesmo que saia derrotado?

A sina dos 30 anos

Anos atrás, em artigo que publiquei na Folha com meu orientador do mestrado, Cláudio Couto, apontamos para uma espécie de “sina dos 30 anos” no país. A cada trinta anos cometemos um erro eleitoral semelhante — e pagamos um preço alto por isso.

Em 1960, elegemos Jânio. Ignorando os partidos políticos e pregando um diálogo direto com a população, dispensando as instituições constitucionais e o controle social (pela imprensa), Jânio governou de forma caótica. Largou a presidência pouco depois de prestigiar uma cerimônia do Dia do Soldado, no 25 de agosto de 1961. Segundo contou ao neto pouco antes de morrer, Jânio tinha calculado tudo:

“Renunciei no Dia do Soldado porque quis sensibilizar os militares e conseguir o apoio deles. Imaginei que, em primeiro lugar, o povo iria às ruas, seguido pelos militares, e ambos me chamariam de volta. (...) Fui reprovado e o povo pagou um preço muito alto. Deu tudo errado. (...) O povo brasileiro é muito passivo. Todo mundo ficou chocado, mas ninguém reagiu.”

A maracutaia de Jânio levou a um “puxadinho institucional”, com a implementação do parlamentarismo. Teve vida curta, após plebiscito em janeiro de 1963. Pouco depois, o golpe militar que instaurou uma ditadura.

Trinta anos após Jânio tivemos a eleição presidencial de 1989. Os principais partidos políticos da Nova República estavam presentes com seus expoentes: Ulysses Guimarães pelo MDB; Leonel Brizola pelo PDT; Aureliano Chaves pelo PFL; Lula pelo PT; e Mário Covas pelo PSDB. Jânio, inclusive, tentou ser candidato com o seu PTB e contou com apoio do líder do partido, Roberto Jefferson. Mas, novamente, Jânio renunciou à candidatura e decidiu apoiar... Fernando Collor.

Collor abriu aquele ano eleitoral sem sequer ter um partido. Alugou um (PRN) e fez uma campanha de pauta única: contra a corrupção. Atualizou o discurso das vassouras de Jânio para o combate aos “marajás”. Equivaleu todos os partidos, de esquerda, de centro e de direita, num esforço antipolítica e anti-establishment.

Empossado em 1990, Collor de imediato iniciou um governo da confrontação. Escrevendo a quente, Bolívar Lamounier diagnosticou o modelo Collor de governar como o “presidencialismo tropical ou plebiscitário”. O presidente batia de frente com os partidos e o Congresso. Criticava ferozmente o trabalho da imprensa e de todo e qualquer controle (judicial, administrativo, político e social) sobre sua administração.

Não deu certo. Além do confisco da poupança, que gerou um trauma nacional (incluindo um salto no índice de suicídios), o governo Collor foi uma máquina autônoma de geração de crises. Collor, você sabe, foi o primeiro presidente em nossa história a ser impedido de continuar no cargo devido a um processo de impeachment. Foram pouquíssimos parlamentares que ficaram com o impopular Collor: um deles foi Roberto Jefferson.

Trinta anos depois da eleição de Collor, tivemos a campanha de 2018. Jair Bolsonaro abriu aquele ano eleitoral sem sequer ter um partido. Alugou um (PSL) e fez uma campanha de pauta única: contra a corrupção. Em um empobrecimento linguístico e intelectual frente a Jânio e Collor, Bolsonaro apresentou o “contra tudo isso daí”. Equivaleu todos os partidos, num esforço antipolítica e anti-establishment.

Empossado em 2019, Bolsonaro negou o presidencialismo de coalizão. Durante todo o primeiro ano de mandato, Lula estava preso em Curitiba. A bancada de partidos de esquerda na Câmara atingia menos de 140 deputados, patamar incapaz de barrar projetos de leis do governo. Bolsonaro poderia governar livremente, facilmente.

A despeito de tudo relativamente favorável, Bolsonaro rapidamente mostrou a que veio. No primeiro Carnaval em seu governo ele falava em “golden shower”, querendo incitar batalhas culturais a partir da escatologia. Pouco depois, começou a demitir ministros (Bebianno, Ricardo Vélez e general Santos Cruz). As crises, sucessivas e intermináveis, eram sempre geradas a partir do próprio governo e do presidente. O PIB em 2019, mesmo com tudo favorável a Bolsonaro e sem pandemia, cresceu raquítico 1%.

A pandemia foi o corolário do horror. Apelidada de “gripezinha” pelo presidente, a Covid-19 levaria a vida de 690 mil pessoas. Desde o princípio, Bolsonaro optou por combater o uso de máscaras. Criou confrontos com governadores e prefeitos, com a imprensa e com o Congresso (em particular com Rodrigo Maia, então presidente da Câmara). Brigou com líderes internacionais e, quando a vacina ficou pronta, Bolsonaro ativamente sabotou a principal defesa sanitária disponível. Ignorou mais de 11 ofertas da Pfizer. No começo de 2021, usou “estudo” do economista Adolfo Sachsida para suspender o auxílio emergencial em plena 2ª onda da pandemia.

Em 2021, a substituição de Maia por Arthur Lira na Câmara, com uso descontrolado do orçamento secreto, permitiu a Bolsonaro um conforto adicional: ele poderia fazer o que quisesse que impeachment algum seria aberto. De fato, ele fez o que quis. Em outubro, o governo Bolsonaro inseriu na Constituição do país um calote da dívida interna, com o parcelamento dos precatórios devidos pelo governo a brasileiros e brasileiras. No ano eleitoral, Bolsonaro patrocinou nova mudança na Constituição, desta vez para criar uma série de auxílios financeiros durante a campanha eleitoral.

De trinta em trinta anos, cometemos o mesmo erro.

Seria possível especular que essa “sina” começou... trinta anos antes de Jânio, com o golpe de 1930, que reverteu a eleição de Júlio Prestes e instalou na presidência o gaúcho Getúlio Vargas, apoiado pelos militares. Aquele movimento, depois chamado de revolução, rendeu uma guerra aberta em São Paulo (em 1932), turbulências políticas no Rio e em Salvador (em 1935) e terminou em ditadura militar, com o Estado Novo getulista a partir de 1937.

A cada trinta anos, ficamos reféns de uma sina que parece se repetir. O final nunca é bonito. A reviravolta de 1930 desembocou em ditadura e seu líder, Getúlio, mais tarde cometeria suicídio dentro do palácio. A eleição de um populista maluco em 1960, Jânio Quadros, terminou em uma rocambolesca renúncia (que chegaria em nova ditadura). A vitória de “caçador de marajás” no fim de 1989 terminou no primeiro presidente afastado por impeachment.

Suicídio, renúncia e impeachment. Os três fins trágicos das sinas anteriores. O governo Bolsonaro, extremista que sabotou vacinação na pandemia, terminará de que forma?

Agora, 2022

Impeachment está fora de questão: beneficiado pelo orçamento secreto, Arthur Lira não abrirá um processo nas semanas finais deste ano. Renúncia de Bolsonaro após as eleições? Improvável, dado que o presidente abriria mão, com isso, da última carta forte que ainda lhe resta: a caneta.

Caso Bolsonaro seja reeleito amanhã, estaremos diante de um recrudescimento de um regime iliberal. Depois de sabotar máscaras e vacinação na pandemia e vencer um ex-presidente popular (Lula) sustentado na maior frente ampla formada desde os anos 1980, Bolsonaro estará diante de um cenário perfeito para ele: seus poderes serão máximos.

A deterioração institucional dos últimos quatro anos não foi perceptível para todas e todos. Ainda há ingênuos que olham o Brasil de 2022 e veem “um país normal”. Foi assim também nos primeiros anos da ditadura militar. Em 1965, a oposição ao regime venceu em Minas Gerais e na Guanabara (antigo Estado cuja capital era a cidade do Rio de Janeiro). Quem venceu tomou posse em 1966. Era um sinal, para alguns, de que “tudo continuava normal”. Foi preciso ficar escancarado, com intervenção nos sindicatos e nas universidades e a decretação do AI-5, em 1968, para todo mundo realmente admitir se tratar de uma ditadura.

A ruína democrática começou sob Bolsonaro 1, mas ficará completa em um Bolsonaro 2. Este desfecho para a sina dos 30 anos, em que Bolsonaro lidera um regime iliberal, mas eleito pelas urnas, é inédito. A sina continuará de pé, no entanto: a cada 30 anos cometemos os mesmos erros, mas os finais são sempre diferentes, nunca repetidos.

Isso também será verdade caso Bolsonaro seja derrotado amanhã. Estaremos diante de um desfecho inédito. Vamos pensar sobre isso agora, leitora e leitor, a partir das linhas que seguem.

Bolsonaro continuará presidente da República até 31 de dezembro. Isso quer dizer que qualquer live presidencial, qualquer motociata, qualquer entrevista para a Jovem Pan, qualquer comício e qualquer tweet será amplamente divulgado. Afinal, trata-se do presidente. Caso a seleção brasileira, liderada pelo bolsonarista Neymar, vença a Copa do Mundo, será Bolsonaro o presidente a receber os jogadores que desejarem visitar o Palácio do Planalto. Daqui até 31 de dezembro, a exposição midiática de Bolsonaro continuará plena. Essa exposição que o cargo dá é chave.

Voltamos, então, leitora e leitor, para o ponto da anistia. Ela só ocorrerá se ambos os lados desejarem e – aqui o “e” é muito importante – as condições permitirem. “O homem é ele e suas circunstâncias”, vaticinava o escritor espanhol José Ortega y Gasset.

Pode ser que Lula aceite negociar. Pode ser que não. Ainda não sabemos. Bolsonaro seguramente é favorável a um acordo que lhe permita ficar livre de processos judiciais e, potencialmente, de um presídio. A única chance para Bolsonaro conseguir algo é enquanto ele ocupa o espaço e goza de cobertura diária, com apoiadores civis e militares inflamados por sua retórica golpista.

Ademais, caso um dos bolsonaristas Tarcísio de Freitas e Onyx Lorenzoni seja eleito para os governos de São Paulo e Rio Grande do Sul, respectivamente, Bolsonaro pode muito bem conseguir um cargo simbólico, garantindo uma proteção legal adicional. Tarcísio pode fazer de Bolsonaro algo como “adido cultural de São Paulo” em algum país. Neste caso, nem no Brasil o atual presidente continuaria a viver.

Esta saída, da fuga para o estrangeiro, seria inédita como desenlace em nossa sina dos 30 anos. Um cometeu suicídio; outro renunciou; o terceiro sofreu impeachment; Bolsonaro será aquele que fugirá do país. Pode ser.

Mas seja uma anistia negociada com o novo governo ou um cargo entregue de bandeja por um ex-funcionário, Bolsonaro ainda terá que lidar com as circunstâncias.

Como será a reação popular? A força antibolsonarista, latente na sociedade, barrará toda e qualquer ideia de salvar o presidente que imitou pessoas sem ar? O contribuinte paulista (ou gaúcho) aceitará de bom grado pagar salários para Bolsonaro viver no exterior depois de passar a pandemia brincando de jet ski?

Dada a configuração do próximo Congresso, que incluirá bolsonaristas histriônicos como Ricardo Salles, Carla Zambelli, Damares Alves, André Fernandes, Nikolas Ferreira entre outros, Bolsonaro terá sempre uma caixa de ressonância estabelecida para desestabilizar o governo Lula-Alckmin. Preparará, também, o terreno para seu retorno em 2026. Neste caso, seria algo como o que faz Donald Trump neste momento nos Estados Unidos.

Devemos aguardar uma reação popular forte ou, ao contrário, diante da Copa do Mundo e o clássico sentimento do “deixa disso”, Bolsonaro conseguirá concluir a mais recente sina dos 30 anos relativamente impune?

Neste caso, repetiremos, então, aquilo que Jânio diagnosticou: “O povo brasileiro é muito passivo. Todo mundo ficou chocado, mas ninguém reagiu.”

*João Villaverde é jornalista, professor e mestre em Administração Pública e Governo pela FGV-SP. Foi pesquisador visitante na Universidade de Columbia, em Nova York. É co-organizador (com Felipe Salto e Laura Karpuska) do livro “Reconstrução: o Brasil nos anos 2020”. É autor do livro-reportagem “Perigosas Pedaladas” (Geração Editorial, 2016), sobre o impeachment de Dilma Rousseff.

Não acredite em mim, mas é verdade

Daniel “Xaxim”, líder do tráfico de drogas do Morro do Dendê, é a favor do desarmamento. Ou era, não sei se morreu. Desde que o inventei, o personagem de uma piada no meu blog criou vida própria. Até hoje pode ser que ele ainda exista na mente dos cidadãos de bem que votaram no referendo sobre a proibição do comércio de armas de fogo e munições no Brasil em 2005.

Mas quando o assunto é “fabricar notícias”, não acredite em mim. Acredite em autores de best sellers mundiais. Em Acredite estou mentindo - Confissões de um manipulador da mídia, Ryan Holiday redigiu um manual de como espalhar desinformação pela internet. Guia que imediatamente foi para o bolso dos profissionais de comunicação mais antenados. Em 10 anos, este livro já fez um belo estrago. Suas dicas de como criar e espalhar factóides inspiraram grupos como o MBL e outros gabinetes igualmente odiáveis.

Uma receita nada secreta

Para começar, você vai precisar de um grupo de burros que precisam confirmar a sua inteligência e de um grupo de inteligentes que adoram mostrar como há muita burrice nesse mundo. Definido bem o público alvo, basta inventar algo que feche o circuito da polarização.

Exemplo: um homem fantasiado de vagina indo até um encontro feminista. Capriche na manchete. A linha “oficina de siririca feita com dinheiro público na USP” é bem suculenta. Vai revoltar quem acredita que investimento em educação superior é desperdício. Vai ser um prato cheio para quem precisa mostrar constantemente como os homens são babacas. E com estes dois pólos opostos unidos por um fio absurdo, cria-se uma eletrizante corrente de propagação.

Em seu livro, Holiday conta diversos casos de como usou essa tática a serviço de clientes. Já na introdução, confessa que ele mesmo vandalizou cartazes de um filme considerado machista que foi contratado para promover. Colou posters em um muro e por cima fez uma pichação dizendo que o autor deveria ter as suas bolas arrancadas, ou “algo do tipo”. Tirou a foto da cena montada com o próprio celular e enviou para jornalistas com um email falso, sugerindo o furo de reportagem: “olha o que tá rolando aqui na minha área”. Com foto e narrativa bem mastigada, blogs e sites de notícias começaram a falar do filme e da polêmica que ele estava provocando. Aí bastou pegar esses links e enviar para grupos feministas falando a data e horário da estreia em cada cidade, convocando a turma para se manifestar. Depois, um email para emissoras de TV, informando que haveria um protesto na porta do cinema. Aí foi só pegar os vídeos das mulheres protestando e enviar para alguns homens que lutam pelo direito de se expressar livremente, convocando um contra-protesto para a próxima estreia. Pintava um quebra-pau generalizado e a espiral escalava ainda mais, ganhando a atenção de quem nem estava ligando. Até o momento em que todo mundo precisava ver o tal filme para saber a razão de tanta confusão.

Malditos blogs

Laura B. era assessora de imprensa do comitê de campanha contra a proibição do comércio de armas de fogo no referendo de 2005. O link do meu blog com a notícia de um suposto traficante que apoiava a proibição chegou ao seu conhecimento. Ela entrou em contato pedindo informações de como conseguiria falar com o Xaxim. É claro que eu passei o contato.

É assim que muitas notícias falsas são fabricadas. Com o surgimento dos blogs, qualquer um passou a se qualificar como fonte. Com as redações cada vez mais precarizadas, tendo que produzir notícias em um grande volume para atender a demanda incessante do digital, os elementos para a boataria online correr solta estavam dados. O manual do manipulador de mídia é bem claro em seus ensinamentos: plante as notícias em blogs, inevitavelmente elas chegarão ao grande público ao serem replicadas por jornalistas da mídia tradicional.

Essa alquimia do mal se intensificou com a chegada da mídia programática. A remuneração dos blogueiros ficou diretamente ligada ao volume de visitas que conseguiam gerar. Pouco importa o que está sendo reportado, os anunciantes não têm essa visibilidade. O número de impressões e cliques é pago ao Google e depois repassado aos blogs. Patrocinadores perderam o vínculo com os sites que estão apoiando. O importante é aparecer para os leitores, onde eles estiverem, consumindo o conteúdo que for.

Extremismo e sensacionalismo geram cliques. Muitos cliques. Financiados por um rio de dinheiro fluindo a cada impressão de página, com conteúdo real ou falso, muitos blogs prosperaram e superaram a mídia tradicional em faturamento e audiência. Jornalistas foram substituídos por especialistas em que palavras usar para atrair um volume maior de buscas. Tudo muito frio e automatizado. Ou melhor: programático.

Aposentadoria precoce

Quando escreveu esse “Manifesto das Fake News”, Ryan tinha apenas 25 anos. Em tão pouco tempo de vida, com uma carreira meteórica e um sucesso mundial, ele conseguiu se aposentar. Ainda emplacou outro campeão de vendas dois anos depois, em 2014: Growth Hacker Marketing: A Primer on the Future of PR. Livro que fundou a disciplina de “growth marketing”, departamento que hoje é indispensável em qualquer startup descolada.

De 10 anos para cá, desde que Ryan saiu do circuito, o mundo online mudou muito. Os “blogueiros” evoluíram para “influenciadores digitais”. Hoje, os criadores de conteúdo não vivem só de seus textos nos “diários virtuais”, mas de qualquer fragmento de mídia que publicam na rede, nas mais diversas plataformas.

A regra magna segue valendo. Nestas eleições vimos os candidatos visitando inúmeros nichos, nos mais obscuros “mesacasts”, apelando para os votos em diversos contextos em um clima de “papo de boteco”. Essa é a era do micro influenciador e nesse sentido os ensinamentos do manipulador envelheceram muito bem. A máxima de seduzir o “micro” para pautar o “macro” é cada vez mais verdadeira.

As cenas de vários outdoors de campanha que apareceram nos últimos meses, alguns deles vandalizados só para viralizar, lembram muito a técnica que Holiday relatou na introdução de seu primeiro livro. Não importa se é um outdoor polêmico em uma cidade do interior que quase ninguém passa. O que importa é quantas pessoas viram a foto reproduzindo aquela mensagem subvertida nas redes sociais, onde todo mundo passa.

Hoje o grande estrategista digital se dedica ao estoicismo. No seu canal de YouTube, ele reproduz os ensinamentos filosóficos de conquistadores como Marcus Aurelius. Um autêntico general de pijama, vivendo dos louros de um livro que marcou como a comunicação e publicidade de guerrilha deve ser feita e que ainda dará munição para o futuro durante muito tempo.

A era Xi

Xi Jinping, presidente da China, conseguiu, no 20 º Congresso do Partido Comunista Chinês, um terceiro mandato e desfruta de um poder que não se via nas mãos de um só líder há quatro décadas. Mauricio Santoro, cientista político e professor-adjunto do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), nos ajuda a entender quem é esse Xi mais poderoso do que nunca e o que essa nova era representa interna e externamente para a China.

Como Xi Jinping se viabilizou para um terceiro mandato?

O Congresso do Partido Comunista Chinês não é uma competição. Numa eleição como a do Brasil, há vários partidos, movimentos, candidatos, cada um vendendo sua versão do que quer para o país. No caso da China, é uma disputa interna do Partido Comunista. Facções e tendências que em outros países seriam partidos diferentes, na China estão dentro do mesmo partido. A luta interna entre elas pode ser extremamente dura, até violenta. A grande novidade desse congresso é que Xi Jinping aparentemente conseguiu eliminar as outras tendências e colocar seus aliados nas posições mais poderosas. Isso significa que desde a morte do Mao Tsé-Tung, em 1966, ele é o primeiro dirigente da China que não vai ter que equilibrar suas decisões tentando conformar todas essas coalizões e alianças. Isso é bom ruim? Na minha visão, é ruim. O ponto forte desse sistema político chinês nos últimos 40 anos foi que, embora continue a ser uma ditadura, a China deixou de ser uma ditadura concentrada num só líder. Virou um regime mais colegiado, dividido por um grupo de elite de umas 250 pessoas, que formam o Comitê Central do Partido Comunista da China.

Esse grupo, então, não era homogêneo?

Havia um jogo entre essas várias tendências da elite partidária que representavam algum equilíbrio, pragmatismo, capacidade de adaptação. Tinha grupos com uma visão de se dar mais espaço para o privado, para investidores estrangeiros, e grupos que queriam manter uma força muito grande do Estado chinês. Esse equilíbrio entre as várias facções acabou resultando num modelo econômico pragmático de tentativa e erro e, embora a China seja formalmente um estado unitário, na prática as autoridades regionais nas províncias e nas grandes cidades tiveram uma flexibilidade grande com relação a Pequim para implementar sua própria visão de política. Elas tinham de entregar crescimento econômico, desenvolvimento. O caminho que elas fizessem para chegar lá contava pontos para o sujeito acender dentro do partido. Xi conseguiu afastar todo mundo que representava alguma possibilidade de alternativa, colocou só gente muito leal, em muitos casos sem tanta experiência administrativa. Isso cria o risco de muita coisa dar errado. E nos últimos ano ele já cometeu erros muito graves, que podem ser aprofundados.

Que erros você mencionaria?

Por exemplo, a estratégia de Covid zero. Era uma coisa que fazia sentido nos meses iniciais da pandemia, porque ainda não havia vacina. Ali era o isolamento ou a morte. No primeiro ano, a China foi super bem sucedida. Só que a partir do momento em que há várias vacinas não faz mais sentido manter esse isolamento profundo. Acabou virando algo muito ruim em termos do impacto econômico, da saúde mental da população chinesa, gerou muito conflito, protesto. Outro erro é que o governo tem retomado um controle do Estado sobre vários setores estratégicos da economia chinesa. Isso está sendo ruim para o crescimento dessas empresas, especialmente as tecnológicas, para a valorização delas nas bolsas de valores, a possibilidade de internacionalização delas. É como se o governo estivesse asfixiando a galinha dos ovos de ouro. O desenvolvimento desse setor privado na China dos anos 1980 pra cá é um marco do pragmatismo que o sistema teve até agora. O Estado continua mantendo controle sobre áreas como petróleo, energia elétrica, dos recursos naturais. Embora o partido comunista continuasse no controle político, havia um espaço maior para as empresas privadas o empresário individual.

O que está mudando?

Um exemplo é a Didi, o Uber chinês. Isso virou um problema político enorme, porque é a questão de quem vai controlar o acesso aos dados privados dos passageiros e como essa interferência maior do Estado significa uma dificuldade para a empresa se internacionalizar, esbarrando em problemas regulatórios. Há vários setores em tensão. E ainda tem um enorme abacaxi político e econômico que é o setor imobiliário da China. Na crise imobiliária nos Estados Unidos em 2008, ela veio porque as pessoas não tinham mais dinheiro pra pagar as hipotecas. No caso chinês, essa crise vem porque durante décadas o governo estimulou as empresas imobiliárias a construir tudo que era possível — casas, edifícios, shoppings, salas comerciais — e, com o tempo, houve um descolamento entre demanda e oferta. Agora, estão com problemas para fechar as contas. O caso mais grave é o da Evergrande. Isso vai se espalhar para empresas de outros setores, inclusive com risco de se espalhar pro setor financeiro.

O que deu certo no modelo político de Xi?

Primeiro, ele entregou um nível de desenvolvimento econômico muito bom. A economia chinesa hoje é 60% maior do que há dez anos. Imagina se algum presidente brasileiro tivesse entregue esse nível de crescimento. Nos anos 1990, 2000, a China crescia 10% num ano. Depois da crise financeira global de 2008, passou a crescer 6 ou 7%. Agora, depois da pandemia, parece que o novo normal vai ser algo em torno de 3%. Xi conseguiu entregar muito em termos de desenvolvimento econômico, o que já vinha do presidente anterior, Hu Jintao, apostando numa mudança no modelo econômico, na Economia de Circulação Dual. Isso significa depender menos das exportações e mais do mercado doméstico, aumentar o consumo das famílias. Ao se comparar a China com as economias desenvolvidas, o chinês consome pouco. A China é um país muito desigual, mas de uma desigualdade diferente da nossa.

Em que sentido?

Nossa desigualdade pega das pessoas que estão morando na rua e correndo atrás do caminhão de lixo até os bilionários. A China, em grande medida, conseguiu eliminar a pobreza extrema, que sobrevive em bolsões rurais mais isolados. Lá, há uma desigualdade mais entre uma pequena classe média, apertada ainda financeiramente, e uma classe média alta e a elite. Isso é um problema político grave para um partido que é comunista, ao menos no nome. Na doutrina, é um partido comprometido com uma sociedade mais igualitária. Os chineses mergulharam na economia do mercado nos últimos 40 anos e se tornaram uma sociedade individualista, competitiva, valorizando o consumo de luxo, ostentatório. Como a China é um país seguro em termos de criminalidade, as pessoas ostentam mesmo. Ao mesmo tempo, há uma massa da população vivendo de uma maneira muito apertada financeiramente.

Quem Xi Jinping é ideologicamente?

O governo chinês se classifica oficialmente, desde os anos 1980, como um regime de socialismo com características chinesas. Socialismo clássico era União Soviética, o Estado controlava os meios de produção. O socialismo com características chinesas é alguma outra coisa. Mas é, sobretudo, um regime em que o Estado controla alguns setores da economia, mas o setor privado tem um papel importante — seja o capital privado chinês ou o capital privado estrangeiro, as grandes multinacionais que operam na China. Nessa grande etiqueta, do socialismo com características chinesas, cabe tudo. É muito fácil para o partido colocar uma mudança dentro dessa classificação: o que funcionou é socialismo com características chinesas; o que não funcionou é alguma outra coisa. Havia uma certa experimentação pelos governos locais, isso mudava também com o tempo. Os anos 1980 e 1990 foram mais liberais economicamente. A partir da década de 2000, já começa um retorno maior do Estado. O nacionalismo se aprofunda depois da crise de 2008. Quando Xi chegou ao poder, em 2012, lançou uma mega campanha contra a corrupção que investigou mais de quatro milhões de pessoas. Imagine. E gente da cúpula do partido, ministros generais, gente do comitê central. Foi também uma maneira de afastar inimigos históricos. Mas ele não inventou nada. As pessoas realmente eram corruptas. Essa campanha teve um impacto enorme na sociedade chinesa. Foi um instrumento importante também da consolidação do poder de Xi. Ele representa isso, essa China que está resgatando algumas mensagens nostálgicas, alguns slogans da época do Mao, sobretudo no sentido de se criticar a desigualdade, de tentar retornar, pelo menos um pouco retoricamente, à ideia de um patriotismo, de um auto sacrifício, em contraste com os jovens individualistas de agora.

E o que deve acontecer agora?

O pacto entre as elites era de que ninguém governaria por mais de dez anos e não poderia haver um culto a personalidade. Ele está quebrando isso. No terceiro mandato, meu palpite é que ele vai aprofundar políticas mais conflituosas, como essas quedas do braço com os grandes empresários chineses, e vai tentar enquadrar esses caras dentro de uma lógica em que os interesses do partido são mais importantes do que a busca do lucro. Ele está rompendo também um certo modelo de pragmatismo que começou lá com Deng Xiaoping, de que “enriquecer é glorioso”. Era a formulação de que não importava a cor do gato, mas que o gato pegasse o rato no final. Com Xi, a cor do gato importa. Importa muito. A comparação talvez seja um pouco simplista, mas se pergunta se a China vai seguir o caminho da Rússia do Putin, de ter o poder cada vez mais concentrado e aí, quando você percebe, está vendo o presidente fazendo reunião com os generais numa mesa de 20 metros de comprimento. Será que daqui a cinco anos vamos ver Xi nessa mesa longa, invadindo o Taiwan? Eu acho que essa possibilidade existe.

O que o terceiro mandato de Xi representa na geopolítica?

Vou repetir uma fórmula da minha amiga Tatiana Prazeres. Os riscos pra China de Xi Jinping são basicamente três: concentração de poder, crescimento econômico mais lento e uma geopolítica mais conflituosa. Ao longo desses 10 anos dele na presidência, as relações da China com os Estados Unidos e com os vizinhos na Ásia pioraram muito. Já vinha piorando antes, mas isso se acentuou. Tem todas essas tensões envolvendo Taiwan; uma disputa de fronteira com a Índia que já gerou massacres, absolutamente desnecessários, pois não é uma área estratégica; uma série de tensões com o Japão; a relação com a Austrália está numa baixa histórica horrorosa. Isso virou um problema também porque os chineses estão mais poderosos. Essa riqueza econômica tem se traduzido no fortalecimento militar. A marinha de guerra chinesa hoje é, em número de navios, a maior do mundo. Isso reflete até na arte, na cultura chinesa. Atualmente há um boom do cinema patriótico. Pense no cinema americano dos anos 1980, com Top Gun. Há uma franquia do “lobo guerreiro”, um equivalente do Rambo, que é um ex-soldado das forças especiais chinesas e suas aventuras pelo mundo. Isso virou um símbolo da diplomacia chinesa, a “diplomacia do lobo guerreiro”. E agora tem o maior sucesso da história do cinema chinês, que é A Batalha no Lago Changjinn, um filme sobre a Guerra da Coreia contado da perspectiva dos soldados chineses. Tem esse clima de fortalecimento do nacionalismo. Agora, qual é o risco? Os vilões dos filmes são todos ocidentais...

Pioneiro do cancelamento

A internet e depois as redes sociais nos dão a impressão de terem criado padrões de comportamento radicalmente novos, porém, no mais das vezes, apenas amplificaram enormemente o alcance e a velocidade de práticas que sempre existiam. Muito antes do Instagram, do Facebook e do WhatsApp, mesas de bar já tinham sujeitos com opiniões simplistas e enfáticas sobre todos os assuntos, narcisistas compulsivos já buscavam atenção (likes) em seus grupos sociais, e pessoas já sofriam linchamentos morais que destruíam vidas e carreiras. Eram canceladas, embora ainda não com esse nome.

Ontem morreu, se não a primeira, uma das mais famosas e talentosas vítimas desses protocancelamentos, o músico americano Jerry Lee Lewis. Ele tinha 87 anos, e a causa da morte não foi divulgada.

Para quem não é familiarizado com seu trabalho nem viu a cinebiografia A Fera do Rock (trailer), de 1989, aqui vai um pouco de história dos primórdios do rock’n’roll. Jerry Lee Lewis nasceu em 1935 numa família pobre da Louisiana e aprendeu a tocar piano com primos, entre eles, Jimmy Swaggart, mais tarde um dos mais famosos e eticamente questionáveis televangelistas dos EUA. A religião era uma mola mestra da família, mas não o seduzia; Jerry Lee preferia a música dos bares negros à das igrejas brancas.

Em 1956, conseguiu um contrato com a Sun Records, que acabara de perder Elvis Presley, e desfiou uma sequência de sucessos, com destaque para Whole Lotta Shakin’ Going On e Great Balls of Fire. Tocava piano de forma alucinada, e suas apresentações lhe valeram o apelido de The Killer, o Matador. Se Elvis deu visibilidade ao rock e Chuck Berry consolidou seu formato, foi Jerry Lee Lewis quem determinou que roqueiro precisavam de energia.

Era um sujeito casadoiro. Aos 22 anos estava saindo do segundo matrimônio. E foi aí que a encrenca começou. Como a Sun ficava em Memphis, no Tennessee, Jerry foi viver com a família de seu baixista e primo Jay Brown, que morava na cidade. Lá conheceu a priminha Myra Gale, de 12 anos, filha de Jay, e os dois passaram a namorar.

No filme de 1989, Myra foi interpretada por Winona Ryder, então com 18 anos, o que dá a ideia de que a menina era do tipo fisicamente precoce. Não era. Jerry resolveu o drama de forma, supunha-se, honesta. Com o consentimento relutante dos pais dela, os dois se casaram discretamente em dezembro de 1957.

Aos olhos de hoje, e isso foi um avanço importante, a ideia de uma noiva de 12 anos é absurda. Mas, em 1957, essa era a idade mínima para mulheres se casarem com consentimento familiar na maioria dos estados do Sul dos EUA – para homens, era 16. Noivas muito jovens, aliás, eram mais comuns em meios conservadores, o que ressalta a hipocrisia do que aconteceu com o casal Lewis.

A situação ficou longe dos olhos do público até maio do ano seguinte, quando o único repórter que aguardava Lewis no aeroporto de Heathrow, em Londres, perguntou-lhe quem era a criança. O cantor disse que era sua esposa, mas jurou que ela tinha 15 anos. Na Inglaterra, a idade mínima para casamento era de 16 anos, e o repórter farejou uma história. Não apenas a imprensa inglesa apurou a verdadeira idade de Myra, como descobriu que o divórcio de Jerry com a segunda mulher, Jane Mitchum, ainda não havia sido assinado. Era bigamia, um crime – ele e Myra se “recasaram” em junho de 1958, após o divórcio ser formalizado.

O escândalo fez com que a turnê britânica fosse cancelada após poucos shows. Ao voltar para os EUA, o casal descobriu-se assunto favorito da imprensa sensacionalista e de dez entre dez conservadores. Seus poucos defensores alegavam que Jerry havia se casado com Myra, o que acabou enfraquecido pela não conclusão do divórcio. Ele e sua conduta eram um pretexto. O que estava sob ataque ali era o rock’n’roll e seu poder de “corromper a juventude”.

A carreira de The Killer no rock estava acabada. Em termos atuais, ele havia sido cancelado. Seu ostracismo artístico durou quase uma década, até que fez a transição para a country music no fim dos anos 1960. Myra já tinha mais de 20, e a morte do primeiro filho deles, afogado numa piscina aos três anos, enterneceu o público. E vamos combinar que, sem sexo entre parentes, inclusive menores, não haveria country music e talvez nem o próprio Sul dos EUA.

Jerry Lee Lewis deixa um legado musical rico e intenso, e também lições importantes. Primeiro que nossos atos e escolhas têm consequências. Segundo, a lembrança do poder que um escândalo amplificado pela mídia tem para destruir reputações e carreiras. E nem foi preciso o Twitter para isso.

Acabou! Acabou! Ouviram a voz do Galvão decretando o fim do segundo turno? É amanhã! Aqui estão as mais clicadas da semana por vocês, leitores:

1. UOL: Após fala homofóbica de Cássia Kis, Lúcia Verissimo posta foto das duas se beijando.

2. BBC: As fotos assombrosas do mundo microscópico dos animais.

3. Jornal Nacional: A triste despedida de Susana Naspolini.

4. YouTube: Ponto de Partida - Roberto Jefferson e o abandono de Bolsonaro.

5. YouTube: Ponto de Partida - Pedro Doria declara seu voto.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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