A rede social perfeita para democracias

Um modelo em que os algoritmos não premiem a intolerância com reconhecimento e afeto pode ser a saída para voltarmos a conversar uns com os outros

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

Talvez o principal problema que tenhamos hoje, no debate público sobre regulação das plataformas digitais, é o quanto ele se descolou do conhecimento acadêmico. O problema não é só de Lula. Não é nem que as ideias nas cabeças de políticos, juízes e burocratas, hoje, não tenham respaldo científico. Em geral, têm. Mas refletem as preocupações que vinham dos laboratórios alguns anos atrás. Não se acompanhou o conhecimento conforme ele evoluiu.

Desinformação, por exemplo, é vista hoje como sintoma. Não é a causa nem de perto. Se houvesse uma regra capaz de expurgar a mentira da internet, ainda assim a polarização agressiva estaria nos dividindo.

Um dos cientistas fazendo o trabalho mais interessante nessa área é o matemático holandês Petter Törnberg, da Universidade de Amsterdã. Classificá-lo como matemático, ou mais especificamente como lógico, é fiel ao departamento no qual está alocado. Ele, pessoalmente, prefere outra descrição. Geógrafo digital. O ramo talvez não exista oficialmente, mas descreve o que faz: compreender a interação entre seres humanos num espaço que, ora, é não-espaço. É virtual. O ciberespaço. E ele já observou interações o suficiente para ter uma tese forte que possa explicar o que ocorreu em nossas sociedades a partir de 2013.

A expressão usada por Thomas Traumann e Felipe Nunes, no livro Democracia no Abismo, é polarização afetiva. Não se trata da mesma polarização que havia vinte anos atrás. As linhas políticas e ideológicas engajam e dividem mais pessoas e de uma forma particularmente emocional. A existência de quem pense diferentemente parece ofensiva.

Os problemas, de acordo com as observações de Törnberg, são dois. Um está no algoritmo. O outro, nas próprias redes sociais.

Facebook e Twitter não puseram algoritmos em suas redes para nos dividir. Sua intenção era outra: são negócios, precisam se sustentar e o fazem vendendo publicidade. O que o algoritmo quer é compreender quem somos para, assim, nos apresentar propagandas que tenham maior probabilidade de serem clicadas. É onde as empresas fazem dinheiro. Os algoritmos, portanto, se concentram na questão de decifrar nossas identidades. E, a partir daí, nos agrupam com outras pessoas que tenham traços muito similares.

Aí entram no jogo duas características das próprias redes. A de que espatifam a geografia e a de que promovem encontros. Antes das redes, nossos encontros na internet eram fortuitos. Eram com as pessoas que calhávamos de achar por um ou outro interesse comum ou porque já conhecíamos no mundo real. Não convivíamos tanto assim. Era uma internet mais de leitura do que de conversas. Uma rede como o Orkut, por exemplo, ou mesmo o Facebook dos primeiros anos, acelerava e intensificava essas duas características da internet. Facilitava em muito reatar laços perdidos com quem convivemos noutros momentos da vida, assim como nos ajudava a reunir grupos que gostam de quadrinhos, ou do Flamengo, ou de música barroca. Ou de uma linha política.

Os algoritmos moldam essa lógica. Como são orientados a agrupar conjuntos de pessoas no entorno de suas identidades comuns, nós não encontramos mais ninguém. Nas redes, nos tornamos passivos. Elas que encontram pessoas com as quais somos agrupados. E isto promove um efeito em todos nós: o alinhamento de identidades.

É evidente que há pessoas que têm, em comum, a mesma religião, o mesmo interesse por armas e a mesma inclinação política. É só que, no mundo real, dificilmente vão se encontrar. Ou, caso se encontrem, juntarão um grupo de meia dúzia e vá lá. Nas redes é diferente. Somos lançados num agrupamento de centenas de milhões de outros humanos e um computador de presto nos distribui em conjuntos que reúnam muitos interesses comuns. A partir daí, nós mesmos fazemos o resto do serviço. Encontrar tanta gente parecida é reconfortante. Ainda assim, haverá arestas. Nós as resolvemos nos ajustando aos poucos interesses ou opiniões que não temos. Passamos, por exemplo, a nos interessar por armas ou a ter certas ideias sobre banheiros coletivos. Começamos a tornar homogêneas nossas identidades. Viramos massas uniformes.

Quando nossa identidade se alinha com a de muitos outros, o impacto psicológico é muito, muito forte. Petter Törnberg evoca a imagem do Senhor das Moscas, o romance que mostra pré-adolescentes que precisam sobreviver juntos mas terminam por se dividir em duas tribos, partindo para a violência.

Somos nós.

Uma das teses iniciais sobre esse fenômeno, e que ainda hoje é muito popular, é a da formação de bolhas. Ela não está de todo incorreta. Esse alinhamento de identidades leva mesmo à formação de bolhas nas quais nos metemos. Mas isto não quer dizer que as bolhas estejam isoladas. Pelo contrário. Nas redes, interagimos com pessoas diferentes de forma muito mais intensa do que no mundo real. E isso ocorre justamente em meio a um alinhamento de identidades que nos leva ao conforto do convívio com quem é muito parecido. O que nos leva à repulsa a todos que são diferentes.

Desinformação, fake news, tudo é sintoma. Tire-as da reta e o problema continuará ali, igual, de pé. Porque o problema principal é o do alinhamento de identidades e de como é reconfortante estar num grupo homogêneo. Toda conversa, nas redes sociais, se torna um ritual de reafirmação dessa identidade alinhada. Somos atores num palco eternamente demonstrando o quanto somos parecidos com os nossos e distintos daqueles outros. Para sublinhar a semelhança com uns e a diferença com outros, é preciso sempre buscar os itens na lista que mais nos separam. É preciso reagir com permanente indignação. Quanto mais intensos nos mostramos, maior nosso valor — e maior a premiação em likes, comentários, republicações. Aquilo que é indigno não pode ser tolerado. Dá prazer estar indignado com injustiça. É um ópio. E posts indignados viralizam.

As redes premiam a indignação permanente. Resolver a mentira na internet não nos tornará mais capazes de conversar.

Mas pode, sim, haver uma solução.

Um dos experimentos mais recentes no laboratório de Petter Törnberg foi uma simulação de Twitter. Ele e seus colegas construíram uma rede social e lá puseram 500 seres humanos artificiais. Algo assim se tornou possível com os grandes modelos de linguagem, os LLMs como o GPT. Aliás, usaram o próprio GPT, na versão 3.5. Cada robô ganhou uma preferência política, religião, time de futebol americano, cidade de nascimento, um conjunto de crenças e atributos. Aí leram todo o noticiário de um dia específico de 2020, ano em que ocorreu a última eleição presidencial americana. Depois foram postos para interagir numa versão reduzida do Twitter com três algoritmos diferentes.

No primeiro, o modelo punha em contato pessoas com interesses muito similares. O segundo era um modelo de descoberta mais próximo dos que existem nas redes. As pessoas são expostas àquilo que faz mais sucesso entre os outros. E, por fim, um terceiro modelo buscava o tipo de conteúdo que agradava igualmente a perfis com características distintas. Os resultados levaram a ambientes muito distintos.

Quando só existem bolhas e as pessoas se encontram apenas com quem é muito parecido, nunca há briga mas também há muito pouca conversa. Não desemboca numa rede social que seja popular, seria um péssimo negócio. O modelo de descoberta é justamente o que promove maior interação. Não é à toa que todas as redes, no mundo real, o utilizam. Mas é uma interação que rapidamente se torna áspera e violenta. O terceiro modelo leva ao meio termo. Seria uma rede menos viciante do que as atuais, menos agitada, mas ao promover encontros entre diferentes, resulta num tipo de conversa muito distinto do que encontramos hoje.

Seria uma rede muito mais apta a estimular democracias. Talvez, no entanto, um negócio um tanto menos lucrativo do que o atual.

Os estudos de Törnberg não são definitivos até porque não podemos afirmar que os grandes modelos de linguagem se portem exatamente como seres humanos. Mas é uma explicação bastante mais sólida para o porquê de termos mergulhado no caos. O presidente Lula não está de todo errado. Algo aconteceu mesmo em 2013 e fazer política ficou bastante mais difícil. Mas o problema não está nas fake news. Talvez não esteja, sequer, no surgimento de uma extrema direita. É possível que sejam apenas sintomas de um mundo no qual passamos a conversar de uma forma diferente sobre política.

A intolerância não está apenas neles. Está em todos nós. Afinal, as redes premiam a intolerância com reconhecimento social e afeto.


*Editor-chefe

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