Edição de Sábado: O mundo transformado pelo coronavírus

Pandemias mudam o mundo. Ainda estamos no início do processo — não no meio, não no fim, mas no início. Por isso talvez não seja tão claro. Mas a história o mostra. A Peste Negra, que tomou o planeta na virada da década de 1340 para 1350, deixou uma Europa transformada. O que antes era uma cultura profundamente católica foi obrigada a lidar com a incapacidade de a religião salvar qualquer um. O humanismo tomou as rédeas, a Idade Média foi sendo deixada para trás conforme o saber científico ganhou valor e uma arte com o humano no centro — e não mais Deus — se tornou predominante. A virada para a Renascença, numa época em que os ritmos eram todos muito lentos, foi a maior herança da maior de todas as pandemias. Mas a mais recente tampouco foi distinta. Quando entre 1919 e 20 a primeira influenza girou o mundo apelidada de Gripe Espanhola, transformou o espírito da humanidade. Falamos tão pouco daquela gripe. Entre 1914 e 18, a Primeira Guerra matou entre 15 e 22 milhões pessoas. No ano e meio seguinte, a pandemia levou mais de 50 milhões. Se o mundo anterior era um duma sisudez ainda oitocentista, vestidos que a tudo cobriam e moralidade vitoriana, os anos 1920 foram em tudo diferentes. Mulheres de cabelos curtos, vestidos das melindrosas acima do joelho e, na música, as sinfônicas substituídas pelo jazz e pelo choro, a explosão do cinema, a popularização do telefone assim como do rádio. Foi um tempo de rápido avanço tecnológico, busca acelerada por vida e felicidade, por quebra de normas. Pandemias fazem isso. Aceleram tecnologias que promovem proximidade, mexem nos valores de uma sociedade, reposicionam os critérios sobre o que é importante. Muitos dos sistemas de saúde pública europeus nasceram após a Gripe Espanhola. Pois o mundo já está sendo transformado. Como das outras vezes, haverá transformações na cultura, na economia, nos valores — e tudo movido a tecnologia. Não temos como prever tudo. Mas há pistas.

Não são pequenas as mudanças provocadas em nossas rotinas pela política do isolamento social. Quando ficamos em casa, tudo se transforma. Os cuidados com filhos, a comida e a arrumação, por exemplo, se misturam com as horas de trabalho. A consequência imediata é que aquele trabalho que antes era invisível, se impõe no centro da vida. O trabalho de auxiliares domésticos, o trabalho feminino. A segunda consequência é que os horários se misturam. Não é mais possível trabalhar de 9h às 17h, porque o intercalar das funções domésticas e profissionais força um novo tipo de rotina.

Pois as consequências econômicas da pandemia obrigam também empresas a se reinventarem. E se no centro do dilema está a queda em faturamento, o repentino teste do home office apresenta para muitas companhias uma decisão a tomar. Será que o espaço físico do escritório vale o custo? Muitas estão concluindo que não. A megaseguradora americana National Insurance já decidiu que 90% de seus funcionários não voltarão para os escritórios. A holding alimentícia Mondelez, proprietária de marcas como Oreo, Lacta, Halls e Club Social, ainda não tem números. Mas sabe que botará imóveis à venda. Ocorrerá o mesmo com o banco Morgan Stanley. Os funcionários do Twitter foram avisados de que poderão trabalhar de casa para sempre, caso desejem. O mercado imobiliário comercial vai despencar. A ideia de ‘centros da cidade’ voltados ao trabalho, lentamente desaparecerá.

O Twitter, nesta política, foi além: se propôs a reembolsar funcionários pelos gastos que tiverem com mesas, cadeiras e a infraestrutura necessária para o trabalho. Outra companhia do Vale do Silício, a Slack, pagará US$ 1.500 para cada funcionário adaptar sua casa ao trabalho, além de oferecer a todos uma verba mensal para gastos com internet e celular. Será inevitável que esta infra de telecomunicações na residência dê um salto de qualidade, o que ocorrerá inicialmente com o aumento da velocidade da banda larga fixa e, no salto subsequente, se consolidará com o 5G.

A convenção do trabalho de 9h às 17h veio da Era Industrial. Fábricas precisam que todos seus funcionários estejam no mesmo prédio porque a produção exige que trabalhem concomitantemente — um coloca o eixo, a dupla seguinte aperta os parafusos das rodas e na linha de montagem alguém encaixa a carroceria. No tempo do trabalho digital, email, serviços de mensagem e reuniões em vídeo não só eliminam a necessidade de proximidade física como, em muitos casos, dispensam também que o trabalho seja concomitante. Ferramentas de trabalho colaborativo, como os aplicativos de Office em nuvem, ajudam nesta transição. Estes softwares serão acelerados. E assim a rotina da casa e a do trabalho podem ser organizadas em paralelo. Uma das teses é de que as sedes das empresas se tornarão mais parecidas com espaços de conferências, mais preocupados com gerar intimidade entre pessoas que trabalham juntas mas se veem pouco do que com o dia a dias das funções. Mas a transformação arquitetônica também chegará às casas, conforme se tornam espaços de funcionalidade dupla. Um escritório improvisado na mesa de jantar funciona por um período de exceção, mas não pela vida toda.

Assim, também a automação na residência passará a predominar. Robôs que aspiram e lavam vidros já são acessíveis. Outros, que cozinham, passam roupas ou camas que se fazem já existem, embora ainda com o preço um tanto alto demais. Não é só aí que está a automação de nossas casas. Aparelhos de ar condicionado e luzes que, carregados de sensores, vão ligando e desligando como se adivinhassem as nossas necessidades se mostrarão importantes aliados na economia de energia. Mantém o espaço sempre agradável sem que precisemos nos preocupar. É uma forma de aliviar um pouco da função e criar espaço para o Netflix.

Uma das promessas tecnológicas já há duas décadas badalada sem nunca se concretizar é a da realidade virtual. O trabalho em casa pode se tornar um catalisador. Se lentamente estamos nos acostumando não só às reuniões, mas também à mesa de bar via teleconferência, a sensação de proximidade aumenta com realidade virtual. Com os óculos especiais hoje, hologramas amanhã, estamos essencialmente juntos, na ilusão de corpo presente embora fisicamente distantes. E se estar em casa é algo que se tornará mais e mais comum, porque afinal o dinheiro vai ficar curto para muitas saídas durante um bom tempo, realidade virtual também oferece uma nova possibilidade de entretenimento: na forma de jogos, de bares virtuais ou mesmo um novo tipo de ficção. Como o encontro do teatro com o cinema.

Dinheiro curto é uma questão relevante para encarar este encontro entre casa e escritório, trabalho e vida pessoal, com a tecnologia responsável pela costura de cada dupla. Uma das razões que levará empresas após a pandemia a adotarem o home office é economia após um período de negócios lentos. O mesmo motivador acelerará também a adoção de robôs e softwares de automação, o que inevitavelmente levará a menos empregos. Inúmeros governos do mundo se viram forçados, nestes últimos meses, a fazer desembolsos como, no Brasil, os R$ 600 por três meses do auxílio emergencial. Há anos o Vale do Silício, como solução para o desemprego causado por tecnologia, propõe a adoção de programas de renda mínima universal. Todo cidadão tem direito a receber uma quantia mínima por mês. Trata-se de uma maneira de pensar o Estado radicalmente diferente daquele do tempo da indústria.

Não se trata apenas de uma política de distribuição de renda. Ela vem à tona pela constatação de que a indústria da tecnologia move quantidades muito grandes de dinheiro enquanto emprega muito pouco — portanto, pode ser sobretaxada. Como causa desemprego pelos processos de automação, no período de transição de um mundo industrial para o digital políticas de renda mínima resolvem um problema social. Mas vai além: enquanto salva muitos da fome, motiva a criação. Se uma das promessas da Era Digital é a de acelerar a economia criativa, pagar para que pessoas possam escolher ficar em casa enquanto criam novos negócios pode se mostrar também uma estratégia econômica de sucesso a médio e longo prazo. Tempo de criação é relevante. Seria elevar o grande experimento das garagens do Vale do Silício a uma escala global. Porque novos negócios exigem tanto criatividade quanto este tempo para que o criador se dedique a desenvolver suas ideias.

E, se tudo der certo, a hora do rush se tornará uma relíquia de antigamente, história que nós enquanto avós contaremos para os netos. Pandemias sempre transformam o mundo. São traumas, são trágicas, impõem o rompimento da vida cotidiana. Mas se a história é guia, uma coisa é certa. Buscaremos a felicidade e vamos criar um mundo novo.

As cidades sobreviverão ao futuro?

Na década de 1850, as cidades de Nova York, Paris e Londres reconstruíram seus sistemas de esgoto em resposta à pandemia global de cólera que matou mais de 1,5 milhão de pessoas. Em seguida veio uma nova era de saneamento urbano que se espalhou pelo mundo. A gripe espanhola de 1918 matou cerca de 50 milhões de pessoas e, no entanto, grandes cidades cresceram em sua esteira. De fato, a história mostra que as pessoas frequentemente se mudam para as cidades após pandemias por causa das melhores oportunidades de emprego e dos salários mais altos com a crise econômica. Mas e agora? As cidades sobreviverão ao coronavírus? Para Maimunah Mohd Sharif, diretor executivo do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas, podemos, inclusive, criar um futuro melhor. A revista Foreign Policy publicou um conjunto de análises de urbanistas sobre o futuro. Pode ser uma nova era.

A estratégia do Softbank em meio a pandemia

Há 10 anos, Masayoshi Son apresentou aos investidores um plano de 300 anos. A ideia do CEO do Softbank era se preparar para um futuro no qual os computadores iriam gerenciar o planeta de forma mais inteligente do que os humanos. Em um dos slides, o plano já contava com um “vírus desconhecido”. Mesmo assim, em março deste ano, Son quebrou seu silêncio de três anos nas redes sociais e tuitou. Está preocupado com o novo coronavírus.

Não é a toa. 40% do portfólio do seu Vision Fund de US$ 100 bilhões, o carro-chefe do plano e um dos maiores fundos de investimentos do mundo em startups de tecnologia, são em negócios de transporte e imobiliário — alguns dos setores mais afetados pelas quarentenas.

Os efeitos já começaram a aparecer: entre as startups apoiadas pelo Softbank, pelo menos seis já adiaram os planos de abertura de capital para 2021. E o Softbank teve um prejuízo de US$ 12,7 bilhões no primeiro trimestre deste ano — o seu pior resultado já registrado. A queda na receita foi causada principalmente pelas perdas significativas no Vision Fund, que reportou prejuízo de US$ 17,7 bilhões no último ano fiscal.

O problema vem antes do vírus. Em novembro, o SoftBank já indicou que cerca de 15 das 88 das empresas do fundo provavelmente iriam à falência. Ainda 50 delas tiveram um corte na avaliação durante os 12 meses encerrados em 31 de março. Entre elas estão o WeWork e o Uber. A startup de coworking chegou a ser avaliada em US$ 47 bilhões, mas hoje está em US$ 2,9 bilhões. O mesmo com o Uber, que caiu em mais de US$ 10 bilhões no ano passado.

Esses problemas vêm da própria estratégia agressiva que tornou o Softbank reconhecido. As startups recebem grandes quantidades de dinheiro e sem necessariamente serem lucrativas, crescem em rápida escala com base em trabalhadores independentes.

A estratégia agressiva liderada por Son vem dando sinais de que chegou ao fim ou pelo menos está desacelerando. O Softbank diminuiu a meta de US$ 108 bilhões do seu segundo Vision Fund, que por enquanto tem US$ 38 bilhões do próprio grupo. A empresa também anunciou um plano para recomprar US$ 41 bilhões de suas ações. Ainda abandonou um acordo de US$ 3 bilhões para comprar ações de investidores da WeWork, que era um plano para a reestruturar a startup depois de seu fracasso no IPO. O diretor financeiro do SoftBank, Yoshimitsu Goto, disse que a empresa será muito mais conservadora.

A nova abordagem não tem agradado o mercado. A agência de classificação de risco, Moody’s elevou ainda mais o crédito da empresa ao status de junk, citando sua “estratégia financeira agressiva” para continuar coletando capital para o Vision Fund.

Já outros são mais otimistas. Essa não é a primeira vez que Son passa por uma crise. O CEO perdeu 99% de seu patrimônio nos anos 2000 com o estouro da bolha do mercado americano. Naquela época, grande parte dos investimentos do Softbank eram em empresas de internet. Mesmo assim, no mesmo ano, ele investiu US$ 20 milhões em um e-commerce que, 14 anos depois, se tornaria o gigante Alibaba — hoje avaliado em mais de US$ 100 bilhões. Para Oliver Matthew, do grupo de investimento CLSA, o vírus pode ajudar a acelerar a mudança global que Son já vinha se preparando.

Divulgada uma terceira foto de Robert Johnson

Diz a lenda, que Robert Johnson encontrou o diabo numa encruzilhada e vendeu sua alma em troca de sucesso. Mas a verdade é que muito pouco se sabe da vida real de Robert Johnson, nem mesmo sua certidão de nascimento, se é que teve uma, jamais foi encontrada. Johnson nasceu em 1911, sua mãe era filha de escravos no Mississippi. Viveu como músico errante. Pulando de cidade em cidade. Gravou apenas 29 músicas, em duas sessões de gravação em novembro de 1935. Morreu de forma até hoje pouco explicada em 1938, com 27 anos. Nunca conheceu sucesso em vida. Foi só na segunda metade do século 20, com a explosão do Rock and Roll, que Johnson passou a ser reconhecido com um dos grandes mestres do Blues. Sua música influenciou gerações de músicos e foram gravadas por, entre outros: Rolling Stones, Eric Clapton e Led Zeppelin.

Até recentemente apenas duas fotos dele eram conhecidas. Uma, tirada para a capa do disco, no estúdio do Mississippi em que fez suas gravações. Mostra o músico em um elegante terno de risca de giz, chapéu de feltro e seu inseparável violão. E outra, de, em torno de 1930, com Johnson em uma cabine fotográfica, camisa branca, gola, aberta. Um cigarro pendendo da boca, e seu violão à mão.

Surgiu essa semana uma terceira. Estava guardada desde a década de 30 com Annye Anderson, meio-irmã de Johnson, que estava com ele quando tirou essa foto. Também em uma cabine, mais ou menos na mesma época da outra. Johnson aparece com suspensórios, e claro, seu violão. A foto é a capa do livro que Anderson está lançando. Irmão Robert, em que conta suas lembranças de infância, como caçula de Johnson, que morreu quando ela tinha apenas 12 anos.

Ouça: As gravações completas de Robert Johnson. (Spotify)

Veja: O diabo na encruzilhada. Documentário da Netflix sobre a história de Robert Johnson.

E como há de ser, as mais clicadas da semana:

1. Twitter: Mais uma capa magistral da New Yorker.

2. Spotify: Playlist feita por Gilberto Gil para curtir em casa.

3. Panelinha: Receitas que impressionam.

4. Google: O Doodle em homenagem a Israel Kamakawiwo'ole, mestre do ukelele.

5. Galileu: Exercícios ao ar livre: quais são as recomendações?

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A rede social perfeita para democracias

24/04/24 • 11:00

Em seu café da manhã com jornalistas, na terça-feira desta semana, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sugeriu que a extrema direita nasceu, no Brasil, em 2013. Ele vê nas Jornadas de Junho daquele ano a explosão do caos em que o país foi mergulhado a partir dali. Mais de dez anos passados, Lula ainda não compreendeu que não era o bolsonarismo que estava nas ruas brasileiras naquele momento. E, no entanto, seu diagnóstico não está de todo errado. Porque algo aconteceu, sim, em 2013. O que aconteceu está diretamente ligado ao caos em que o Brasil mergulhou e explica muito do desacerto político que vivemos não só em Brasília mas em toda a sociedade. Em 2013, Twitter e Facebook instalaram algoritmos para determinar o que vemos ao entrar nas duas redes sociais.

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