Edição de Sábado: A liberdade bolsonarista e a liberal-democrata

Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro tratou o debate sobre vacinar ou não como uma questão de liberdades individuais. Já havia usado o mesmo discurso para o uso de máscaras ou para a prática da quarentena. A linguagem parece a do liberalismo, mas não é. É um sequestro do termo. O liberalismo trata da liberdade de não ser oprimido, na garantia de que, perante a lei, todas as pessoas serão iguais. O bolsonarismo enxerga a liberdade de ignorar os direitos dos outros. Quem manda pode, quem tem juízo obedece. Não é novo este sequestro do conceito de liberdade e, por isso, não é à toa que seja um dos temas tratados pelo editor do Meio, Pedro Doria, em seu novo livro — Fascismo à Brasileira. A obra narra, como se fosse um thriller, a origem do Integralismo nos anos 1930 — aquele que foi o maior movimento fascista fora da Europa. Hoje, publicamos um trecho do ensaio final, que trata justamente das semelhanças e diferenças entre aquele fascismo e o atual bolsonarismo. Incluindo este debate sobre o que quer dizer ‘liberdade’.

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Benito Mussolini era um homem brilhante. Vinha de um treino político solidamente ancorado entre o anarquismo, o socialismo e todos os aprendizados sobre como mobilizar gente que ambos acumularam ao longo de dúzias de anos. Era um leitor voraz, Mussolini. Rompendo com o Partido Socialista por sentir que devia combater como soldado pela Itália, ao final do conflito precisou inventar um novo campo político onde se encontrar. Daí construiu uma síntese louca. A mistura de um movimento revolucionário com um reacionário. A promessa de instaurar ordem por uma revolução — é uma contradição em termos. Como se fosse possível fundir a extrema-esquerda com a extrema-direita. Pois foi. E, fincado na extrema-direita, juntou um grupo de veteranos das tropas de elite italianas na guerra, os organizou utilizando as técnicas da esquerda, cultivando os ritos da direita, assim criando os camisas-negras. Inventou o fascismo no caminho — a junção de um movimento revolucionário com um reacionário. O encontro dos extremos.

Como os comunistas, criticava a burguesia liberal olhando de baixo. Mas, diferentemente do comunismo, não baseava sua crítica numa leitura econômica da história, no movimento de grandes blocos sociais. Baseava sua crítica numa leitura moral da história. Como a direita reacionária, remetia à fantasia de um passado virtuoso que teria sido perdido por falta de comando, falta de vontade. Por fraqueza. Demonstrações de força eram parte importante do credo fascista.

Ocorre que o fascismo é muito particular. É o caminho pelo qual a extrema-direita captura a devoção daqueles que os comunistas chamavam proletários. O fascismo deixa a esquerda marxista sem discurso — em sua essência, é um nó tático. Porque se o proletário é o único que pode decidir sobre seu destino e ele escolhe o fascismo, como responder? E o fascismo acena com uma identidade positiva. O indivíduo não é proletário. Não é essa sua identidade — não são as condições econômicas que definem a pessoa. Sua identidade é ser da Itália. Um filho, uma neta, do Império Romano que inventou a Europa. A pessoa é especial. Dribla, simultaneamente, marxismo e liberalismo. O liberalismo porque sua defesa exige um debate sobre liberdade que não é intuitivo. Muito menos emocional — não há o apelo nacionalista. O comunismo porque o fascismo oferece não a utopia da superioridade na revolução de depois, mas a utopia da superioridade do povo a quem você pertence agora.

A década de 1930 é fruto da consolidação da economia industrial na Europa e do terror da Grande Guerra. Aquilo desestruturou sociedades inteiras, gerou desemprego em massa. Foi nesse ambiente que o radicalismo se instaurou. É aí que encontram espaço comunismo e fascismo. Não vivemos uma guerra como aquela. Mas estamos vivendo um período de transição econômica equivalente. A Era Industrial acabou e se inicia uma nova, com a economia baseada no Digital. O período de transição da agricultura para a indústria provocou êxodo rural e, no primeiro momento, gerou muito desemprego. É evidente. Negócios que funcionavam bem fazia décadas de repente paravam de funcionar. Novos negócios surgiam exigindo mão de obra especializada de outro tipo. Havia muitos sem as habilidades necessárias para a nova economia. A transição da indústria para o digital não é diferente — empregos que existiam desaparecem, novos surgem, há crise de habilidades e uma desorganização geral do todo. Como no passado, gera angústia pessoal. Incerteza a respeito do futuro. Nostalgia de uma estabilidade que existiu e vai demorar até reaparecer. A diferença é que o Brasil era um país periférico e não viveu aquela crise à toda. O Brasil atual está sentindo o impacto da transformação digital. Muitos brasileiros urbanos encontram na chamada gig economy, os precários subempregos baseados em aplicativos de transporte, entregas e tantos outros, o sustento que antes extraíam de empregos que lhes garantiam plano de saúde, aposentadoria. Segurança.

São muitos os grupos afetados. Operários, mas também muitos com diploma superior que trabalham em ramos mais abalados pela mudança. Os movimentos populares ancorados nesta insegurança, na Europa anterior à Segunda Guerra, levaram a regimes totalitários. Talvez porque as circunstâncias da atual transição sejam mais leves, os mesmos movimentos populares existem. São inúmeras as passeatas nas quais a indefectível máscara de Guy Fawkes, na versão quadrinizada por Alan More em V de vingança, salpicam pelo mundo — representam o retorno de movimentos anarquistas como os que Mussolini e Plínio enfrentaram. E, claro, como antes desaguam em uma Nova Direita que tem por características ser nacionalista, xenófoba e autoritária. Mas que se equilibra dentro de regimes democráticos. Porque esta é uma diferença fundamental entre aquele tempo e o atual. Havia convicção de que a democracia era um sistema de governo fracassado. O discurso que o líder do Integralismo, Plínio Salgado, fazia, de desprezo à democracia liberal, era compartilhado por muitos, e não apenas na direita. Hoje, desprezar democracia é um tabu. É preciso, ao menos, fingir-se democrático. Vale para a presidência de Donald Trump nos EUA, a de Viktor Orbán na Hungria, e a de Jair Bolsonaro no Brasil. Muitos cientistas políticos se referem ao regime construído por Orbán como Democracia Iliberal. Parece democracia na forma, não respeita mais liberdades individuais.

O que nos traz ao principal debate do tempo. A grande novidade política do mundo, não apenas do Brasil, neste princípio de século é o ressurgimento desta Nova Direita, que opõe seu nacionalismo aos ideais do sistema de governança global criados no pós-guerra e ampliados a partir da Globalização nos anos 1990. Que trata com desprezo os ritos da democracia liberal — que, ora, é abertamente iliberal. Que é xenófoba, com uma profunda desconfiança dos grupos que considera diferentes. Que não reconhece legitimidade na oposição, que despreza imprensa livre, e trata política como guerra. Que é tão atraente, principalmente, para homens jovens.

O bolsonarismo é um novo fascismo?

Não custa lançar mão da maior diferença. O discurso econômico (ainda) é liberal — de um liberalismo radical, que remete à Escola Austríaca. Este não é um detalhe. Para lançar sua rede, uma vez no poder, o fascismo precisa do Estado. É através do Estado que doutrina pela educação. Que captura as indústrias pelo controle que exerce sobre a economia. Que regula as mensagens seja pela arte, seja pela imprensa, graças aos monopólios sobre violência e financiamento. O ministro da Economia, Paulo Guedes, passou a vida pregando a doutrina do Estado mínimo. Não é só o oposto. É também importante compreender de onde vem esta sua ideologia.

O liberalismo, que nasce com John Locke na segunda metade do século 17, evoluiu pelo tempo através de inúmeros filósofos e economistas, se bifurcou incontáveis vezes. Não há o liberalismo — há liberalismos. Em comum, todos têm a defesa das liberdades individuais. Mas o que isto quer dizer varia de acordo com o tempo e o lugar. Os utilitaristas ingleses da segunda metade do século 19 enxergavam os problemas sociais causados pela rápida industrialização e concluíam que ninguém é livre se não tem renda que lhe garanta dignidade mínima. É este liberalismo que vai dar no New Deal americano dos anos 1930, puxado pelo inglês John Maynard Keynes. É este liberalismo que apresentou ao mundo o caminho pelo qual democracias eram, sim, capazes de oferecer soluções aos novos problemas que, muitos defendiam, só regimes de força como os fascistas e comunistas tinham como encarar.

Mas o mundo visto pelos contemporâneos de Keynes em Viena era outro. Ludwig von Mises e Karl Popper eram judeus vivendo na Áustria em que o nazismo ia lentamente ocupando os espaços. Friedrich Hayek não era judeu, mas havia sido criado entre judeus e tinha, entre eles, seus maiores amigos. No mundo destes três homens, o Estado era violentamente opressor. Era a encarnação da violência. Se o liberalismo que propunham é radical no desejo do Estado mínimo é porque respondiam à realidade de um Estado fascista. De um Estado total.

Buscar o Estado mínimo e promover o fascismo são incompatíveis. Numa realidade alternativa na qual jamais houve a pandemia, em que o governo Bolsonaro seguisse o rumo natural livre de pressões externas, para ser fascista teria de promover um rompimento com sua política econômica. Porque são duas forças contraditórias. O liberalismo defendido por Guedes é, no âmago, uma ideologia de destruição do Estado que tem por objetivo impedir que ele se torne fascista. Atua justamente na crença de que algo como o fascismo é inevitável.

É, portanto, contraditório?

Não. Quando Bolsonaro e seguidores falam em liberdade, não tratam da mesma liberdade dos liberais. A busca do liberalismo é a do Estado regido por leis, um Estado no qual todos os cidadãos têm direitos equivalentes. É preciso haver um Estado para garantir esta igualdade. Mas um governo que fala da liberdade de garimpeiros e madeireiros que desmatam perante o “excesso” de regulamentações ambientais trata de outra coisa pela mesma palavra. E a liberdade de se armar com o equipamento que desejar, de comprar munição sem ser rastreado, é uma que só liberais muito radicais defenderiam. Porque é a liberdade do mais forte se impor sobre o mais fraco, algo que o liberalismo inglês jamais toleraria. É iliberal para boa parte dos liberais, mas no limite tem pontos de contato com a Escola Austríaca.

Assim, voltamos ao coração daquilo que define o fascismo. É simultaneamente reacionário e revolucionário. Não parece haver, no discurso bolsonarista, o componente revolucionário. Não quer construir um Estado radicalmente novo. Quer apenas destruir sem dar pistas do que colocará no lugar. Porém há muito do reacionário: porque o espírito de uma cultura política brasileira a mais primitiva, a mais remota, está lá vivo. Ardendo para ser visto. Está em só aceitar a tradicional família cristã, de pai, mãe e filhos. Está na plena identificação com o lado mais primitivo do mundo agro, a raiz da economia brasileira. Está no namoro com a monarquia e seus símbolos — um Orleáns e Bragança quase foi candidato a vice-presidente. Mas vai além. Porque este garimpeiro, este madeireiro que quer derrubar a mata para fazer dela pasto, para nela plantar e vender, para repassar a madeira e o metal, então talvez revender a terra que conquistou com “as próprias mãos” no que em sua visão era só coisa abandonada — isto é também um espírito brasileiro. Radicalmente brasileiro, aliás, embora perdido há muito no passado. Porque assim eram os bandeirantes.

Este apego que se recusa a permitir que a sociedade avance e se transforme, que quer impor os trejeitos do passado, isto é reacionarismo. Jair Bolsonaro é reacionário no talo. O argumento dá voltas e se encontra. Plínio queria regras, muitas regras. Bolsonaro deseja sua completa ausência. A democracia liberal ocorre entre os dois extremos.

Zoom do Meio

Na quinta-feira próxima, dia 10, faremos uma conversa ao vivo com Pedro Doria. Estes encontros, via Zoom, serão recorrentes com as pessoas que editam o Meio. Não são lives — são conversas via Zoom abertas aos assinantes premium. Se quiser participar, basta se inscrever.

É... A gente sabe. Vagas limitadas e inscrição num sábado. Por isso, decidimos abrir as inscrições às 13h. Vamos bater um papo :-)

Startups brasileiras entram na corrida pelo IPO

Empresas de tecnologia são hoje as grandes vedetes nos mercados americanos. Começaram a semana batendo recordes de valorização, mas levaram um belo tombo entre quinta e sexta-feira. Na bolsa brasileira, temos poucas empresas do setor. E algumas outras poucas, como a Stone e o Pagseguro, que abriram capital na Nasdaq americana. Mas com a grande quantidade de dinheiro que está indo para a nossa bolsa, o mercado de abertura de capital está aquecido e uma série de startups brasileiras entraram essa semana com pedidos para lançar ações no mercado. No processo elas precisam abrir seus números e explicar suas operações. Os documentos entregues ainda são versões preliminares, rascunhos da versão final do prospecto da oferta, mas oferecem uma rara oportunidade de entender o negócio de algumas das empresas que usamos em nossa vida digital. E podem ser usados como benchmark para outras startups, projetos e empresas em transformação digital por aí.

A Wine, por exemplo, aquela do clube de vinhos, faturou na primeira metade desse ano R$ 146 milhões e opera no azul. O foco é mesmo nos sócios fiéis do clube, que respondem por 78,6% do faturamento da empresa. Sendo que as assinaturas são 41,7% enquanto 36,9% são outras vendas para quem já é sócio. Vendas para não sócios são apenas 5,6%. A perda de assinantes – a famosa taxa de churn – ficou em 4,5% e o tempo médio que um cliente fica como sócio do clube é de 22 meses. (PDF.)

A Mosaico, dona do Zoom, fundada pela turma que tinha vendido o Bondfaro, e que ano passado comprou de volta junto com o Buscapé, é hoje a líder do mercado de comparação de preços. Os fundadores descrevem a companhia como atuando nas camadas superiores do funil de conversão de vendas. Onde os usuários estão nas fases de descoberta, interesse e consideração sobre a compra. Somando todas suas propriedades teve quase 450 milhões de visitas no primeiro semestre do ano. Quase 90 milhões de visitantes únicos. Mais de 40% deles recorrentes. Originou pouco menos de R$ 2 bilhões em vendas para seus parceiros nos primeiros seis meses do ano, quase o mesmo que em todo ano passado. Faturou R$ 66,8 milhões no último trimestre e também opera com lucro. (PDF)

A Méliuz, de cupom de descontos é outra que entrou na corrida. Está também no negócio de gerar vendas. No primeiro semestre, gerou pouco menos de R$ 1 bilhão em vendas para seus parceiros. Teve R$ 62 milhões de receita no semestre e está no lucro desde o ano passado. A empresa tem 10 milhões de contas, teve 4 milhões de acessos em seu site e 3 milhões em seu app no mês de julho. Tem ainda uma média de 6,9 compras por ano por cada comprador. (PDF)

O Enjoei é uma espécie de brechó online, mas olhando pelos números, é também um negócio de fidelização. Quase um terço das vendas de junho foi para clientes que já fizeram mais de 30 compras. Hoje são mais de 1,5 milhões de itens à venda na plataforma e já atraiu mais de 140 mil clientes este ano. É menor do que seus concorrentes mais conhecidos, mas opera com uma margem maior. Gerou pouco mais de R$ 200 milhões em vendas, faturando R$ 52 milhões nos primeiros 6 meses de 2020. Mas ainda opera no vermelho - um prejuízo de R$ 4,5 milhões neste período. (PDF)

O que todas tem em comum? Clientes fiéis.

Por Vitor Conceição

A independência do Brasil na tela e Van Gogh quase cancelado

Independência ou Morte, do pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Mello, é uma visão idealizada do momento do grito do Ipiranga. A tela representa o momento em que o príncipe regente Dom Pedro, após receber uma carta exigindo sua volta a Portugal, proclama a Independência do Brasil no dia 07 de setembro de 1822. À direita e à frente do grupo principal, em semicírculo, os cavaleiros da comitiva. À esquerda, em oposição aos cavaleiros, um carro de boi guiado por um homem do campo que olha a cena curiosamente.

Pedro Américo não tinha a intenção de que fosse um retrato fiel do momento do grito. Ele se inspirou nas pinturas europeias que representavam cenas históricas de batalhas, cheias de gestos imponentes, padrões seguidos pelos artistas da época. Feita na cidade italiana de Florença e terminada no ano de 1888, foi encomendada para ornamentar o Salão Nobre do Museu do Ipiranga, projetado especialmente para abrigá-la. Reprodução e rascunhos da obra, resultado de um processo de criação bastante complexo, estão disponíveis na exibição montada pelo Museu Paulista no Google Arts.

A tela, com dimensões de 415 cm x 760 cm, é maior do que as portas e janelas do salão, e foi montada originalmente no local, sem nunca ter sido retirada. Em outubro de 2019, nove profissionais, sob o comando de Yara Petrella, iniciaram o processo de restauro. Em uma força-tarefa da equipe, em meio à pandemia, o trabalho foi adiantado e concluído em 21 de março, restando a aplicação de verniz, que deve ser feita em 2022, antes da reabertura do museu.

No apaga-esconde da restauração, uma curiosidade: o pintor deixava entrever as figuras anteriores no resultado final, por meio da aplicação de uma tinta transparente. Com as imagens conseguidas com lâmpada ultravioleta, confirmou-se que havia na pintura marcas de figuras desfeitas por Pedro Américo. “Ele mudou sua assinatura de lugar. É algo bem sutil. Mantemos porque o restaurador nunca pode interferir nas obras dos pintores”.

Mudando de assunto, mas nem tanto, um debate acalorado tomou conta do Twitter nos últimos dias: a releitura de Café Terrace at Night, obra-prima de Vincent van Gogh, pelo artista contemporâneo Haixia Liu. A famosa pintura de 1888 gerou discussões sobre se o realismo era uma forma “superior” de arte.

Tudo começou com um tweet sugerindo que o pós-impressionista era superestimado. No dia 7 de agosto, uma usuária tuitou imagens das obras de Van Gogh e Liu que oferecem duas abordagens diferentes de uma mesma cena. No Van Gogh, vemos um café em Arles e seus clientes pintados em tons de amarelo, alaranjado e azul. Na versão de Liu, o mesmo café é pintado de uma forma que reflete mais de perto a realidade. Resgatado, o tweet foi motivo de escracho. Um outro tweet que acumula mais de 420.000 curtidas dizia: “A fetichização do realismo mata a arte”. Outros zombaram de ambos, com tweets irônicos: “Eu entendo por que van Gogh cortou a orelha.”

E não, não vale a pena cancelar Van Gogh sob argumento de realismo. As definições são variadas, mas a produção artística do pintor pode, de certa forma, ser considerada uma reação ao realismo de R maiúsculo, que era o modo dominante na França dos anos 1870, pouco antes de Van Gogh. Os impressionistas e pós-impressionistas então levaram as inovações do realismo um passo adiante, pintando cenas cotidianas na França, mas esteticamente subjetivas, cheias de cores que não se pareciam em nada com a vida, mas com  interpretações do jogo de luz em uma determinada cena.

E assim o Twitter saiu em sua defesa. Mas quem teve a melhor reação à polêmica? O bom humor, claro. Um usuário publicou um meme com uma foto da série de TV Real Husbands of Hollywood debochando da situação.

Van Gogh era fascinado pela luz e pela forma como ela moldava nossa compreensão da cor. Então, quando ele criou esta pintura, que está entre suas obras mais famosas, ele estava experimentando como a noite interagia com a iluminação emitida pelas lâmpadas dos cafés. “A noite”, escreveu certa vez, “é mais viva e mais colorida do que o dia”.

Por Claudia Castelo Branco

 

O mundo feminino de Elena Ferrante

A “Febre Ferrante” é como se chama o fenômeno que é Elena Ferrante. O seu maior sucesso, sua série de quatro livros, que começou com A Amiga Genial, em 2012, foi publicado em 45 idiomas, vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi adaptada para uma série da HBO, que já tem a terceira temporada confirmada.

A escritora italiana voltou depois de cinco anos com o recém lançado A Vida Mentirosa dos Adultos. E a febre está longe de acabar: lançado ano passado só na Itália, se tornou comum pelo país filas nas livrarias. A Netflix até já confirmou uma adaptação da obra.

O sucesso de Ferrante pode ser explicado pelas suas personagens. Meninas e mulheres dentro de suas complexidades.

O mistério em torno da autora também ajuda: ninguém sabe quem ela é. Em 2016, uma investigação apontou que o pseudônimo seria de Anita Raja, uma tradutora, casada com o escritor italiano Domenico Starnone — o que ela negou. Outros dizem que o responsável seria o próprio Starnone ou ainda a escrita é feita a quatro mãos, pelo casal. Numa carta ao seu editor quando foi contratada, Ferrante explicou a sua decisão pelo anonimato. “Creio que os livros, uma vez escritos, não precisam dos seus autores. Se eles têm algo a dizer, logo encontrarão leitores; se não, eles não vão.”

Alguns críticos descartam as obras de Ferrante como “novelas”, mas a verdade é que encontraram um público fiel. A autora coloca no centro as experiências femininas — positivas ou negativas —, que muitas vezes são postas de lado. O questionamento da condição de mulher faz parte de suas personagens. Independente da época da qual fazem parte, elas são assombradas pela herança feminina, incomodadas com a presença masculina e, ao mesmo tempo, incapazes de se desvencilharem completamente da influência dos homens.

No novo romance, Ferrante inverte alguns elementos comuns em suas obras. A protagonista Giovanna não tem grandes dilemas com a mãe, o problema está do lado paterno. Ela escuta de seu pai que é feia e se assemelha à sua tia Vittoria, que não se dá bem com a família e que nunca foi apresentada à menina. Assim, ela decide encontrar a sua tia e sua trajetória se torna o inverso de Lenú, a narradora de A Amiga Genial. Enquanto esta última luta para se afastar fisicamente e emocionalmente das suas origens na periferia de Nápoles, a outra quer justamente adentrar essa realidade, que representa sua herança paterna. O cenário napolitano, aliás, é peça chave para retratar a tensão social presente no mundo narrativo de Ferrante. O bairro operário Rione Luzzatti na cidade italiana, que inspirou o cenário da tetralogia napolitana, se tornou ponto turístico para os fãs que visitam a cidade.

O sucesso das personagens de Ferrante tem ido além e causado um interesse geral por mais narrativas femininas na Itália. O número de escritoras nas listas dos mais vendidos no país dobrou e corresponderam a cerca de metade dos 20 principais best-sellers de ficção nos últimos dois anos. Em 2018, pela primeira vez em 15 anos, uma escritora, Helena Janeczek, ganhou o prêmio Strega com La ragazza con la Leica (Amazon) — um romance histórico sobre a fotógrafa de guerra Gerda Taro, morta em 1937 enquanto documentava a Guerra Civil Espanhola com o seu namorado e colega mais famoso, Robert Capa.

Em uma recente entrevista (por e-mail) ao The Guardian, Ferrante deu mais detalhes sobre suas inspirações e como usa a linguagem para criar suas personagens femininas. “Não há nada de errado em dizer ‘escrita feminina’, mas deve ser feito com cautela. Uma vez que existe uma experiência indiscutivelmente feminina, toda expressão dela, oral ou escrita, deve ter a marca inequívoca de uma mulher. Mas infelizmente não é assim. Todos os meios que nós mulheres utilizamos para nos expressarmos não nos pertencem realmente, mas são, historicamente, um produto da dominação masculina, sobretudo gramática, sintaxe, palavras individuais, o próprio adjetivo ‘feminino’ com suas várias conotações. A escrita literária obviamente não é exceção. E assim a literatura feminina só pode deslocar-se, laboriosamente, de dentro da tradição masculina, mesmo quando se afirma com força, mesmo quando busca a sua própria genealogia específica, mesmo quando absorve e, dentro de margens fixas, faz a mistura dos sexos e a irredutibilidade do próprio desejo sexual. Isso significa que somos prisioneiras, que estamos destinados a ficar escondidas para sempre pela própria linguagem com que tentamos falar de nós mesmas? Não. Mas temos que perceber que, neste contexto, nos expressarmos é um processo de tentativa e erro. Temos que partir constantemente da hipótese de que, apesar de tantos avanços, ainda não somos verdadeiramente visíveis, ainda não somos verdadeiramente audíveis, ainda não somos verdadeiramente compreensíveis, e temos que remixar nossa experiência inúmeras vezes, como se faz com uma salada, reinventando vozes surpreendentes para pessoas e coisas. Temos que encontrar o caminho (ou caminhos) muito misterioso pelo qual, partindo de uma fenda, de algo descartado entre as formas já estabelecidas, chegamos a uma escrita que é imprevisível até para nós que a trabalhamos.”

Outras escritoras italianas contemporâneas.

Um documentário (Amazon) sobre a “Febre Ferrante” pelo mundo.

O livro Elena Ferrante: uma longa experiência de ausência (Amazon) que discute as obras da escritora pelo olhar da psicanálise.

Todas as obras de Ferrante. Um trecho e o seu novo livro (Amazon).

Por Érica Carnevalli

E uma eclética seleção de links entre os mais clicados dessa semana:

1. Reuters: As fotos do mês – Agosto.

2. Twitter: Em discurso, Chadwick Boseman mostra o tipo de homem que foi.

3. Panelinha: Iogurte – Como fazer e usar mais.

4. Travessa: Fascismo à Brasileira, o novo livro de Pedro Doria.

5. Youtube: Meio em vídeo – O Rio é um problema brasileiro.

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‘Mapa de apoios está desfavorável ao Irã e sua visão de futuro’, diz Abbas Milani

17/04/24 • 11:00

O professor Abbas Milani nasceu no Irã. Foi preso pelo regime do xá Reza Pahlavi. Depois, perseguido pelo regime islâmico do aiatolá Khomeini. Buscou abrigo nos Estados Unidos na década de 1980, de onde nunca deixou de lutar por uma democracia em seu país de origem. Chegou a prestar consultoria a George W. Bush e Barack Obama, numa louvável disposição de colaboração bipartidária. Seu conselho sempre foi o mesmo: o Irã deve se reencontrar com um regime democrático, secular, por sua própria conta. Sem interferências externas.

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